Ao se despertar, ainda enrolada naquela conchinha que já não era confortável há muito tempo, olhou para a televisão ligada no mudo e fez a leitura labial de um desenho animado dublado. Não deu certo. Não achava o controle remoto. Decidiu se levantar. Ligou o computador, ajeitou a calcinha e foi ao banheiro ver sua cara-de-bom-dia. Não escovou os dentes, como de costume, para ela o café da manhã perde o sabor para a pasta de dente. Abriu a torneira em um filete fino de água. Fazia frio, só de imaginar aquela água gélida em seu rosto, já lhe arrepiava todo o couro. 1...2...3... Respira. Água. Olhos fechados, pensou no desconforto que lhe causava aquele abraço. Água. Pensou que aquele casal já não estava em sintonia. Água. Lhe falta aquele cheiro no cangote, aquela flor roubada do vizinho, aquele beijo de bom dia. Água. Lhe falta inspiração para fazer o abraço funcionar. Água. E abre os olhos, e se vê no espelho. E se envergonha de passar tanto tempo empurrando aquela relação que para ela já não funciona mais há quase um ano. Mas tinha um medo tão grande de falar basta!, de perder o chão, de não se encontrar em outro abraço e pensou – por muito – que o problema era dela.
E de volta ao quarto. Ainda pensativa e com cara de espanto. Se via distante, voando pra longe, como se não quisesse mais estar ali. A janela já mostrava as primeiras gotas de chuva e o céu tinha um semblante triste, quase mórbido. E ele estava lá, sentado-deitado na cama. Parece que achou o controle remoto e colocou som no desenho animado. Ela se sentou ao seu lado, esperando um bom dia, um afago que seja, um sorriso sincero, sabe lá. E só recebeu um ‘quer ver outra coisa?’. E ele lhe entregou o controle, que escondia abaixo do travesseiro. Ela não respondeu. Levantou-se, deu-lhe um beijo na testa e disse um bom dia sussurrado.
Viu as horas no computador. Já era tarde, 11h30. Trocou a camiseta velha por um vestido simples, calçou um par de chinelos e saiu daquele quarto de ar viciado. Desceu as escadas, abriu a porta pesada de tanta idade, e viu a rua – com chuviscos, tristezas e as cicatrizes de um amor perfeito que faleceu.
Foi em busca de um café da manhã com pinta de almoço. Comprou um pão com ovo. Tomou um suco de uva de caixinha – seu favorito. Pediu um pão de queijo pra viagem e já no caixa escolheu um chocolate meio amargo com amêndoas. A volta pra casa foi eterna, o chuvisco molhava sua tez, seu vestido e levava embora o orgulho e a tristeza. Vivia triste. Um mês triste. Mas não saberia viver de outra maneira, não saberia viver sem ele. Preferia viver triste. Assim estava bom. Sem sorrisos, sem beijo com aroma de bom dia, sem amor próprio. Mas bom.
Abriu a porta do quarto. Ele lá, na mesma posição – nem sequer encarou a água fria da torneira para pensar. Zapeando os canais da televisão, em um looping infinito de insatisfação. Ela dispara mais um ‘bom dia, amor. te trouxe café da manhã’. Ele sorriu, agradeceu. Ela sabia que aquele era seu chocolate preferido. Tentava salvar essa relação a todo custo. Queria a liberdade, queria seu próprio ar, queria viver sem ele. Mas não queria.
Sentou-se ao computador, pôs a primeira musica da playlist e colocou-se a escrever. Escreveu sobre sua mãe, sobre suas saudades, sobre seus cachorros, sobre suas dores, seus desafetos, sua insegurança e sobre a vontade de falar para ele tudo aquilo que sentia – angústia, solidão e abandono presente, que é ainda pior que o ausente. Deixou a escrita, voltou para a cama e naquele ambiente viciado, soltou algumas palavras há muito atadas com nó cego.
‘Cansei. Quero vida. Me liberte. Quero viver. Quero ser eu. Quero me conhecer. Não mereço abraço sem carinho. O afeto só é afeto se é completo.’
Ele.
‘Vem aqui, amor. Deixa disso. Eu te amo. E tudo vai mudar. Te prometo.’
Ela acreditou, sorriu, fingiu paixão e deitou em seu duro abraço mais uma vez.
Passaram tarde, noite. Foi normal. Divertido, como amigos se divertem. Assexuado, talvez, como grandes amigos. E a meia noite, daquele mesmo dia que para ela terminaria bem, o desgosto e a despaixão desabrocharam em seu estado mais uma vez. Foi começar uma conversa, mas foi interrompida por um...
‘Você acha que a gente ainda dá certo? Não sei você, mas pensei em terminar.’
Seco. Duro. Frio. Sem amor algum. Com um resquício da amizade que tinham, em uma frase solta bem semelhante a um comentário tolo de amigo – levada por um sorriso sem ironia nem nada.
E lhe soou uma mescla de alívio e desespero. Ela queria ter soltado essa frase, ele não deixou. Terminaram com um sorriso de lá e um orgulho mordido de cá. Sem nenhuma esperança de voltarem a dividir o mesmo edredom.
Lido com nó na garganta..belo texto, triste história.
ResponderExcluirbonito, triste, de dá nó no coração e na garganta.
ResponderExcluir"Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados..."
Gikovate falou algo sobre o amor de forma pontual: "O mais trsite do término é o velório da relação, enquanto um a está velando o outro já a enterrou".
ResponderExcluirAbraços.
Coisa mais triste quando o relacionamento esfria, quando cai no comodismo, quando ela ainda compra os chocolates preferidos dele, esse esforço de algo inatingível.
ResponderExcluirDescrição angustiante, bonita, triste de um sentimento que se quer preservar, mas que está chegando ao fim. Belo texto. Triste história!
ResponderExcluir