terça-feira, 29 de março de 2016

fraca

Magra, pálida, lenta.
Assim me sinto e é desse jeito que estou.
Resultado de uma semana com três dias de internação e outros quatro de repouso.
Agora tentando recuperar o que gastei naqueles cinco dias com dor, febre, vômito e ausência total de apetite.
Pra quem pesava 64 kg e estava perdendo as roupas, emagrecer até que não foi tão péssimo, o duro é se continuar ficarei como aquelas mortiças.
Logo eu que sou draga, comia até pedra temperada.
Ironia danada foi justamente às pedrinhas que me deixaram assim...
Ainda digerindo esta semana e acontecimentos.
Dá uma vontade enorme de chorar as pitangas desta semana.
Descer a lenha.
Não desço.
Resta repouso.  
Conversa com ela.
Porque sim, mesmo com 35 anos sou a filhinha da mainha.
 E poderia ter 70 e ela 90 ainda seria assim: filhinha da mamãe.
Quando o sofrimento e dificuldade se revelam muito cedo a gente aprende a contar as dificuldades e ver quem é quem na sua história.
Eu conto com ela, não somos perfeitas, somos mãe e filha e amigas.
A vida lapidou esta afinidade em meio ao caos.
Somos pau para toda obra independente do tempo e do lugar.
Então ela se vai, mas liga de manhã, de tarde e de noite.
Então não tem outra coisa a fazer senão ver tevê.
Muitos filmes, vários filmes.
E de repente veja tem até especial da Lava Jato.
 A enorme preocupação da “emissora-partido-político” em revelar como a vida pessoal dos integrantes desta operação foi transformada, no quanto o juiz é discreto e outros adendos curiosos que tenho preguiça de lembrar.
Comparação com operação “Mãos Limpas”.
E óbvio brasileiro patriota e obcecado com a corrupção não gosta de ser ele mesmo, tem que se comparar com europeus ou americanos, fica mais bonito né não.
De repente, atentados.
Terrorismo que imobiliza, acua e deixa-nos mais servos.
Não agora, mas no futuro. É quase certo.
Palavra de ordem e progresso: impeachment, hipóteses e sede pelo poder.
Seja como for, vai ter luta.
 Principalmente para quem acessa qualquer serviço público do Estado e vê que corrupção feia, desprezível, combatível e punitiva é para os outros!
Quando a corrupção for perto de mim ou for minha disfarço de acesso ao direito.
Direito acessado através de um conhecido, ou de um amigo que conhece outro amigo, ou vizinho de um amigo ou meu amigo desde infância.
Para quem não nasceu com a “rede” formada e tem cara de pobre, o convívio com todos os níveis de corrupção que nos empobrece, adoece e entristece é dia a dia.
Ou aquela corrupção que sobrecarrega o próximo - colega de trabalho - porque não quero me desgastar quero mostrar como sou bom, meu status no avental e meu perfume importado.
Também mostrar autoridade para os pobres coitados que atender: chama segurança, aquela não atendo então enrolo/não faço deixa para o próximo plantão.
Por isso não tem nexo levantar bandeira contra, somos violados e violentados pela estrutura corrompida.
Lembrança é assim, seja agora ou daqui anos, nem agulha passa batido.
E vem o cansaço, sono.
Mais febre e vômito.
Passou, chega o sol.
Chega domingo.
Mais de uma semana sem música.
Melhorando, assim, aos poucos.
Volto, dia curto com elas, mesmo fraca foi.
Segue mais outro dia -  hoje - ainda bem, bom. 
Então vêm as hipóteses:
No caso de confirmação do Impeachment: vai ter luta.
Num possível rompimento de alianças: vai ter luta.
Em caso de veto do Impeachment: vai ter luta.
Todo congresso nacional seja deposto (dificílimo) dos cargos: vai ter luta.
No término da Lava Jato: vai ter luta:
Na ascensão da direita ultraconservadora: vai ter luta.
Na continuidade da crise e aumento do desemprego: vai ter luta.
Por que luto é mesmo um verbo.
Vivenciado todos os dias da existência.
Seja com ou sem fraqueza.

Luto.

domingo, 27 de março de 2016

Quando a maré encher

A grande onda de Kanagawa - Hokusai
“Há marés no corpo”, acordou se lembrando do livro da Virginia Woolf. Que frase genial, era assim que se sentia. Se hoje o corpo não doía, estava ágil e pronto para qualquer desafio, ontem era diametralmente o oposto.

