"Como poderei viver... Como poderei viver... sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia?"
Cantiga de roda
Após onze meses de trabalho árduo e exemplar na repartição, Herculano era merecidamente recompensado com alguns dias de ócio remunerado, também chamado de pausa laboral ou, para aqueles que defendem a economia vocabular, simplesmente férias. Eram aqueles dias doces do ano em que Herculano, solteiro e sem parentes conhecidos, poderia se dedicar a atividades que realmente valem a pena nessa vida: a palavra cruzada e a calistenia. A primeira para exercitar a mente, a segunda para exercitar o corpo. Herculano buscava assim o equilíbrio perfeito que somente aqueles dias serenos poderiam proporcionar.
Neste cenário motivador, nada no mundo poderia tirar a paz daquele santo homem, nem mesmo o dindondear da campainha (a campainha de Herculano era do tipo que dindondeava) que há algum tempo acordara Herculano e o obrigara a se levantar da cama, a colocar sua pantufas (estrategicamente dispostas ao lado esquerdo de sua cama) e a se dirigir à porta da frente ainda de pijamas.
Era Emília, a vizinha da esquerda.
As edificantes palestras motivacionais que Herculano frequentava na repartição, haviam lhe ensinado que falar de menos nunca é demais. Esta espécie de mantra pautava a atitude de Herculano com relação aos seus vizinhos. Era um aceno discreto aqui, uma troca de trivialidades ali e nada mais comprometedor que isso. Com Emília não era diferente, daí o espanto de Herculano quando a viu diante de sua porta, logo no dia inaugural de seu mês sabático e, ainda por cima, antes mesmo de sua primeira sessão diária de calistenia.
A intempestividade do momento fizera com que Herculano demorasse a reparar que Emília carregava nas mãos, com um cuidado digno de nota, nada menos pitoresco que um aquário. Em seu interior, cumprindo bem o papel para o qual fora destinado, nadava tranquilamente um reluzente peixe beta. Imponente, de olhar altivo, o pequeno animal inspirava respeito. Por alguns segundos, hipnotizado que estava, Herculano nem percebera que sua vizinha já estava justificando o motivo de sua madrugadora visita. Uma viagem inesperada, coisa de família, que exigia que Emília se ausentasse de casa por uma semana. O peixe teria que ficar. Não tinha como ser transportado.
- Herculano, meu bom vizinho, tome conta do animal para mim. Será uma viagem rápida, não deve passar de 7 dias. Sim?
O peixe, que a essa altura já devia desconfiar que falavam dele, continuava tremeluzindo sua cauda e a olhar fixamente na direção de Herculano. Tanto charme não poderia resultar em outro desfecho: o homem fora fisgado. Herculano que jamais fora dado a animais e que o contato mais próximo que já tivera com um peixe fora em um rodízio de comida japonesa, não se rendeu ao espírito superior do pequeno animal e resolveu aceitar o desafio de ser o seu tutor pelos próximos dias. Não seria isso que atrapalharia sua busca pelo equilíbrio áureo entre o corpo e a mente.
- Fique tranquila. Ficarei com o peixe.
- Deus lhe recompensará, homem bom e justo - disse isso e lhe entregou um curioso objeto juntamente com o aquário. Um pequeno recipiente de acrílico contendo minúsculos grânulos de coloração ligeiramente avermelhada.
- O que faço com isso? - perguntou um desavisado Herculano que até então havia considerado cuidar do peixe como quem considera cuidar de um taco de beisebol. Ainda não havia lhe ocorrido que um peixe exige mais cuidados que uma boa porção de água fria. Um peixe, assim como ele, tinha necessidades fisiológicas complexas, para as quais todo cuidado de Herculano seria pouco.
- É para dar de comer ao peixe, homem. Para quê mais serviria? - Emília era do tipo de gente que não tolerava certas perguntas - Você deverá alimentar o peixe com 8 dessas bolinhas por dia, senão ele morre como os outros.
- Outros?
