Tinha uma sapatilha que eu adorava. Não era lá grandes
coisas, mas ia bem com tudo, era bonitinha, confortável. Dia desses calcei e
senti que algo cedeu. Um rasguinho na lateral, droga. No outro dia levei no
sapateiro da rua. Mostrei a sapatilha, ele balançou a cabeça enquanto eu
explicava. “Olha, moça”, começou ele. “Não vai dar”.
Como não daria? Uma sapatilha, um rasgo, algo simples, só
colar. “Você não faz esse tipo de serviço?”. O moço me olhou com a expressão de
quem ia me dizer uma verdade sofrida. Algo como: vou te falar isso, mas vai
doer escutar. “Eu posso até colar, mas ela não vai durar”. Seguiu-se aí a explicação.
“A sapatilha é fraca, já está cedendo do outro lado. Se colar aqui vai
arrebentar acolá”. E blá blá blá.
Ainda insisti. E ele lançou mão de um argumento convincente.
“Não me custa ganhar 10, 15 reais nesse serviço. Mas estou pensando no seu bem.
Não vai adiantar um remendo, se depois ela vai ceder de novo. O negócio é
desistir, partir para outra”, brincou, semissorriso nos lábios.
Daí em diante eu teria dois caminhos. Dar uma de criança
birrenta, mimada e imatura, que, contrariada, bate o pé exigindo que se faça
sua vontade. Nessa sapataria ou em outra, dane-se. Ou então, refletir, ponderar
e avaliar as coisas sob uma ótica mais madura. Sim, eu gosto da sapatilha. Sim,
ela me fez feliz. Sim, nos demos bem por um tempo, mas, oras, não me serve
mais. Seja pelas qualidades que lhe faltam, como a resistência do material,
seja pelas inevitáveis sequelas do tempo.
Difícil, eu sei. A gente se apega, acredita que aquilo que
nos faz feliz tem que continuar nos satisfazendo assim, meio que pra sempre.
Isso é sobre uma sapatilha, mas não só. A gente se apega também em amizades,
empregos, amores e possíveis amores. Ilude-se e, agarrado nessa ilusão, insiste que
tem que ser. Que o não desejo do outro, ou a falta do outro, não é algo a se
considerar. A gente passa por cima das verdades apresentadas cruamente (e
cruelmente), tapando os ouvidos enquanto grita lá lá lá, como criança do Maternal,
querendo fazer valer somente as nossas verdades. Queremos. Punto e basta.
No final, agradeci ao sapateiro. Como teria agradecido
qualquer um que me falasse de forma sincera, e até doce, que não dava. Que me
apresentasse os fatos assim, por mais que doesse. Que até podia rolar um
remendo. Uma costurinha, uma cola de sapateiro tapando os rasgos. Mas que
arrebentaria hora ou outra. Isso teria me consumido menos tempo, menos energia.
Sim, eu sei. Não devemos depositar no outro essa responsabilidade. Nem todo
mundo percebe que não dá e, mesmo percebendo, consegue assumir. E nem precisa
assumir. Dói na gente. Machuca também no outro. Parte de nós também o encargo de
perceber que não funciona mais. Que rasgou e que o conserto não dá conta. Muito
mesmo antes de levar para o sapateiro.
Achei bonita a atitude. “Eu poderia levar uns 10, 15
reais nesse serviço”. Assim como: "eu poderia te levar em banho maria para
sempre". Ou: "sei que é o que quero, mas sei que não é o que você parece querer". Assim como: "eu poderia fechar os olhos para o fato de que não te quero mais". Achei singelo,
simples.
Não passo a exigir do outro a sinceridade do sapateiro. Nem seria maduro. Mas posso carregar comigo a experiência e a decisão de assumir esse papel. Vez ou outra, quando o outro me fita com olhar pidoncho e voz embargada, mostrando o sapato rasgado na mão, posso sim responder que não, não vou colar. Por mais que doa. Não vou colar porque, oras, não vai colar.
Não passo a exigir do outro a sinceridade do sapateiro. Nem seria maduro. Mas posso carregar comigo a experiência e a decisão de assumir esse papel. Vez ou outra, quando o outro me fita com olhar pidoncho e voz embargada, mostrando o sapato rasgado na mão, posso sim responder que não, não vou colar. Por mais que doa. Não vou colar porque, oras, não vai colar.
Não é a toa que continuo sua fã. Ontem percebi que a minha sapatilha (a literal) tinha um rasgo. Agora estou repensando se vou ou não no sapateiro.
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