Sobre o Natal guardo desde a infância a memória de uma época de paz, confraternização e a família quase se engalfinhando por conta da uva passa no arroz. Isso no fim dos anos 80. Os argumentos de cada lado eram defendidos com fervor, enquanto eu ficava pensando por que não fazer duas travessas de arroz separadas.
No fim dos anos 90 o debate anual seguia firme e forte, porém, entre uma uva arremessada nas costas do tio Alcínio e uma pimenta maldosamente mocozada no prato da tia Anísia, alguém resolveu elogiar a privatização da Vale do Rio Doce e da Telebrás, concluindo que isso acabaria com a roubalheira.
O debate foi acalorado, sem conclusão, mas intenso o suficiente para tirar o foco das pequenas pérolas negras que adornavam o arroz. Foi um marco. A primeira quebra no monopólio da discórdia.
Uma década mais tarde eu já tinha idade para participar das discussões, mas mantive minhas raízes de neutralidade. Mantinha minha passividade suíça em meio à guerra. Acreditava que a lenga-lenga da uva passa seria superada pela maçã que apareceu na maionese, mas alguém lembrou que, contrariando as expectativas do começo da década, o governo do PT vinha fazendo um bom trabalho.
Com a picanha na churrasqueira, teve gente que lembrou do mensalão e, com um copo de caipirinha na mão, chamou o Lula de cachaceiro. A Dilma foi chamada de feia, para desespero da minha prima, que fez um árduo discurso sobre o machismo do falso argumento.
Ano passado a coisa ficou mais tensa. Cheguei a acreditar que algumas questões fossem para as vias de fato. Entre promessas passadas, não cumpridas, e promessas para o futuro, impossíveis de serem cumpridas, as uvas passas até adoçaram um pouco, à contragosto de alguns, aquela ceia amarga.
E chegamos ao paradoxal 2019, que passou voando apesar de parecer ter 487 meses. A ceia de Natal passou a ser combinada pelo grupo de família no Whatsapp. Era tradição que a primeira exigência fosse as uvas passas no arroz, seguido do primeiro protesto, contra a presença das bolinhas negras da discórdia.
Neste ano a primeira pergunta sobre a ceia foi respondida com um “Quem votou no Bolsonaro que leve a carne”, seguido de “Não vou em ceia com quem defende presidiário”. O primeiro áudio veio depois que alguém perguntou “E cadê o Queiroz?”; mais vexatório que o gemidão do Whatsapp foi ouvir o tio Alcínio gritando “TÁ NO SEU CU, FILHO DA PUTA!”.
É a primeira vez em décadas que as uvas não são sequer mencionadas. Se por um lado as brigas familiares têm sido intensificadas nos últimos anos, fica o consolo de que com o tempo até a uva passa.
No fim dos anos 90 o debate anual seguia firme e forte, porém, entre uma uva arremessada nas costas do tio Alcínio e uma pimenta maldosamente mocozada no prato da tia Anísia, alguém resolveu elogiar a privatização da Vale do Rio Doce e da Telebrás, concluindo que isso acabaria com a roubalheira.
O debate foi acalorado, sem conclusão, mas intenso o suficiente para tirar o foco das pequenas pérolas negras que adornavam o arroz. Foi um marco. A primeira quebra no monopólio da discórdia.
Uma década mais tarde eu já tinha idade para participar das discussões, mas mantive minhas raízes de neutralidade. Mantinha minha passividade suíça em meio à guerra. Acreditava que a lenga-lenga da uva passa seria superada pela maçã que apareceu na maionese, mas alguém lembrou que, contrariando as expectativas do começo da década, o governo do PT vinha fazendo um bom trabalho.
Com a picanha na churrasqueira, teve gente que lembrou do mensalão e, com um copo de caipirinha na mão, chamou o Lula de cachaceiro. A Dilma foi chamada de feia, para desespero da minha prima, que fez um árduo discurso sobre o machismo do falso argumento.
Ano passado a coisa ficou mais tensa. Cheguei a acreditar que algumas questões fossem para as vias de fato. Entre promessas passadas, não cumpridas, e promessas para o futuro, impossíveis de serem cumpridas, as uvas passas até adoçaram um pouco, à contragosto de alguns, aquela ceia amarga.
E chegamos ao paradoxal 2019, que passou voando apesar de parecer ter 487 meses. A ceia de Natal passou a ser combinada pelo grupo de família no Whatsapp. Era tradição que a primeira exigência fosse as uvas passas no arroz, seguido do primeiro protesto, contra a presença das bolinhas negras da discórdia.
Neste ano a primeira pergunta sobre a ceia foi respondida com um “Quem votou no Bolsonaro que leve a carne”, seguido de “Não vou em ceia com quem defende presidiário”. O primeiro áudio veio depois que alguém perguntou “E cadê o Queiroz?”; mais vexatório que o gemidão do Whatsapp foi ouvir o tio Alcínio gritando “TÁ NO SEU CU, FILHO DA PUTA!”.
É a primeira vez em décadas que as uvas não são sequer mencionadas. Se por um lado as brigas familiares têm sido intensificadas nos últimos anos, fica o consolo de que com o tempo até a uva passa.
"até a uva passa"... vou lembrar disso como um mantra!
ResponderExcluirPor essas e outras que sai do grupo da minha família em 2014 😂
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