O galo canta e o sol se levanta.
Lucinha ouve os passos da mãe pela cozinha. Ela se move lentamente na cama. O braço
direito ainda lhe dói do dia anterior.
O cheiro forte de café invade a
casa. “Onde será que ele está?”, Lucinha se pergunta. A mãe de cabelo
desgrenhado não pára, seus movimentos parecem automáticos, difícil imaginar que
algum dia ela deixou de ser mãe. A expressão dura na cara revela os sofrimentos colecionados ao longo da vida.
“Vá menina, tome seu café e vá
buscar por ele”. Em silêncio, Lucinha aceita sua sina. Mais uma vez subiria a
estradinha, olhando atenta às margens. Seria bom se ele estivesse perto, ao
menos isso, mas é claro que seria pedir demais.
Hoje a farinha foi pouca, ainda
estava com fome quando saiu de casa. As pessoas olham a pequena vizinha com um
misto de compaixão e ódio. O bom da figura miserável é que faz o menos pobre se
sentir mais afortunado e poderoso. “Lá vai a menina buscar aquele imundo”, diz
a dona Tiana ao seu marido.
Lucinha caminha cabisbaixa,
sentindo todo o peso do desprezo de que é vítima. “Um dia, tudo vai mudar no
dia em que ele se for...queria que esse dia chegasse logo”. Uma rolinha pousa
perto, a bichinha tão bonitinha, mas boa de comer. “Virgem Maria! Que foi que
pensei?! Deus me perdoa por pensamento tão ruim assim!”
Ouve-se uma gritaria ao longe, só
pode ser ele. Zé Loló tenta acalmar o homem que com um facão grita algo
indecifrável. Ele mal se mantém de pé, mas ainda tem força para levantar o
braço em tom de ameaça. “Lucinha! Ô Lucinha! Venha cá, tire esse infeliz daqui!”
A menina nada diz, fica parada em frente ao homem que a ignora. “Tu não tem
vergonha, homem? Deixe de conversa fiada e vá se embora”.
O homem resmunga e parece ceder
aos pedidos do dono do bar. A perna direita atropela a esquerda e o homem cai
sem proteção sob a terra. Indiferente, Lucinha se aproxima do corpo. Ele grita
com a pedra e se apóia no frágil corpo da menina para se erguer. “Ô peste! Tu
não tá vendo que meu óculos caiu?” Quieta, a menina apanha o objeto.
Os dois caminham com dificuldade.
O corpo da menina arqueado sustenta quase os dois. Crianças com uniforme
andam na contramão, a escola fica na cidade. Não que ela sonhasse com aquilo, só
não queria ser obrigada a sentir aquele cheiro horrível do hálito dele. Aquele odor
lhe causava náuseas, e pela manhã, era ainda pior.
Um gemido e de repente o enorme
corpo desaba. Da boca, jorra uma água que encharca a camisa. Os olhos já tão
sem vida, some com o restinho de alma. A menina olha a cena atônita. Não sabe
se fica ou se corre. O coração palpita no peito “Nossa
Senhora! Eu matei ele?” “Bora menina! Se avexe, vá buscar
tua mãe!”, lhe ordenam. A menina obedece e sai correndo pela estrada de terra.
Comecei a ler e logo na terceira linha tive que parar pra tomar um café! Retomando o texto, lembrei da Rachel de Queiróz. Nunca tinha lido nada dela, no mês passado eu li e achei bem legal a forma como descreve as durezas do dia-a-dia!
ResponderExcluirpoxa, que honra!!! obrigada, Alexandre!
ExcluirLindo!
ResponderExcluirUau, Sirley! Que texto bonito!
ResponderExcluirSó li agora, por pura negligência minha... mal sabia o que estava perdendo!