Insolentes. Vagabundos insolentes. Eram as primeiras coisas que vinham na cabeça de Jairo, logo que acordava. Principalmente nos últimos meses.
Já fazia mais de um ano que o rapaz não colocava os pés para fora de casa. Talvez mais que dois. A mesada dos pais e trabalhos a distância que arrumava pela internet eram suficientes para pagar as poucas contas, e o delivery – como o mundo sobreviveria sem delivery – garantia o acesso ao que precisava.
Assim era o mundo, pensava Jairo. As pessoas boas presas em casa e os bandidos soltos. Insolentes. O tempo livre, que não era pouco, o rapaz aproveitava para não ficar de braços cruzados contra ´tudo isso que está aí´. Passava horas postando comentários em notícias na internet e debatendo em grupos daqueles que, assim como ele, garantiam serem excluídos da sociedade pelos vagabundos insolentes.
Naquele dia o ódio estava particularmente aflorado. O entregador de água chegou quando Jairo estava no banho e simplesmente deixou o galão de vinte litros na porta. A que ponto a sociedade havia chegado! Ele teria que carregar um enorme galão de água para dentro de casa, sozinho!
A tarefa o deixou exausto, teve que improvisar vários apoios e alavancas e ainda deixar o galão no chão, tombando a água em uma jarra até aliviar o peso. Tudo por causa de um vagabundo insolente que não cumpria o próprio trabalho.
Felizmente sentia que os problemas da sociedade estavam próximos do fim. Poderia, finalmente, se libertar da opressão que sofria por parte daqueles insolentes. A gente de bem estava prestes a ocupar seu lugar na sociedade e os insolentes morriam de medo disso.
Até que enfim seu árduo trabalho de comentários em notícias na internet estava surtindo efeitos. A população parecia ter acordado. A tradição, a família e a propriedade privada não seriam mais ameaçadas e tudo voltaria a ser como antigamente, quando... quando... quando não tinha tudo isso que está aí!
Uma coisa era certa, Jairo nunca mais teria que passar pela humilhação de ficar a tarde toda trabalhando duro para arrastar o galão de água até a cozinha. Vagabundos insolentes!
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