Quarta-feira. Já era tarde e eu estava dormindo quando o telefone tocou. Olhei o número para saber se eu poderia atender xingando. “Número privado”. Ótimo, além de tudo eu teria que ser diplomático. Tentei disfarçar o sono com um lacônico “alô”. Como resposta só consegui ouvir um “Descobriram...” antes que a ligação caísse. Era só o que faltava. Algum idiota ligou para o número errado. O jeito era voltar pra cama e amaldiçoar o sujeito até pegar no sono de novo.
Foi só deitar para surgir a dúvida. E se não foi engano? De repente alguém estava tentando me avisar sobre algo que descobriram! Mas o que era tão urgente que não poderia esperar pelo dia seguinte?
Corri para as redes sociais. Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, portais de notícias. Nenhuma descoberta bombástica que justificasse a ligação misteriosa. Pensei em ligar para os amigos mais próximos. Loucura. Como eu explicaria uma ligação tarde da noite perguntando se descobriram alguma coisa? Pareceria uma ligação de um ex, bêbado, em plena madrugada de sábado.
Descobriram algo sobre mim, só pode ser. Mas o quê? Eu que sou tão correto. Comecei a vasculhar a memória para saber o que poderia me denunciar. Aproveitei que o computador ainda estava ligado e apaguei todos os meus arquivos. Filmes, músicas, séries, e-books... pirataria é crime!
Mas não fiquei tranquilo. Tem tanto computador pirateando arquivos no mundo, por que logo o meu? Pode ter sido algo no mundo real, ao invés do virtual. Teve a vez que eu furei fila no banco, mas já faz tempo! Eles cobram taxas abusivas e eu vou ser punido por isso?
Quando a moça do supermercado me devolveu troco a mais eu só percebi quando cheguei em casa, não iria voltar lá por causa de mixaria. As uvas que eu belisquei antes de pagar foi para experimentar e ver se estavam gostosas! Além do mais, o cliente tem sempre razão.
Confesso que só não apelei para o meu advogado porque não tenho um advogado. Nunca precisei, sempre falei mal deles, mas agora me retrato, falei mal, mas não foi por mal, só fui na onda dos amigos! O que eu não daria por um habeas corpus preventivo numa hora dessas.
Já passava das quatro da manhã, eu havia desfeito o gatonet, listei um grupo de pessoas para as quais eu pediria desculpa, por vezes sem nem saber o porquê, imaginei todas as situações possíveis. Olha, aquele pum no ônibus lotado foi sem querer, eu estava distraído e... bobagem. Quem iria descobrir?
O primeiro raio de sol do dia foi como a lâmpada de ‘eureka’ brilhando na minha cabeça. Eu passei pela faixa de pedestre sem parar para que aquele pobre coitado atravessasse! Pude reconstituir o olhar de fúria que ele me lançou quando busquei sua reação no retrovisor. Adiantaria pedir desculpas? Ele deve ter anotado a placa, fez uma busca detalhada, encontrou toda a documentação do carro, tinha meu endereço, telefone, sabia onde eu trabalhava.
Eu estava acabado. A falta de sono e o peso de ser um criminoso me deixaram com uma aparência cadavérica. Não havia decidido se eu me entregaria para a polícia ou se tentaria o habeas corpus preventivo. Uma coisa era certa, minha vida havia mudado. Não poderia seguir como se nada tivesse acontecido.
A primeira ação do dia seria pedir demissão. Martelava na minha cabeça a voz do capitão Nascimento. “Pede pra sair!” e eu pediria. Melhor que ser escoltado por policiais brutamontes na frente dos colegas de trabalho, em uma condução coercitiva.
Quando cheguei ao escritório todos estavam reunidos na sala de café, como de costume. Entrei sem jeito e antes que pudesse fazer o fatídico anúncio, o Lobato me encarou.
“Rapaz! Você está acabado, hein? Te liguei ontem à noite, mas meu crédito acabou. Descobriram o endereço do cliente?”
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