Acabo de chegar de uma viagem que seria muito inusitada, se não houvesse outras, igualmente extemporâneas, que a precederam. De acaso em acaso, eu fui a São Paulo porque queria ver Fernanda Montenegro no palco interpretando Simone de Beauvoir, em Viver sem tempos mortos, assim como, um dia, fui lá também, junto com uma amiga, só para assistir a uma peça teatral, não importava qual, e calhou que foi Quem tem medo de Virginia Woolf, com Marieta Severo e Marco Nanini, numa interpretação de Nanini que me impressiona até hoje. Também fui agora para ver Em nome dos artistas, exposição de arte contemporânea, que está no Pavilhão da Bienal.
Já parti da gélida Paris, sozinha, para Bruxelas, tendo como única certeza de que assistiria ao show de Bob Dylan, porque encasquetei que nunca mais estaria tão próxima dessa oportunidade. E também fui a Madri, sem um tostão no bolso, além do suficiente para comer mal e me embriagar no bar do hotel, unicamente para ver O jardim das delícias, de Bosch, porque minha cultura parca não me deixava saber que a poucos metros estaria também Guernica, de Picasso. E em mais algumas quadras, As meninas, de Velazquez. E por muito tempo, eu disse, e ainda gosto de dizer, que só queria ir a Paris para andar nos corredores do Colégio da França, onde Barthes havia lecionado seus famosos cursos e proferido Aula, o texto que, sem dúvida, marcou toda a minha trajetória acadêmica.
Comigo sempre foi assim, vivendo de urgências que parecem não ter fim e de desejos que ora iluminam ora obscurecem meus dias. Às vezes de modo leve, às vezes abalada, eu penso que poderia desejar menos. Ser mais focada, seria o termo ideal. Porém, na verdade, eu tenho muito pouco apreço por quem não deseja, como se, adulta, eu continuasse insistindo em preencher as lacunas que ficaram para trás e que, certamente, existirão mais à frente.
Num tempo em que tantos proclamam seus anseios, espanto-me como se tem cada vez menos desejado o saber, o simples saber, aquele que não vai trazer nenhuma vantagem a não ser o prazer. E se eu insisto em construir meus dias nem que seja com pequenos intervalos de fruição, é porque acredito que não podemos naturalizar a vida, estabelecendo modelos àquilo que, como diz Fernanda-Simone, é trespassado tantas vezes pelas leis do acaso. Não quero me entregar à lógica do cotidiano que tantas vezes nos embrutece. Amar os livros, os filmes, os lugares, os artistas, os eteceteras, é o meu modo de me aproximar de mim, de trazer à tona as minhas emoções. Uma forma de fugir das loucuras e dos desencantos do mundo.
Por isso, fui, embora só para chegar até lá tenha viajado 10 horas de ônibus, esperado 7 horas no aeroporto, mais 2h30 no avião, além de 2h entre ônibus, metrô e taxi para chegar ao meu destino. Nada é natural. Menos ainda a força poderosa que move Fernanda Montenegro, transvestida de Simone de Beauvoir, por uma hora, num palco despido de tudo, quase à sombra.
ao contrário do que você disse, te acho muito focada. saber o que quer, mesmo que momentaneamente, e ir atrás é, sem dúvida, o foco mais lindo de todos.
ResponderExcluirquero ser assim!
beijos
Perfeito, Milena! Cada vez fico mais encantada com seus textos. E agora estou intrigada por você ter estado em São Paulo e não te conhecido.
ResponderExcluirPuxa vida! Relato muito bonito de quem vai atrás de algo sem, aparentemente, uma finalidade. Mas, consumir arte e sapatos é a mesma coisa. Calma! "Não me briga!" rs Eu também escolheria Simone de Beauvoir.
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ResponderExcluirHiper interessante!
ResponderExcluiridentificação TOTAL aqui ó:
"Amar os livros, os filmes, os lugares, os artistas, os eteceteras, é o meu modo de me aproximar de mim, de trazer à tona as minhas emoções. Uma forma de fugir das loucuras e dos desencantos do mundo."
Menos o amar os artistas, pq alguns são tãooooooo tosco, que mesmo numa interpretação impecável relembra o quanto é tosco. Sei, tem que separar o profissional do pessoal, sei (raiva, pq isso do ssoal e ssoal lembra o Fausto Silva q não suporto assistir )
Entretanto, respeito grande para Fernando Montenegro, mesmo quando fala algumas abobrinhas por aí, normal, afinal ninguém é perfeito.
ps: Simone Beauvoir tá aqui em casa na pele de " A mulher desiludida" na eterna fila de espera pra ler, e se você soubesse o medo de ler e querer me jogar no viaduto do chá. Quase o fiz quando lia net a fora Virginia, superado quando comprei um livro e li.