Luiza se levantou e cumpriu o ritual matinal de higiene. Enquanto bebia seu café, lembrou-se da recomendação de ir perguntar qual era o nome da planta que cuida da casa. Chegou próxima ao pé de hortelã e antes que pudesse formular a pergunta, ouviu em sua cabeça “Josephine”.

Até é possível viver sem objetivos. Mas para isso tem que se ter humildade em aceitar o prato que a vida lhe oferece, se o que importa é apenas “comer”. No entanto, Luiza, ao contrário, era ambiciosa e queria escolher, queria se destacar e ser boa em alguma coisa. No quê? Não sabia bem ao certo, mas sabia que a mediocridade não era pra ela.

Será que o amor por sua planta Josephine seria o suficiente para que ela vingasse e crescesse forte? Será que existe mesmo alguma relação entre a boa saúde da planta com o resto da harmonia da casa? A vida andava tão estagnada que Luiza estava acreditando em tudo: horóscopo, livros e palestras de autoajuda, conselhos de filósofos antigos, textos religiosos, enfim, avacalhou geral,  e todo tipo de superstição que passasse por seu conhecimento, nada era descartado.

Gabriela, percebendo a perdição da amiga, resolveu presenteá-la com uma consulta de cartomante. Era a primeira vez de Luiza. A cartomante não tinha o visual exotérico que ela idealizara, mas falava em tom severo e misterioso, como se pode imaginar. Parecia saber muito da sua vida (ou será que as moças que se consultam com ela estão imersas em problemas parecidos e os clichês são universais?). Independente de ser verdade, a mulher a intimidava e disse que sua energia poderosa podia mover o mundo. Que ela, a Luiza, era a responsável pelo travamento da própria vida, que era ela mesmo que estava se punindo, que tudo isso era desnecessário já que ela tinha muita sorte.

Não foi fácil pensar nas próprias feridas e sentir-se responsável por não ter o que desejava. Primeiro esbravejou contra a cartomante, depois se lembrou de que não acreditava nessas coisas. Por fim se voltou para uma das práticas mais antigas da humanidade: a meditação. Queria ficar quieta e ouvir o que Deus (ou algo assim) tinha para lhe falar, o que tanto fazia de errado na vida.

Na verdade, ela não conseguiu racionalizar o que aconteceu depois de algum tempo de prática meditativa. Mas era inquestionável que estava mais serena e não sentia mais ataques de ansiedade. Luiza começou a enxergar algumas possibilidades reais de caminho, estava mais sociável e parecia estar atraindo o tipo certo de gente.

Josephine que andava com poucas folhas, parecendo uma planta moribunda, de repente presenteia Luiza com novos caules e folhas. A moça não acredita muito nessas coisas, mas que um novo ciclo parece se iniciar, ah, isso ela não tem dúvidas.

terça-feira, 22 de março de 2016

O homem do conserto

No inicio era a cor. Depois só ficou o branco. 

O branco das paredes. O branco dos azulejos. O branco dos lençóis que repousavam sobre leitos brancos. O terrivelmente branco da palidez do avô. O branco do teto, o branco das louças, o branco do ar e o branco imaculado do avental do homem do conserto. Aos olhos do neto, o avô sempre fora inquebrantável, uma fortaleza, um gigante. Ao menos até o dia em que tudo ficara branco.

A partir daquele dia o avô passara a ter uma existência horizontal. Uma existência ligada a fios, tubos e botões. E sobretudo uma existência assistida pelo homem do conserto - não era assim que o avô sempre se referia aquele homem? Ao homem que vinha para lhe conectar novamente ao mundo? Teria aquele homem poder para tanto?

Já fazia um tempo que o neto percebera que o avô vinha mudando. Os passeios foram rareando e, nos últimos tempos, deixaram de existir. A risada espalhafatosa virara um sorriso melancólico, de quem parecia querer mais chorar do que rir. As visitas ao homem do conserto passaram a ser cada vez mais frequentes. 

O neto não entendia bem o que aquele homem consertava. O avô nunca tinha permitido que o neto o acompanhasse. Sempre dizia que o homem do conserto não gostava de crianças. O fato é que o avô invariavelmente voltava com um saquinho cheio de pequenas cápsulas (balas e caramelos? Por que diabos o avô esconderia balas e caramelos dele?) e depois de alguns dias parecia mesmo que retornava a ser o que era.