- Sim, os outros peixes. Já tive outros peixes e já fiz outras viagens. Até agora nenhum sobreviveu. Mas a culpa foi minha que confiei nos outros vizinhos. São todos uns pulhas, que não sabem cuidar nem de si próprios. O senhor não parece ser como eles. O senhor ao menos tem um emprego, ao que me parece não fuma, não bebe e tem hábitos noturnos razoavelmente silenciosos. Uma grande sorte a minha encontrá-lo livre em casa por estes dias. Minha e do peixe.
- Senhora, creio que exageras. Nunca lidei com um peixe antes, não seria mais conveniente...
- ...tenho que ir agora, homem. Não seja parvo como os outros e cuide bem do peixe. Lembre-se bem: oito bolinhas destas são suficientes. Com 7 o bicho morre de fome, com 9 seu corpo não aguenta. São 8, nenhuma a mais, nenhuma a menos. Alimente-o sempre pela manhã. Conto com o senhor! Obrigada e passar bem!
E passou.
Deixou um Herculano ainda sem reação ante uma porta semi aberta.
Se havia uma coisa nessa vida que tirava o pacato Herculano da equilibrada tranquilidade a que estava acostumado, era quando o desafiavam para alguma coisa. Herculano era o tipo de homem que podemos chamar de competitivo, a quem lhe satisfazia a mera sensação de ter conseguido, de ter atingido algo que não era esperado que conseguisse. Emília, que aquela altura já devia estar longe, não tinha ideia do efeito que suas palavras tinham surtido no espírito de Herculano. Ele estava resoluto: aquele peixe estaria vivo ao final dos 7 dias, afinal, nunca dera e jamais daria motivo para lhes chamarem de parvo ou de pulha, ainda que não soubesse exatamente o que aquelas palavras significassem.
Arrumou um bom lugar para alocar o aquário: a mesa de centro da sala. Daquele sitio, Herculano poderia avistar o animal de onde estivesse, já que sua casa não era algo que se pudesse chamar de grande, uma vez que morava sozinho e quase nunca recebia visitas.
No começo foi estranho. Herculano tratou logo de botar sua poltrona defronte ao aquário e se pôs a observar o peixe, a estudá-lo com uma curiosidade infantil. Ele sempre se achou um homem com uma rotina rígida, já que seu emprego na repartição não lhe rendia grandes emoções, mas nada que se comparasse a este peixe, cuja vida era um eterno nadar.
O que teriam feito de errado os outros vizinhos? Qual o erro que Herculano não deveria cometer? Decidira que, custasse o que custasse, não deixaria que nada tirasse a vida do pequeno animal. Não sairia de casa naquela semana. Vigiaria o eterno tremeluzir do peixe no interior do pequeno aquário. Faria suas refeições na poltrona mesmo, para não ter que ficar muito tempo longe. A calistenia seria feita por ali mesmo, defronte ao animal, para lhe entreter com algo. Abriria mão das palavras cruzadas para que não houvessem distrações desnecessárias.
Não atenderia a campainha. Não ouviria o noticiário. Não tomaria banho.
Nada disso faria, mas tampouco o chamariam de parvo. Parvos eram os outros, aqueles pulhas! Mas que diabos queria dizer isso? Não procuraria no dicionário. Tinha algo mais importante e urgente com que se preocupar: o peixe. Tinha um nome a zelar: Herculano Barbosa Peixoto!
E assim se fez. Herculano que não costumava fugir dos combinados que fazia consigo mesmo, tratou de fazer tudo o que planejara para não se desgrudar do peixe. O momento de maior tensão, não havia dúvida, era na hora de alimentar o animal. "nada mais, nada menos que 8 bolinhas", Emília havia sido categórica. Herculano dispunha os pequenos grãos de alimento por cima da mesa, com a ponta da língua pra fora, despejava um a um no aquário. "Um"... e o peixe abocanhava o grão, "dois", "três", "quatro", "cinco", "seis", "sete"... "oito". Nenhuma a mais e nenhuma a menos.
