terça-feira, 15 de novembro de 2016

Lado B

               

               Hoje era seu aniversário e estava preparando algo especial. Já eram 17h15 no relógio e hoje decidira que iria fechar a drogaria às 18h. Sabia que seu pai não itiaa gostar, pois sempre dizia “é entre as 18h e 19h que as grandes vendas acontecem, porque as pessoas estão saindo de seus trabalhos e indo para a casa”. Desde que assumira a loja, não havia constatado muito bem se isso era ou não verdade, e além disso, hoje fazia 42 anos, mais precisamente às 22h38, e a velha botica que fora do avô e depois do pai, agora era sua e tinha a liberdade de fazer o que bem entendesse.
            Batia os dedos ansiosos para o relógio andar mais rápido, mas com um misto de alívio e angústia, pois o último carregamento de esmaltes iria chegar ainda hoje. Ansiava por esse carregamento há muito tempo. O esmalte amarelo da coleção nova da “MagicNails” faria parte dessa noite tão especial.
            A bexiga apertava e resolveu ir ao banheiro. Como seria rápido não achou necessário fechar as portas da loja, até porque nesse horário os moleques do bairro estavam na escola e o máximo que poderia esperar de cliente era alguém que ficaria frustrado em ver o resultado dos números digitais na balança, após um final de semana regado a cerveja e carne.
            O banheiro era mal iluminado e isso era uma das coisas que mais lhe incomodava. Não tinha janelas e parecia totalmente improvisado. A caixa d’água da descarga, aquelas de puxar a cordinha, já estava encardida e gotejava, pendendo torta para um dos lados. O espelho era daqueles mais vagabundos possíveis, não mais de vinte centímetros de comprimento, e tinha a borda laranja. Sem querer, olhou seu reflexo e ali ficou absorto em seus pensamentos. Os cabelos oleosos e bem negros já quase chegavam nos ombros. Seu cabelo era seu novo xodó. No entanto, aquela careca no meio da cabeça era algo que não havia previsto quando era mais jovem. Quanto a isso, já não tinha o que fazer. Os olhos azuis estavam caídos e passavam uma sensação de cansaço e velhice. O peso da idade já estava lhe atingindo. Talvez não devesse passar tanto tempo se olhando. Quando não se olha muito no espelho, é possível criar uma imagem de quem achamos que somos, e não precisamos ser quem a realidade nos mostra. Talvez fosse exatamente por isso que tinha seu segredo tão bem guardado.
            Um barulho lá de fora chamou sua atenção, e quase que por um segundo, achou que a imagem do espelho continuara olhando-o, mesmo quando virou a cabeça. Saiu apressado do banheirinho, com o coração palpitando. “Chegou, finalmente chegou”, dizia de si para si. Assinou correndo o documento e mal olhou para a cara da moça que realizava a entrega. Como se fosse um dia de natal e ainda uma criança, pegou uma faca e rasgou a fita adesiva que selava a caixa ao meio. Procurou pela embalagem que dizia “Doce de Ovos”. O esmalte reluzia um amarelo gema bem forte. Ficou uns dois minutos olhando para a beleza daquela cor. Enfiou o frasco no bolso, caminhou para os interruptores, apagou a luz, pegou um frasco de tamanho médio na prateleira, suas chaves e começou a fechar a drogaria.
            Verificou duas vezes se havia trancado a porta e começou a andar rapidamente para sua casa. Apertava o frasco no bolso como se fosse um pomo de ouro prestes a fugir. Refez mentalmente seus planos: tomaria um banho de banheira, com direito a velas e sais aromáticos. Abriria uma garrafa do vinho que estava na promoção, colocaria seu álbum preferido para tocar na vitrola e começaria sua noite.
            Morava na casa antiga de seus pais, desde que a mãe, já viúva, abandonou também o planeta Terra. Era desses casarões antigos com direito a porão, banheira de louça, cristaleiras antigas e tudo o mais. O piso range a cada pisada, mas não trocaria seu lar por nenhum outro lugar no mundo. Até porque ficava a somente dois quarteirões da farmácia e poder morar a cinco minutos do trabalho é um grande luxo hoje em dia.
            Chegou em casa meio sem querer chegar. Quando se planeja algo por muito tempo não se tem mais certeza de querer fazer tudo aquilo, pois depois de feito, não teria mais pelo que esperar e cairia naquela rotina monótona e sem cores do dia a dia. Hesitou alguns segundos com a chave na fechadura, mas por fim lembrou-se de seu esmalte novo e abriu a porta rapidamente.