Daquela vez a visita estava demorando demais. O neto ia visitar o avô naquele universo branco e quase não o reconhecia. Seria ainda o seu avô que estava ali? Um homem aparecia de tempos em tempos e, através de curiosos penduricalhos, parecia entrar em contato com o avô. A mãe, sempre sua companheira nas visitas ao mundo branco, lhe disse que aquele era o homem do conserto. Era incrível! Bastava o homem do conserto vir para que tudo naquela sala branca se transformasse, exceto, é claro, a branquitude. Esta só aumentava.

         Aumentou tanto que, passados alguns dias (ou seriam meses?) o neto passara a ver tudo como uma grande névoa, mal distinguindo uma coisa da outra. Era tudo uma sufocante massa branca. E no meio de tudo isso, seu avô, ou aquele que diziam ser seu avô. 

Não havia relógio e tampouco chegava ali a luz do dia. O tempo era marcado pelas visitas do homem do conserto. Pela manhã – e invariavelmente despertando o neto - o homem do conserto chegava, manuseava com esmero seus penduricalhos, trocava meia dúzia de palavras com a mãe e ia embora. Vinha uma segunda vez anunciando a tarde e uma terceira vez trazendo consigo a aurora. Sempre realizava os mesmos procedimentos e nunca dirigiu uma palavra ao neto. O avô devia ter razão. O homem do conserto não gostava de crianças. 

Até que numa noite, depois de incontáveis noites, todas elas dormidas ao lado do avô, o neto foi invadido por pesadelos. Ouvia barulhos de gente, de móveis se arrastando, de vozes (seria a do homem do conserto?), mas não sabia dizer se vinha do sonho ou do mundo branco. Tudo se confundia. Acordou sobressaltado. Divisou sua mãe sentada ao seu lado, olhando ternamente para ele, enquanto o acariciava. O avô estava no leito. (O avô estava no leito?).

Branco.

Faltava alguém. O neto sempre acordava quando ele chegava. Dirigiu-se a mãe:

            - O homem do conserto não vem?
            - Não, querido, não vem. Não há mais o que ser consertado...

segunda-feira, 21 de março de 2016

Só na correria!

Desculpe não ter algo interessante para escrever pra você, preclaro leitor, preclara leitora!
Tenho vivido dias de correria, e infelizmente, só lembrei hoje que hoje é dia 21, dia que me foi confiado, anos atrás, para partilhar contigo meus textos e pensamentos!
Elogio as pessoas que tem publicado cada vez mais obras de arte. Num espaço, entre uma cidade e outra, da rádio pra cá, ou de cá prá lá, acesso no celular e me deleito com seus posts.
Não quis deixar de publicar. Mesmo não tendo nada pra dizer.

Deixo, porém, meu afetuoso abraço à todos e todas que tiverem acesso a esse pequeno texto.
Tenha um maravilhoso fim de março, e lindo início de abril!
Nos falamos no mês que vem! :)

P.S.: O vídeo não poderia faltar!
Hoje, com Dire Straits, So Far Away!





domingo, 20 de março de 2016

Menos sangue, mais chocolate

Falta uma semana para a Páscoa. Não sei muito sobre a Páscoa. Sei que era uma festa que já existia nos tempos de Cristo, que por coincidência, dizem, ressuscitou no domingo da festa. Também sei que a data é calculada de uma forma complicada, fazendo com que sempre caia em um domingo, precedido de dias marcantes.

A sexta-feira santa é o dia que não se pode comer carne como símbolo de penitência, para isso muitos trocam o bife por uma farta bacalhoada. Talvez a penitência sejam as prestações em que se deve dividir a conta do banquete.

Mas uma prática que me intriga ocorre no sábado. Tudo bem que como boa parte das tradições religiosas, essa também vem perdendo força, mas sábado é o dia da malhação de Judas. Muito condizente com o perdão e o amor ao próximo pregado pela religião, católicos fazem um boneco de pano e praticam o linchamento simbólico, instigando crianças a apedrejar, espancar, esquartejar e queimar a representação de um ser humano.

A prática não precisa se restringir a Judas. Talvez seria meio desestimulante, ninguém conheceu o cara, só ouvem falar. Não sei se por diversão ou utilidade, mas suspeito que unindo o útil ao agradável, na representação de Judas colocam a imagem de algum odiado da vez. Políticos são sempre bem representados, por vezes algum criminoso que esteja em evidência, uma personalidade de quem não gostam, etc.

Nunca participei de nenhuma malhação de Judas. Histerias coletivas definitivamente não me atraem. De qualquer forma, entre todas as incoerências entre teoria e prática dos católicos, essa é uma que costuma passar despercebida, parece um ato inocente, levado na brincadeira, afinal Judas foi o traidor mor, o malvado indefensável.

