Começo o texto já pedindo desculpas pelo seu tamanho, mas não deu pra fazer menor...
Tudo começou em uma discussão da auto-proclamada blogosfera (conhecida como umbigosfera) sobre caridade e filantropia me deixou com uma pulga atrás da orelha. Afinal, a ação feita para ajudar pessoas necessitadas pode ser genuína e sincera, sem uma intenção oculta e secundária em benefício próprio e autopromoção ou tudo não passa de charlatanismo oportunista?
Foi num sábado ensolarado, fotografando por aí que me deparei com a oportunidade de viver uma experiência que me traria parâmetros para compor uma posição: o GEA. Conheci o trabalho, conversei com os voluntários e combinei retornar na semana seguinte para desenvolver um trabalho. O resultado você confere abaixo.
Dezenas de pessoas em situação de rua se concentravam na Paz – Praça da Paz – pequeno recanto verde rodeado por estabelecimentos nordestinos e japoneses no bairro de São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. Eles estavam à espera dos voluntários do Grupo Esperança e Amor (GEA), que todos os sábados promovem um almoço beneficente no local.
Entro no meio deles e não vejo nem sombra de tristeza, os moradores de rua chegam cumprimentando-se como se estivessem em uma festa, tirando sarro um do time do outro, juntando-se em pequenas rodinhas espalhadas por toda a praça, colocando em dia assuntos de toda natureza. Estranham minha presença mas são acolhedores, não me conheciam mas me cumprimentaram e me trataram como um igual. Ali, ninguém é superior a ninguém e não há motivo para hostilidades.
Alguém me oferece um cigarro, não obrigado. Alguém me pede um cigarro, não fumo, obrigado. Alguém estende a mão, “Olá, sou Denis, prazer, eles estão demorando hoje né?”, pergunto. “Sim, mas nunca falham, logo estão aí”.
Todos estão sentados na mureta da praça, em uma fila que cresce. Em sua maioria são senhores de idade, muitos bem vestidos, mas também há jovens, mulheres e crianças. Perdidos entre o descaso social e o fantasma da falta de informação. Ali, eles receberão mais do que uma refeição semanal: encontrarão amigos prontos para resgatá-los das margens do Estado.
Perto das 13h30 chega o primeiro grupo de voluntários do GEA, eles estão ali para contar quantos apareceram hoje. Todos se conhecem, um a um, e a receptividade é calorosa. Se abraçam como a velhos amigos. Não há espaço para nojo ou qualquer coisa do tipo. Finalmente um voluntário suspira aliviado. “Hoje compareceram muitos moradores de rua, mais do que a média. Felizmente fizemos muitos marmitex e vai dar”.
Logo em seguida surge o carro do GEA com o porta-malas adaptado em um isopor gigante cheio de “quentinhas”. Milton, um homem alto, de gestos fortes e voz grave, da um boa tarde geral. É ele quem organiza tudo ali. Em seguida, chama a atenção de todos na praça e, com autoridade, agradece a presença de todos. Hoje o presidente do GEA, Freitas, está presente e cumprimenta a todos com simpatia. Milton é vice presidente, ele me puxa ao seu lado e manda:
”Este aqui é o jornalista Denis, amigo nosso que vai fazer a divulgação do GEA, vamos recebê-lo com uma salva de palmas”.
Fico sem jeito e tiro meu chapéu em sinal de respeito e agradecimento aqueles grandes homens que vencem a mais dura das lutas todos os dias, me aplaudindo sem que eu entenda como posso receber um tributo de pessoas mais fortes do que eu, as das maiores vítimas da sociedade subvivendo pelos mais variados motivos.
Não é só pela bebida ou drogas que as pessoas acabam na rua. Muitas sofrem decepções e traumas desconcertantes, a exemplo de Antônio Conselheiro, que desmascaram o teatro encenado por nós todos os dias. Não conseguem mais ver sentido numa vida sem sentido como a nossa, preferem a simplicidade e verdade fria das ruas, por mais dura que seja.