Aos poucos foi se acostumando. Parecia que sua vida enfim tinha ganhado uma missão, algo pela qual realmente valia a pena lutar. Devia ser aquilo que chamavam de sentido, de propósito, de missão. Herculano descobrira, enfim, que nascera para zelar por aquele peixe. Estava amalgamado a ele.
Lá pelo quinto dia passou a não dormir mais. Passava a noite toda admirando o peixe. Adorando-o. Ele, que nunca fora religioso, agora rendia graças ao animal, graças por sua nobreza, por sua magnanimidade, por sua santidade.
No sexto dia tivera um surto ao pensar que faltava tão pouco. No dia seguinte a vizinha retornaria e sua missão haveria sido cumprida. Seu nome estaria honrado e não lhe chamariam de nomes cujo os quais já não se lembrava quais eram, mas que não lhe soavam nada bem. Mas o que fazer agora que já não vivia, senão pelo peixe? Não conseguia pensar.... Quem não come, não raciocina e comer era algo que já não fazia.
(...)
O dia seguinte amanhecera cinza. A água caia torrencialmente e tornava mais difícil a chegada dos ônibus no terminal rodoviário. De um dos primeiros ônibus descia Emília com uma pesada mala de mão. Estava cansada da tumultuada semana que tivera. Detestava viajar às pressas, sobretudo quando o assunto era tão desagradável como fora aquele. Em alguns minutos já estava dentro do táxi que a levaria para sua casa. De repente, se lembrou do peixe. Fazia uma semana que não se lembrava do pobre animal. O pobre do vizinho parecia ter acreditado naquela história de que todos os seus peixes haviam morrido na mão dos outros vizinhos. Dizia isso pra todos para impressioná-los e ver se tomavam mais cuidado.
Pediu ao táxi que parasse na porta do vizinho. Queria resolver a questão do peixe e voltar logo para casa. A chuva diminuíra um pouco, mas o guarda-chuva ainda se fazia necessário. Tocou a campainha que, como sempre, dindondeou. Ninguém atendeu. O vizinho devia ser mais um parvo daqueles a que ela já estava habituada e devia estar em algum canto com alguma rapariga. Não ficaria ali plantada feito uma toupeira velha e ainda por cima, na chuva. Voltaria mais tarde.
(...)
Se Emília fosse um pouco mais perspicaz, perceberia que a porta estava aberta. Se tivesse dispensado cerimônias e entrado, teria visto uma sala de estar empoeirada onde repousava uma mesa de centro não menos empoeirada. Se Emília desse alguns passos e reparasse bem, poderia ver parado, pálido, de boca aberta e olhos esbugalhados, um homem morto com um frasco de acrílico completamente vazio pendendo em uma das mãos. Se Emília se inclinasse e mirasse em direção ao aquário, veria um peixe completamente alheio ao mundo ao seu redor, fazendo aquilo que melhor sabia fazer: nadar e somente nadar, já que era um peixe e nada mais que um peixe. Agora, se Emília tivesse o improvável dom de ler pensamentos de pessoas mortas, veria que Herculano morrera em estado de graça: o peixe sobrevivera os 7 dias, graças aos seus zelosos cuidados. Ele mantinha-se honrado. Não era um parvo. Não era um pulha. E jamais iria se separar do peixe.
Genial! Acho até que me identifiquei com o Herculano. (e essa calistenia só pode ter vindo do Prof. Jirafales!)
ResponderExcluirHahaha... sem dúvida, Alexandre. Bom saber que nossas referências são as mesmas..rsrs
Excluir2 Pulhas telespectadores de Chaves kkkk, calma, só to zuando, assisti muito Chaves. Ótimo Texto Lários
ResponderExcluirEu nem credito que você tenha lido, Risa. Afinal, são bem mais que 6 linhas! Onde vamos parar desse jeito?
Excluirkkkkk, no inicio da internet (pelo menos eu achava que era o inicio), eu não lia nada na net com mais de 6 linhas....sempre era um pessoa que se achava o escritor, o poeta, o tal rssss
ExcluirHoje as pessoas tem certeza que são Escritores, poetas e os tais...
Não sei vc, Risa... mas eu tenho... aiai..
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