Não sei o que Jesus pensa dessa história. O cara perdoou ladrões, defendeu prostituta, ajudou mendigos, era do povão, da galera. Talvez abra uma exceção já que no caso de Judas as consequências foram sentidas por ele na pele, mas o que realmente preocupa são as consequências atuais de se naturalizar e ensinar o linchamento como forma de punição até mesmo para crianças.

De vez em quando algum caso de linchamento no país vem à tona, o que não quer dizer que são os únicos. A barbárie da prática infelizmente é mais comum do que a imprensa nos mostra e indica uma sociedade extremamente violenta e agressiva. Claro, isso não se deve somente a tradição da malhação de Judas, mas transformar o ato em uma brincadeira de criança é uma forma de ensinar desde cedo.

Mesmo em situações que as pessoas não cheguem ao extremo do linchamento, a ideia de que o castigo físico tenha alguma eficácia na punição de um erro é recorrente. Isso reflete a alta taxa de apoio à pena de morte e castigos violentos.

Como forma mais direta vemos como a histeria coletiva transforma pessoas até então pacatas em seres dispostos a aplicar o castigo milenar de Judas em situações cotidianas. Torce para o time rival? Lincha. Praticou algum roubo em área nobre? Lincha. Apoia outro partido político? Lincha. A vizinha é acusada de sequestrar crianças para ritual de bruxaria? Lincha. Ah, era só um boato e a vizinha não tinha nenhuma relação com o caso? Que Deus a tenha e perdoe os linchadores, afinal Deus é amor e sempre perdoa.

É bem comum aceitarmos determinadas práticas que já estão enraizadas na sociedade sem pensar no absurdo que elas representam, ainda assim não custa nada refletirmos sobre o efeito de ações violentas, que pouco a pouco acabam formando uma sociedade extremamente violenta.

Não é difícil imaginarmos alguns nomes que serão homenageados no próximo sábado na malhação de Judas, afinal já tivemos algumas amostras de violência gratuita nas ruas em determinadas manifestações. Acho que vou lançar a campanha “menos sangue, mais chocolate”. Uma vida mais doce vem a calhar ultimamente.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Fazendo Minhas As Suas Palavras

Vamos celebrar
A estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja
De assassinos covardes
Estupradores e ladrões

Nosso suor sagrado
É bem mais belo
Que esse sangue amargo

Vamos celebrar
A estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso estado que não é nação

Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Mas o sangue anda solto
Manchando os papéis, documentos fiéis

Celebrar a juventude sem escolas
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião

Quem me dera ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha

Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade

Parece cocaína
Mas é só tristeza
Talvez tua cidade
Muitos temores nascem
Do cansaço e da solidão

Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais

Todos os dias quando acordo
Não tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo

Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras
E sequestros

Quem me dera ao menos uma vez
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado

Nosso castelo
De cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda a hipocrisia
E toda a afetação
Todo roubo e toda indiferença
Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã

Eu não esqueço
A riqueza que nós temos
Ninguém consegue perceber
E de pensar nisso tudo, eu, homem feito
Tive medo e não consegui dormir

Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração

Se lembra quando a gente
Chegou um dia a acreditar
Que tudo era pra sempre
Sem saber
Que o pra sempre
Sempre acaba

Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado
De absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos
O hino nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão

Já que você não está aqui
O que posso fazer
É cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos
Lembra que o plano
Era ficarmos bem

Vamos festejar a inveja
A intolerância
A incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente
A vida inteira
E agora não tem mais
Direito a nada

A humanidade é desumana
Mas ainda temos chance
O sol nasce pra todos
Só não sabe quem não quer

Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isto
Com festa, velório e caixão

Vamos lá, tudo bem - eu só quero me divertir
Esquecer dessa noite, ter um lugar legal pra ir
Já entregamos o alvo e a artilharia
Comparamos nossas vidas
E esperamos que um dia
Nossas vidas possam se encontrar

Tá tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou
Essa canção

E toda dor vem do desejo
De não sentirmos dor

Venha!
Meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão

E eu dizia
Ainda é cedo

Venha!
O amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha!
Que o que vem é Perfeição!