            Foi fazendo cada etapa de seu plano calmamente, prestando atenção em cada detalhe e apreciando aquele momento tão esperado. Afinal, não era todos os dias que podia se dar ao luxo de ter uma noite como essas. Ligou as torneiras da banheira e jogou seus sais de lavanda e camomila. Arrumou a penteadeira, que era da mãe, com o kit de maquiagem, o secador de cabelo, as escovas, os grampos, o laquê que se lembrara de pegar apressadamente na loja, “ainda bem, pois se eu o tivesse esquecido, teria acabado com minha noite”, tudo milimetricamente ajeitado. Bem no meio, seu esmalte amarelo estava pronto para ser passado. Em cima da cama a roupa escolhida e logo abaixo o sapato.
            Durante o banho, Tony pensava em como seria feliz se pudesse fazer seu ritual todas as noites. “Não sei o que meus pais fariam se eu o fizesse. Mas hoje já sou dono da minha vida, então, por que não pensar em fazer isso mais vezes?”. Sabia que eram raros os momentos como esse, nos quais se sentia tão realizado. Por fim, quando a pele já estava totalmente enrugada, os cabelos lavados e as cutículas moles, levantou-se e saiu da banheira, deixando pingar água no tapete.
            Secou-se, colocou um roupão velho, mas confortável, listrado de branco e verde, e sentou-se em frente à penteadeira. Ali, um grande espelho emoldurado o olhava. Abriu a garrafa de vinho tinto, um Cabernet Sauvingon bem frutado, e começou a arrumar os cabelos, ou o que lhes restava. Penteou-os, passou alguns cremes e começou a dar-lhe volume. Com o secador e escovas, levantou-os de um jeito que parecia pouco provável. Sabia que a moda dos cabelos dos anos 80 era horrível, mas era exatamente por isso que gostava. Completou o penteado com uma peruca tão negra quanto seus próprios cabelos.
            Virou uma taça de vinho e demorou-se no espelho por alguns minutos, observando seu penteado de vários ângulos. Achou que dessa vez havia se superado. “Eu me superei”, disse de si para si, ou talvez tinha sido o espelho quem disse isso.  Pensou que seria melhor maneirar na bebida. Fechou os olhos e esparramou bastante laquê por todos os lados. Adorava aquele cheiro, de tia-avó e festa de família.  
            Abriu o estojo de maquiagens, cheio de pincéis diferentes e começou a se pintar. Passou a cola sobre a sobrancelha, aplicou a base e começou a se transformar em si mesmo.  O batom escolhido foi um roxo bem escuro, pois ficaria bom em contraste com as unhas amarelas. Após finalizar com o curvex, levantou-se da cadeira e buscou o talco. Jogou um pouco dentro da meia calça preta e começou a vesti-la, cuidadosamente para não furar. Subiu-a até acima dos joelhos. Vestiu seu espartilho e delicadamente prendeu-o às meias. Calçou as sandálias, novinhas, cheirando a recém compradas. Abotoou no pescoço o colar de pérolas que também fora de sua mãe. Tomou mais uma taça de vinho e sentou-se novamente à penteadeira.
            Abriu o vidro do esmalte mais lindo que já vira. Não que particularmente gostasse de amarelo, mas a ideia de ter aquela cor sobre as unhas, que já estavam crescendo há duas semanas, era uma ideia que não conseguia largar. Cheirou o esmalte, observou-o por alguns segundos e começou a pintar pelo mindinho da mão esquerda. Foi passando suavemente o pincel por todos os dedos, até que havia pintado as duas mãos. Olhou-as meio de longe e soprou uma por uma. Estava magnífico.
            Levantou-se e olhou-se no espelho, que o olhava de volta com um olhar compenetrante. Da unha dos pés ao último fio de cabelo: Tony, você está magnífico. Agora faltava a última parte para sua noite ficar completa. Caminhou até a sala e com todo o cuidado do mundo, tateou pelos discos, sem deixar estragar as unhas. Pegou o escolhido com a ponta dos dedos e meio roboticamente colocou-o na vitrola. Aquilo era uma pepita de ouro: a trilha sonora de The Rocky Horror Picture Show. Colocou a agulha no disco, aumentou o volume e voltou para o quarto, mas dessa vez, desfilando. Olhou-se novamente no espelho, enquanto tocava “Sweet Transvestite”. Abriu as mãos pintadas e colocou-as próxima ao seu rosto maquiado, com o amarelo vibrante de frente refletindo e dando cor a todo o seu visual preto. Tony era uma mulher de dar inveja a qualquer Tim Curry. Terminou a garrafa de vinho e comemorou ali seu aniversário, de frente para si mesmo. O disco continuou a tocar a noite toda.
           




                

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