Outros saem de casa por vergonha da família, por não conseguirem trabalho, envergonhados, ficam na rua e não voltam enquanto não conseguem uma colocação no mercado. Parece um absurdo pensar assim no conforto de nossos lares, com nossas garantias e proteções, mas é preciso conhecer a realidade destes pais de família, desesperados sem conseguir levar nada para casa, dia após dia, apenas sobrevivendo de colaborações de vizinhos e família, decide ajudar com uma boca a menos para comer em casa: a sua. Vivendo na rua esperando pelo milagre que nunca chega do céu, a não ser pelas mãos de pessoas como o GEA, que tem o almoço como um atrativo para a ONG.
Coloco-me a refletir. Certa ocasião um amigo repudiou tais pessoas, julgando-as de fracas, pois na sociedade impera a lei do mais forte. "É assim na natureza, quem é mais fraco, perde, morre, acaba, inexiste".
Alimentar ali não é a prioridade, e sim ajudar. “As pessoas vem atrás da comida, mas encontram no GEA a possibilidade de uma reabilitação”, diz Milton. “Somos uma organização sem barreiras de religião, sexo, cor ou idade. Temos espíritas, evangélicos e católicos trabalhando lado a lado para melhorar a vida do próximo, conseguir uma inserção ou qualquer coisa, não temos condições de dar uma casa, um emprego, um tratamento ou qualquer coisa, mas podemos ir atrás, falar com pessoas, telefonar, tentar ajudar como for possível, desde que a pessoa deseje”.
O problema é que nem todo mundo deseja ser resgatado. Muitos não tem força para deixar a bebida de lado e voltar para a família, é algo que depende exclusivamente da vontade da pessoa, mesmo que aconteça uma recaída, a pessoa precisa desejar mudar e isso as vezes leva tempo, revelou uma outra voluntária.
A distribuição das quentinhas começa sem bagunça, todos permanecem sentados e são servidos pelos voluntários. Hoje temos arroz, feijão, salsicha com batata e banana. Também tem suco e um voluntário fica exclusivamente responsável pela pimentinha. “Se não tiver essa bem ardida aqui eles reclamam, não pode faltar”.
Em pouco tempo, todos os moradores receberam sua refeição e comem com a soberba de reis. Aliás, nem todos são moradores de rua, alguns tem sua casinha, mas vem para ver amigos e conversar. São colaboradores, claro, como dona Lazara. Senhora simples que contribuiu com arroz, mas faz questão de sentar na praça para comer com os amigos. "Moro na favela e lá criei sozinha 5 filhos. Fui bom exemplo para eles e hoje uma filha mora na Itália e um filho tem uma chácara do lado da chácara do Jair Rodrigues", conta orgulhosa, mas sem abandonar a favela. “Não vou mentir para você, não pago nem água e nem luz, mas vivo bem na simplicidade”, confessa.
Dona Lazara, voluntária, também não perde uma boquinha
Outro que conversou com o Bravus foi Belarmino Viena Alves. Homem sério e religioso que vive na rua por falta de oportunidades mas está se recuperando. “No que eu puder ajudar, em nome de Deus eu venho e faço de bom grado. Eu estava desandado nessa vida, mas meu Pai me ajudou e assim eu sigo”.
Seu Belarmino, rumo à reabilitação (em nome de Deus)
As marcas da dureza da vida estão presentes no rosto de cada um. Lá não se pensa em palavras como filantropia, caridade, voluntariado, autopromoção ou qualquer coisa do tipo. Há uma realidade presente que nos leva a um pensamento, sentimento e movimento que só quando presentes é possível sentir: há um trabalho que deve ser feito, então fazemos. Apenas isso. Todas as filosofias e condições psicológicas na origem do ego caem por terra durante o ato. Tudo isso perde o sentido e só é possível entender quando vivemos esta ação. Se pudesse, aconselharia cada pessoa a experimentar para poder construir um conceito mais sólido, um argumento sobre o assunto, mesmo que contrário.
Outros braços do GEA
O almoço aos sábados não é o único ato promovido pelo GEA. Nascido no dia 1º de abril de 1999, o Grupo Esperança e Amor foi idéia de quatro casais de amigos que queriam apenas ajudar e hoje conta com cerca de 60 voluntários.
O GEA também trabalha com a doação de fraldas geriátricas para pessoas que precisam. São 15 pessoas assistidas por esse programa. Além disso, muitas famílias recebem ajuda com cestas básicas.
Como colaborar?
A sede que fica na Rua Pedro Soares de Andrade, 94 – Fundos.
Para mais informações o telefone do GEA é (11) 6584.4666.
Mais fotos do ato: