Muitas vezes não somos nós que juntamos todas essas fagulhas e transformamos em coisas palpáveis, pertinentes com a rotina necessária para nosso reconhecimento em sociedade. Somos também moldados por tudo que nos é dito, repassado, direcionado. A vivência de outrém muito interessa na constituição do sujeito. Para sermos indivíduos, precisamos nos rechear de coletividade.
Nesse contexto, observe a cidade de Mariana. Basta uma semana experimentando o lugar para que toda a bagagem que carregamos seja brutalmente modificada. Por trás dos casarões coloniais, das igrejas barrocas e de todo imaginário setecentista existe uma cidade comum, com problemas de infra-estrutura, com a rispidez dos moradores, com pobreza e violência.
A verdade é que a fuga é algo constante em todos. Lidar com problemas diariamente não é simples. A fluidez e a velocidade de tudo que nos cerca é, ao pé da letra, um labirinto. Assim, imaginar a paz interiorana e a perfeição barroca é uma espécie de fuga. Então fugimos. Para Mariana, para o colo da mãe. Paz de espírito é o "sonho da casa própria" da conteporâneidade.
Toda essa reflexão serve para amarrar um outro lugar de fuga, objeto de nossa pesquisa. Lugar que pode ser invisível ao desatento e inútil ao descrente. Escondida no fundo de um quintal, atrás de um supermercado e poluida por toda movimentação de um centro urbano, está a Ermida De São Geraldo. Construida em 1916, a capelinha é imponente para quem a descobre. Traz consigo pinturas em afresco, um jardim com árvores frutiferas, um pequeno lago com carpas e paz no meio do caos do centro da cidade. Existe ainda um mito: um provável osso do santo padroeiro, que aumenta a peculiaridade do lugar.
A São Geraldo Magela, padroeiro das mães e dos alfaiates, é atribuida uma qualidade aterradora, na ordem do super poder mesmo, a capacidade de ser bilocate, ou seja, estar em dois lugares ao mesmo tempo. Foi canonizado depois de uma vida humilde e injusta, com falsas acusações e a rejeição da própria Igreja Católica.
Mas foi um outro Geraldo o responsável pela construção do santuário. Geraldo Carneiro, que nos fundos da sua casa, segundo tradições passadas, ergueu a capela em homenagem ao santo homônimo. Desde então está aberta para visitação. E é muito visitada. Uma missa é realizada toda segunda-feira, excursões de outros lugares são promovidas e existe até um coral que lá se apresenta. E é estranho perceber que muitas pessoas conhecem o que você ainda não havia nem notado. Culpa da visão, que é usada apenas como sentido: ver. Já o olhar, que compreende uma especificidade muito mais humanizada, quase sempre sofre um revés no dia-a-dia das pessoas.
Uma vez dentro da ermida, a sensação de paz é imediata. Um estranho silêncio toma conta do lugar (que está no meio da eloquência dos pontos de ôbibus, comércios e trânsito efervescente, e ainda assim é silencioso), e só é interrompido pelo barulho de uma bica d'água, que só faz relaxar ainda mais.
Ao longo do tempo, as acomodações da capela vieram sofrendo ajustes. Aumentou de tamanho, anexou um sepulcro de Bom Jesus, abriu uma pequena loja de artigos religiosos. Tem fruta no pé, sombra, água de dois tipos: de mina e benta. Tem conforto religioso, para os crentes e conforto espiritual, para os necessitados.
O portão encoberto por plantas que mostra apenas um corredor estreito, e nada convidativo, esconde esse refúgio. Um refúgio que não faz propaganda. Que você só consegue fazer parte dele se receber um chamado boca a boca ou se tiver a curiosidade.
Mais do que uma entrada, o beco funciona como um portal. Depois de atravessá-lo, a primeira pessoa a ser vista é Seu José Efigênio, tratado por Zezé, uma espécie de zelador-faz-tudo da ermida. Acende vela, varre o chão, tira as folhagens e ainda vende imagens de santo na lojinha.
Apesar de muito solícito, Zezé diz que trabalha lá somente há dois anos. Logo, nossas questões não foram de cara respondidas, o que serviu de fermento para nossas pequenas dúvidas. Assim, começaram dois novos exercícios: observar e deduzir. Observar todas as faces que por lá passavam – os olhos fechados, os dedos pulando as contas do terço, sinal da cruz. Deduzir as angústias – as amarguras pelas quais essas pessoas buscavam conforto - ou as graças alcançadas, as bênçãos recebidas. Esses todos são mistérios, frutos também da nossa curiosidade.
É, no mínimo, um lugar diferente. Causa um sentimento estranho, de não pertencimento, e parece ser exigido que pertençamos a cada passo à dentro da instalação. É o incômodo do novo, misturado com o constrangimento do primeiro dia de aula em uma turma diferente. As coisas não estão óbvias. Não existe nada escancarado. Uma hipótese formada: talvez essa seja a prova de fogo para o conforto que os frequentadores assíduos parecem desfrutar.
E a boa resposta é aquela que gera mais dúvidas e, portanto, nos deixa mais curiosos. A curiosidade é algo muito difícil de se lidar. Ela é recompensada com o conhecimento. Porém, para alcançarmos esse resultado, é necessário antes que sejam derrubadas muitas barreiras, preconceitos e mitos já bem resolvidos em nosso repertório. Esse confronto é constrangedor, uma espécie de catarse.
E as perguntas ainda não foram respondidas. E tomara que nunca sejam. Pois quando se trata do homem, a simetria não é uma regra. E a certeza é só uma manifestação da preguiça de ser curioso.
Por Enrico Mencarelli e Tábata Romero
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