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui


Renato Manfredini Júnior
(27 de março de 1960 - 11 de outubro de 1996)

quinta-feira, 17 de março de 2016

Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas, eu pensei em Maria

Maria é minha aluna do curso de alfabetização. É empregada doméstica, negra, dorme na casa dos patrões, moradores de Higienópolis, um dos bairros nobres de São Paulo. Aquele onde teve protestos contra a construção de um metrô, porque ia atrair "gente diferenciada". Os patrões de Maria vão frequentemente para o exterior. Sei disso porque no final do ano, ela me deu de presente um lenço da Itália. Disse que a patroa sempre ia e da última vez trouxe dois para ela. Maria me deu um porque queria me agradecer pelo fato de eu ter a ajudado a comprar o presente de amigo secreto. Eu recusei o lenço, ela insistiu.
Dias antes desse, na minha aula, passaram a lista de quem queria participar do amigo secreto e Maria não queria. Como era a única que recusou, perguntei novamente e, acho que por vergonha, aceitou. Depois me disse sem jeito que não tinha dinheiro, que tiraria da poupança. Eu corri atrás dela, eu também envergonhada por não ter entendido antes, e dei 20 reais na carteira. Não me achei o máximo por isso, queria só que ela comprasse o presente e que esquecesse. Maria não esqueceu. Na festa de confraternização levou o presente de amigo oculto. E o presente da patroa dela. Pra mim.
Nossa aula é das 19 às 21h. Maria sempre está se desculpando. Ou porque faltou a aula passada, ou porque não poderá ir na próxima, ou porque chegou atrasada, ou porque está cansada. Sempre precisa trabalhar. Os patrões têm muitos jantares, muitas visitas, muitas taças de cristal para lavar e enxugar. “Desculpe, professora, mas sabe como é, teve jantar”. Maria pede desculpas por ficar sem estudar.
Hoje, a caminho da escola, fui acompanhada pelo barulho. Começou com um zunido, crescendo forte, compassado. As varandas gourmets todas batiam suas panelas. As janelas gritavam, em ritmo de revolta. Pensei em Maria. Não era clima para um jantar. Na aula falei sobre poema, expliquei o que era “ritmado”. E ao bater na mesa para tentar exemplificar, ninguém associou com as batidas lá de fora. Ninguém falou de Maria, diferenciada, que hoje faltou. Maria, que às vezes escrevia uma palavra que não sabia e se surpreendia porque não tinha errado, hoje não escreveu, não soube desse ritmo. Maria deve ter feito hora extra, “desculpe professora, mas é que as panelas...”

quarta-feira, 16 de março de 2016

.sambinha do homem amoroso.

eu te dou a flor
o beijo,
ardor
das mais
inquietantes
paixões

velo teu sono
sereno,
te espreito,
mas só por cuidar,
é zelo de quem
bem-te-quer,
olhos pra te
navegar

entrego-te
de versos
o tudo, 
desde 
que me digas
sim,
desde que
sussurres
canções
ou 
um dócil
silenciar,
desde que não
sejas,
ai de mim,
desde que não sejas

mas, tu,
amorzinho,
não ouviu
meu clamor,
desfez meu
apreço,
descamou-me
pele,
eu remetia
carinhos
e tu
castigou

ó doçura, 
agora
perdoe o desajeito,
os gritos, 
o punho,
a pedra,
asfixia,
revolver, 
fivela

é que nesse teu
desejo 
de ser
só tua 
e nada mais,
eu não sei de mim
eu não sei, 
mas,
ai,

pobre deste coração
iludido
que 
se reconhece
teu dono,
teu capataz,
tu,
amor,
sabes que
eu não queria
mas, 
ai,
só logro
fazer 
dicotomia
do nós,
se tua
existência
se torna
fugaz.

domingo, 13 de março de 2016

Semântica

Há tanta filosofia na língua que, nós falantes, mal podemos imaginar.
Depois de quase 5 anos ensinando português para estrangeiros eu tenho uma pequena coleção de histórias, dilemas, dificuldades e curiosidades sobre o processo de aprendizagem dos gringos com a “última flor do Lácio”.

Quer coisa mais filosófica do que explicar a diferença dos verbos ser e estar? (Principalmente para os falantes da língua inglesa)
 Parece fácil. Ser = permanente e estar = temporário. Mas por que Sou professor se amanhã posso Ser fotógrafo?
Por que Sou católico se semana que vem posso Ser do candomblé?
E uma das perguntas mais frequentes: Por que sou casado e não estou casado? Ou então, quando é estou solteiro e quando é Sou solteiro?

É difícil pensar em coisas que realmente são permanentes nessa vida tão transitória; ou ainda é difícil entender que carregamos coisas, títulos e nomes para a vida toda, mesmo quando não os queremos mais.

