Estava em pé, olhando pela janela e pensando no futuro. Não sei se ter consciência de que o problema não é
exclusivamente meu torna as coisas mais suportáveis... Tá todo mundo na merda.
Todo mundo não, 1% da população mundial passa muito bem, obrigada. Para todo o
restante, a constante ameaça contra sua dignidade.
Várias vozes ocupavam o ar pesado
de angústia e fumaça do trem. Confusão. Eu quase não podia compreender o que
falavam. Contudo, uma voz masculina se destacou das demais: ela era
particularmente bonita e agradável. A voz anunciava chocolate a dois reais em
meio a piadas originais que roubavam o riso tímido dos passageiros. Por um instante abandonei a paisagem cinza da
janela para voltar o olhar pra dentro do vagão. Descobri o dono da voz bonita,
era um jovem descolado, com brinco alargador, tatuagem, boné. Saciada minha
curiosidade, retornei à introspecção, mas por pouco tempo, já que o moço insistia em
roubar minha atenção: seus slogans brincalhões se converteram em crítica à
mensagem sonora da CPTM que dizia ser ilegal o comércio ambulante. “Trabalhar é errado? Vocês acham que estou
cometendo crime”? Os passageiros concordavam silenciosamente com ele.
Enquanto defendia a dignidade do
próprio trabalho e de seus colegas, o vendedor de chocolate, muito bem
articulado, fez uma contraposição entre sua honestidade e a dos políticos
corruptos. “Querem ver roubalheira? Basta ligar a televisão e ver o que se
passa em Brasília”. Ao que mais e mais passageiros concordavam com o vendedor,
agora não mais silenciosamente, eles resmungavam baixinho.
A voz bonita ganhou um tom
entusiasmado de discurso político. Como num suave de mix de balada, quando as
musicas acabam e começam sem a gente perceber, o moço mudou o foco de sua
crítica política para as igrejas evangélicas. “As igrejas estão se perdendo na
ganância, hoje em dia ninguém mais ama o próximo”, ele dizia cada vez mais alto,
enquanto citava versículos bíblicos. Eu podia ouvir “sim, sim!” igualmente
entusiasmado dos passageiros. Foi então que no auge o moço perguntou: “Eu posso
ouvir um amém”? E todo mundo ao meu redor respondeu “amém!”.
Aquilo tudo me causou uma espécie
de vertigem, parecia que acordara de um sonho lúcido. A voz do locutor da CPTM
anunciou a chegada à estação final, “o trem não presta mais serviços, favor
desembarcar”. Um passageiro que estava sentado no chão se levantou e empurrou
violentamente o vendedor de chocolates. Todo mundo ao redor ficou atento e esperando intimamente que os dois partissem para um combate físico, mas quando o trem abriu as portas, cada um simplesmente caminhou
em direções opostas pela plataforma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário