Sinto que não conseguirei escrever esse texto sem recorrer a alguns bons exemplos de cultura geral e cultura bastante específica. Estruturar o meu questionamento requer comparações, análises menos superficiais - é preciso, talvez, de certa subjetividade para entender aonde quero chegar.
A música é Como nossos pais. O compositor é Belchior e a intérprete é Elis Regina. Na voz dela, tão peremptória e incisiva - ao mesmo tempo doce e carinhosa, porém - ouvimos que "viver é melhor que sonhar", que, dentro do contexto crítico a que se propõe essa canção, é extremamente aceitável. Fosse escrito de outro modo, fosse apresentado de outro modo, decerto a estrutura discursiva se perderia sem que os elementos artísticos dessa obra se revelassem em sua totalidade. Não se pode ignorar, aliás, que dentro da própria canção essa afirmação encaixa-se num paradoxo aparentemente imutável devido à constante retroalimentação do passar das gerações, que parece se mostrar cíclico: por mais que os personagens de quem o eu-lírico fale tentem algo novo, por mais que tracem caminhos diferentes, que saiam às ruas, que relembrem - que sonhem! - eles sempre serão como os seus pais. Se viver é melhor que sonhar, como então a vida pode não se fazer modificar, estagnando as pessoas a situações que as precedem e que não as obrigatoriamente forçam a permanecer de um mesmo modo?
Decerto há argumentos bastante sólidos a respeito do porquê viver é melhor do que se manter à margem da vida, idealizando-a em vez de a consumar. Afirma-se que as experiências de viver, ainda que tragam consequências ruins, são necessárias à formação do indivíduo, pois conseguem construir-lhe uma personalidade, um caráter, moldá-lo de modo que ele aprenda a ter discernimento a respeito das situações. Um sonho, porém, é capaz de modificar o pensamento de alguém em relação às situações que ela obrigatoriamente conhece - assumir que sonhar e viver são antônimos é afirmar que quem sonha não está vivo, o que não se verifica verdadeiro, posto que, para idealizar (aqui intepretado com sinônino de sonhar), é necessário que se conheça a realidade e que se tenha certas experiências de mundo. A busca pelo idealizado, pelo "inalcançável", resulta na percepção de que a vida real não pode conceber o desejo como se lhe quer - inevitavelmente, surge um pensamento crítico a respeito do que a vida pode oferecer e se é justo que ela não ofereça mais.
Alega-se que quem só sonha não vive, só se ilude. Aí, contraponho uma pergunta a essa afirmação: e quem vive, por viver, não se ilude? Por experiência de vida, afirmo que viver é também se iludir, porque a felicidade a que somos submetidos - a felicidade que a vida nos oferece - é em sua maior parte clandestina e alieanadora: chega como não devia e, em vez de exaltar o espírito, apenas encobre a realidade. Esquece-se assim, por causa de breves momentos de felicidade - estes oferecidos por viver -, de tudo aquilo que é fonte de problema; esquece-se, por assumir-se vívido e feliz, daquilo que pouco a pouco destrói o humor, dilacera a obstinação, interrompe os planos e, acima de tudo, perturba a funcionalidade do dia-a-dia. Contraditoriamente, então, de viver oriunda-se a distração da busca por uma vida melhor: é a vida atrapalhando a vida. Se, para Marx, "a religião é o ópio do povo", esse mesmo ópio é, para Schopenhauer, a felicidade. O filósofo alemão afirmava que o homem não deve sentir-se feliz, já que isso não lhe trazia qualquer bem, apenas o afastava de um motivo maior - deve-se, segundo ele, viver para não ser feliz; qual é, então, a função da vida se a felicidade é justamente o que todos buscam?
Os poetas decadentistas preteriam a vida em função do sonho. Para eles, em oposição à música cantada por Elis, "sonhar é melhor que viver": nos sonhos, há a perfeição; a idealização traz consigo o tipo de felicidade que a vida jamais poderá oferecer, haja vista que ela, bastante coletiva e concreta, não faz jus à individualidade - e consequentemente às necessidades e merecimentos de cada ser. Que problemáticas existem nos sonhos se eles acontecem exclusivamente num plano subjetivo e, bons ou ruins, mantêm-se apenas na mente de quem os sonhos? Numa oposição, percebe-se que a vida, considerando esse aspecto, traz mais desvantagens, uma vez que ela oferece fome, miséria, dor, desespero, frio a quaisquer pessoas.
Esse texto se trata, sobretudo, de uma análise, mas também de um desabafo.
Gostaria, agora, de estar sonhando, não vivendo.
A música é Como nossos pais. O compositor é Belchior e a intérprete é Elis Regina. Na voz dela, tão peremptória e incisiva - ao mesmo tempo doce e carinhosa, porém - ouvimos que "viver é melhor que sonhar", que, dentro do contexto crítico a que se propõe essa canção, é extremamente aceitável. Fosse escrito de outro modo, fosse apresentado de outro modo, decerto a estrutura discursiva se perderia sem que os elementos artísticos dessa obra se revelassem em sua totalidade. Não se pode ignorar, aliás, que dentro da própria canção essa afirmação encaixa-se num paradoxo aparentemente imutável devido à constante retroalimentação do passar das gerações, que parece se mostrar cíclico: por mais que os personagens de quem o eu-lírico fale tentem algo novo, por mais que tracem caminhos diferentes, que saiam às ruas, que relembrem - que sonhem! - eles sempre serão como os seus pais. Se viver é melhor que sonhar, como então a vida pode não se fazer modificar, estagnando as pessoas a situações que as precedem e que não as obrigatoriamente forçam a permanecer de um mesmo modo?
Decerto há argumentos bastante sólidos a respeito do porquê viver é melhor do que se manter à margem da vida, idealizando-a em vez de a consumar. Afirma-se que as experiências de viver, ainda que tragam consequências ruins, são necessárias à formação do indivíduo, pois conseguem construir-lhe uma personalidade, um caráter, moldá-lo de modo que ele aprenda a ter discernimento a respeito das situações. Um sonho, porém, é capaz de modificar o pensamento de alguém em relação às situações que ela obrigatoriamente conhece - assumir que sonhar e viver são antônimos é afirmar que quem sonha não está vivo, o que não se verifica verdadeiro, posto que, para idealizar (aqui intepretado com sinônino de sonhar), é necessário que se conheça a realidade e que se tenha certas experiências de mundo. A busca pelo idealizado, pelo "inalcançável", resulta na percepção de que a vida real não pode conceber o desejo como se lhe quer - inevitavelmente, surge um pensamento crítico a respeito do que a vida pode oferecer e se é justo que ela não ofereça mais.
Alega-se que quem só sonha não vive, só se ilude. Aí, contraponho uma pergunta a essa afirmação: e quem vive, por viver, não se ilude? Por experiência de vida, afirmo que viver é também se iludir, porque a felicidade a que somos submetidos - a felicidade que a vida nos oferece - é em sua maior parte clandestina e alieanadora: chega como não devia e, em vez de exaltar o espírito, apenas encobre a realidade. Esquece-se assim, por causa de breves momentos de felicidade - estes oferecidos por viver -, de tudo aquilo que é fonte de problema; esquece-se, por assumir-se vívido e feliz, daquilo que pouco a pouco destrói o humor, dilacera a obstinação, interrompe os planos e, acima de tudo, perturba a funcionalidade do dia-a-dia. Contraditoriamente, então, de viver oriunda-se a distração da busca por uma vida melhor: é a vida atrapalhando a vida. Se, para Marx, "a religião é o ópio do povo", esse mesmo ópio é, para Schopenhauer, a felicidade. O filósofo alemão afirmava que o homem não deve sentir-se feliz, já que isso não lhe trazia qualquer bem, apenas o afastava de um motivo maior - deve-se, segundo ele, viver para não ser feliz; qual é, então, a função da vida se a felicidade é justamente o que todos buscam?
Os poetas decadentistas preteriam a vida em função do sonho. Para eles, em oposição à música cantada por Elis, "sonhar é melhor que viver": nos sonhos, há a perfeição; a idealização traz consigo o tipo de felicidade que a vida jamais poderá oferecer, haja vista que ela, bastante coletiva e concreta, não faz jus à individualidade - e consequentemente às necessidades e merecimentos de cada ser. Que problemáticas existem nos sonhos se eles acontecem exclusivamente num plano subjetivo e, bons ou ruins, mantêm-se apenas na mente de quem os sonhos? Numa oposição, percebe-se que a vida, considerando esse aspecto, traz mais desvantagens, uma vez que ela oferece fome, miséria, dor, desespero, frio a quaisquer pessoas.
Esse texto se trata, sobretudo, de uma análise, mas também de um desabafo.
Gostaria, agora, de estar sonhando, não vivendo.
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