Há ainda aquelas velhas palavras que arrastam seus sacos de bagagem e que são quase impossíveis de serem explicadas sem uma vistoria nas memórias que elas levam. Foi o caso da palavra “assanhada”, sobre o significado fui questionado essa semana. Seria possível explicá-la sem a visão machista que a cerca?
Ou ainda o significado de “Ele é um galinha” e “ela é uma galinha”.

Uma aluna do Uzbequistão, em uma mesa de um jantar de casamento, ao ser questionada sobre qual trabalho fazia aqui no Brasil não hesitou em responder que nada e arrematou com um sonoro: - Sou vadia! Se todos entenderam o que ela quis dizer já é outra história.

Há de se explicar ainda que, na língua portuguesa, Eu tenho 32 anos – por que são meus, vividos por mim – e não se pode falar que “eu sou 32 anos” e que Eu nasci em 83 – foi minha vontade sair da barriga – e não “Eu fui nascido em 83“(I was born in 83).

Existem aquelas palavras como amor, paixão, saudade, carinho, cafuné, que não precisam de muita explicação. Essas são facilmente entendidas quando sentidas.

sábado, 12 de março de 2016

Os homens são inocentes

25 de fevereiro, marcha de mulheres em Puebla

Entre a Cidade do México e Veracruz fica uma das cidades mais lindas que já conheci, Puebla. Parece pequena, mas tem dois milhões de habitantes. Foi fundada por um bispo espanhol em 1530 e ele dizia ter sonhado com anjos descendo do céu e mostrando o lugar onde deveria ser fundada a cidade, por isso seu nome é Puebla de los Angeles (Puebla dos anjos).

E por essa lenda parte da arte da cidade gira ao redor dos anjos, é um lugar onde se encontra todos os tipos de anjos, figuras talhadas na madeira, pedra e feitas no barro. É uma cidade cheia de história (link), com as melhores faculdades do país, uma natureza incrível, famosa por sua comida e por ser um lugar tranquilo.

Fui algumas vezes porque minha bisavó, Margarita, tinha nasceu lá e minha abuelita dizia que eu puxei parte do meu gênio forte dela, porque dizem que os poblanos são gente brava, que já se defendeu muito seu território.

No mapa feito pelas autoridades Puebla não aparece na rota do tráfico, ou seja, não é um lugar ocupado por traficantes, que não precisam da passar por lá para chegar a outra parte, mas está perto do porto de Veracruz, um dos mais perigosos do mundo por estar dominado por diferentes facções do tráfico, mesmo assim não está no ''caminho'' do tráfico, o que daria a Puebla uma rara tranqüilidade e garantiria seu status de cidade segura.

Aprendi com meu pai que o México não tem apenas um lado, em absolutamente nada. É uma cultura complexa, cheia de curvas e com uma herança tensa, os mexicanos foram dominados e escravizados pelos espanhóis e não se esqueceram disso, tudo o que é dito tem mil lados debaixo da sombra. Minha abuelita dizia que os mexicanos são como a Cidade do México, construída no cimento em cima de um rio, você olha a cidade e parece que está vendo tudo, mas o rio corre por baixo e  você não o vê, os mexicanos não dizem nada diretamente, eles sempre ''dão a entender''.

E nos últimos tempos as coisas ficaram mais estranhas, são diferentes facções do tráfico em pontos importantes espalhados pelo país e controlam tudo, até a imprensa. Isso dificulta saber o número real de assassinatos de mulheres, os jornalistas estão na parede, se publicam sobre os crimes morrem, por isso o silêncio total na imprensa em relação a quem morre ou some.

Porém os traficantes não podem controlar a imprensa internacional nem o esforço das ONGS mexicanas, que se preocupam em passar os números e manter o mundo informado. É uma tarefa ingrata, porque não importa o que aconteça, o governo sempre nega a informação e os persegue de maneira cruel. Todos os fiscais de Direitos humanos, direitos das mulheres, sofrem retaliação e são vigiados constantemente.

Mas graças a eles as bolhas começam a explodir, não se pode mais manter a informação escondida e negar o que está acontecendo no México.

E Puebla é uma cidade pequena, sem grandes registros de violência, mas no dia 25 de fevereiro deste ano as mulheres foram às ruas pedir justiça, o que chamou a atenção de muita gente.

Puebla teve em um ano, apenas um ano, cinquenta mulheres mortas pelos seus namorados ou maridos e 10% delas estavam grávidas.

Organizações de defesa da mulher já pediram ao governo que ligue o alerta vermelho, que indica que Puebla é um lugar com um alto número de feminicídio, mas o governo se negou, disse que os assassinatos estão dentro ''da faixa'', não são conseqüência do tráfico, essas mulheres estão morrendo nas mãos dos seus namorados.

Parece chocante, mas essa é a leitura do governo mexicano e da maioria das pessoas, não é a mesma coisa uma mulher morrer na mão do tráfico do que nas mãos do namorado, quando morre nas mãos do marido vira ''morte de amor'', morreu porque amou.
E então as autoridades ignoram o caso e fecham o expediente.

E talvez toda a simpatia que existe entre o Brasil e o México se deve a uma estrutura social parecida e ao domínio da religião católica. Mulheres mexicanas são como as brasileiras, se apaixonam e depois reclamam quando os homens são agressivos, mas ora, os homens são assim e a mulher reclama? Tanto as mexicanas como as brasileiras são chatas, pegam no pé e depois que levam uns tapas se fazem de vítimas. O sistema não pode fazer nada, se as mulheres se comportassem e não irritassem os machos, talvez não morreriam tanto nem dariam trabalho a polícia! 
E tanto lá como aqui a Igreja Católica fecha os olhos para o que está acontecendo, mantém a tradição de condenar o divórcio, de pedir paciência as mulheres e proibir o aborto.

O argumento da maioria dos mexicanos é igual aos brasileiros, eles dizem que é importante proibir o aborto porque caso ele fosse liberado, as mulheres usariam como método anticonceptivo. Isso só mostra a profunda ignorância das pessoas em relação ao corpo da mulher, acham que é mais simples levar anestesia e ter o útero raspado do que usar uma camisinha. Além de putas pensam que somos idiotas.

Os números dos abortos no México são parecidos aos do Brasil, os abortos clandestinos, as mortes nas mãos dos açougueiros, a condena social nas mulheres que assumem já ter feito um, a divisão econômica que protege as ricas que podem pagar clínicas e as pobres que se submetem a torturas medievais para abortar.

A visão no México é a mesma daqui, homem não tem culpa, quem engravida é a mulher vadia, porque se fosse mulher direita nem teria tido relações. Homens mexicanos são uns santos e alguns são tão bons que até pagam o aborto.

Mas existe um ponto que os mexicanos sabem, assim com os brasileiros. A lei é frouxa para punir quem mata sua esposa e namorada, eles estão protegidos pelo sistema e até o delegado entende que eles perderam a cabeça porque a mulher os enlouqueceu. Eles têm tempo de fugir ou de alegarem alguma besteira, para muitos o tráfico tem sido uma ótima desculpa, é só dizer que a mulher foi vítima dos traficantes e o rapaz sai impune. Se ficar complicado ele ''cai pra dentro'', se une a alguma facção e some no meio do México, mas o número de maridos e namorados presos é insignificante, tanto assim que não intimida ninguém.

E o jornal espanhol ElPais fez um perfil de cinco vítimas recentes desse ''amor louco''. É triste pensar que uma mulher é morta pelo seu namorado, mas é mais triste saber que ela foi morta defendendo o seu bebê, morreu porque quis ter a criança.

Mas essa parte da história não bate! Não somos nós, mulheres, que sempre queremos abortar e tiramos dos homens a oportunidade de serem pais? Não somos nós as vadias, putas, que engravidam para sacanear o homem e depois quando ele não cai na nossa conversa, corremos para abortar?

Por quê ninguém fala disso, dos homens que matam porque não querem ser pais? Será que é só no México que mulheres são mortas pelos namorados porque estão grávidas?

Mulheres têm o direito ao aborto negado, ninguém se importa que morram em açougues clandestinos, mas os homens continuam mantendo seu direito a matar, caso não queiram ser pais. É chato obrigar um homem a ser pai!

E os cinco casos recentes são de quebrar o coração, uma delas, Samaí Márquez, 25 anos, estudava psicologia e defendia os animais, fez uma tatuagem em homenagem aos animais que tanto amava, escreveu ''sou tua voz''. Ficou grávida e quis ter o filho, o namorado não quis, a chamou para conversar e deu um tiro na sua cabeça.

Outra moça Mireya Pérez, estava grávida pela segunda vez, o namorado não aceitou, queria que ela fizesse aborto, já tinham uma filha de dois anos e não queria outro bebê. Como ela se recusou a fazer o aborto, ele foi a sua casa jantar com ela e a criança, depois do jantar matou as duas com uma navalha.

Paulina Camargo estava grávida de dois meses e queria ter o filho, o namorado não quis, a estrangulou e sumiu com o corpo. Já deu várias localizações a polícia, mesmo assim não a encontram. E o rapaz não se comoveu com a sogra implorando para que ele dissesse onde está o corpo, a mãe quer apenas o direito de enterrar a filha, mesmo assim ele continua dando lugares errados.

Iraís Ortega, de 23 anos, estudante, ficou grávida e o namorado pediu que abortasse, como ela se negou ele injetou uma substância tóxica nela, colocou seu corpo no carro e depois a jogou no meio da estrada.

Karla Lopez também estava grávida e o namorado se recusava a aceitar a situação, a atraiu a um lugar, onde três capangas esperavam por ela, foi morta e seu corpo foi jogado em outra cidade.

Tem alguém na cadeia? Não. A confissão do namorado que diz ter estrangulado a namorada não deu em nada, não tem corpo, não tem crime e ele conseguiu um amparo para responder em liberdade.

Parece que as mulheres não tem muita escolha, ou morrem em um aborto clandestino ou nas mãos dos namorados.

E o processo entra na justiça como ''crime de amor'', matou porque amava, matou porque era amor demais.

E as mulheres continuam sendo as putas, vadias, que querem abortar o tempo inteiro, se pudessem abortariam duas vezes por dia, de tão agradável e fácil que é.

Estamos cercadas por um condena social e religiosa, aborto é pecado, o Padre disse na missa o outro dia que mulheres que abortam tem que pedir perdão todos os dias e implorar para que Deus as perdoe. Mas e os assassinos, será que Deus perdoa?
Ah, perdoa sim, eles mataram por amor! Não foi pelo tráfico!

E ainda tem gente que diz que não precisamos do feminismo!

A corrente mais conservadora diz que aborto é crime, remover um feto é assassinato e condenam a mulher que faz isso, mas um homem pode matar uma mulher de vinte anos, um ser humano desenvolvido, e não é crime, é excesso de amor.

E uma antropóloga disse uma vez ''o que mata as mulheres no México é o amor romântico''.

É, concordo em partes. Acho sim que erramos, enchemos a bola dos homens, amamos quem não devemos amar, mas nada disso dá direito a um homem de matar uma mulher e em caso de mulher grávida a pena deveria ser prisão perpétua!

A perseguição as mulheres me assusta, porque somos aquelas criaturas guiadas pelo demônio, segundo dizem. Os homens são bons, inocentes e matam por amor, nós somos más e vivemos pelo ódio.

Parece normal no mundo um homem matar uma mulher, mas é anormal uma mulher fazer um aborto, como se as duas coisas pudessem ser comparadas.

Das mulheres que morreram defendendo seus filhos na barriga ninguém diz nada. E um dos namorados, o que deu um tiro na cabeça da moça ainda foi generoso, disse que ela poderia escolher entre morrer ali ou ser levada a uma clínica de aborto, como ela se negou a abortar, levou um tiro.

Mas tudo bem! É o mundo dos homens inocentes e das mulheres vadias.

Diante de tanta impunidade, a tendência é as coisas piorarem em Puebla, a cidade dos anjos. Parece que é mesmo, está cheia de anjos, de homens inocentes, puros e bons de coração.



Iara De Dupont

sexta-feira, 11 de março de 2016

Bilhete Anônimo

Quem nos dias de hoje escreve uma carta a alguém? Quase ninguém, não é mesmo? Quem dirá um bilhete. E anônimo!
Pois bem, eu que vivo mergulhado aos recursos da tecnologia, na velocidade da troca de informação, da mensagem instantânea, quase pra ontem, resolvi enviar um bilhete desses, anônimo, dizendo sinceridades na expectativa de chamar-lhe a atenção.
Observei de longe. O bilhete dançava sob a brisa leve do ar condicionado, incomodava a atenção de quem ali estava concentrada. Da mesa para tuas mãos, deslizou por teus dedos e desfez as quatro dobras do papel. Fitou frente, fitou verso.
Verso! Lá estava, às tuas fuças, o verso. Teus olhos dançaram, da esquerda pra direita em quatro ou cinco golpes. Quantidade de linhas dele, o verso. Na frente ofegava o meu verso ofuscante. Quis prosseguir, e meu verso entender.
Não sei, sorriu, eu vi. Mas anônimo eu fiquei. Tanto em pergunta quanto em resposta. Não sei, sorriu. Foi anônimo e sei que leu. Basta! Dei meu verso e fui, sabendo que meu verso ela leu.