De um lado da cidade, desde quando o vírus ainda estava restrito à província chinesa, Constanza Albuquerque de Bragança estava preocupada. Ela, que exigia da empregada uma casa com a brancura e assepsia de fazer inveja ao melhor dos hospitais particulares, já havia proibido os filhos de comprar bugigangas chinesas pela internet desde o começo do ano.
Agora vivia repetindo “eu avisei” por onde passava. Quando o filho mais novo tentou argumentar que, há anos, todos os meses ela vinha avisando sobre alguma tragédia sanitária diante de qualquer resfriado, portanto um dia teria que acertar na previsão, levou um cascudo.
A quarentena, que por ela duraria uns quarenta anos, era total. Ninguém colocava o pé sequer no jardim, que dirá na rua. Tubos de álcool em gel, comprados a preço de ouro ou de dólar no mercado negro, estavam espalhados em cada canto da casa. Home office para manter a empresa, aulas virtuais para os filhos, atividades físicas dentro de casa e banho de sol só no horário em que a luz entrava pela vidraça.
Do outro lado da cidade a empregada seguia a rotina de acordar cedo e partir para a viagem que a levava ao trabalho. Com a creche fechada, deixou os filhos com a vizinha, com a ordem de que podia bater se eles fossem malcriados, principalmente no mais velho, que era o mais bagunceiro.
O coletivo já não parecia uma lata de sardinha, de tão apertado. No máximo uma lata de ervilhas, com todas aglutinadas, mas um espacinho quase folgado para quem estava habituada ao aperto.
A surpresa veio quando tocou o interfone da patroa e ouviu a voz de Constanza “Oi, não vai entrar em casa com essa roupa imunda. Seu uniforme está no banheiro dos fundos, toma um banho antes de trocar e lava esse cabelo.” Ela trabalhava naquela casa há alguns anos e nunca pode usar nem os sabonetes do banheiro. Se quisesse lavar as mãos tinha que usar o sabão do tanque e agora não só podia, mas tinha que tomar banho!
Lá estava o sabonete. Novinho. Na embalagem. E sabonete de rico. Protex. Ela nunca tinha usado e logo na primeira vez usaria até nos cabelos, já que nenhum xampu foi deixado no banheiro.
Se toda ordem da patroa fosse assim a vida seria um mar de rosas, pensou enquanto molhava o corpo. Pegou o sabonete e esfregou pelo corpo com toda a satisfação, vendo a espuma se acumular sobre a pele. Estava lavando os cabelos quando ouviu Constanza gritando de dentro de casa “Vai morar aí? Se demorar muito vou ter que descontar o banho do seu salário!”
Mal deu tempo de se enxaguar, tirar o excesso de água com a toalha e vestir o uniforme. Entrou pela porta dos fundos e a patroa pediu para que colocasse a máscara, pendurada no trinco da porta. Máscara?
E foi assim, mascarada e um pouco úmida, que a empregada seguiu a rotina de manter a casa quase esterilizada. A diferença foi a presença constante da patroa fazendo seu romófis e mandando ela fazer tudo o que já estava habituada a fazer sem ninguém mandar.
Já se preparava para ir embora, estava até atrasada para pegar as crianças com a vizinha, quando ouviu o “Ôh” da patroa.
- Pega um pano e passa álcool por tudo agora.
- Álcool, dona Constanza?
- Álcool. Tem um galão na dispensa. Passa por tudo, não esquece de nenhum canto.
- Mas pra quê dona Const....
- Você não assiste jornal, não? Esse vírus está matando todo mundo, eu não quero morrer por causa da sua preguiça, vai!
E ela foi. O segundo tempo da faxina. Álcool no piso, nos vidros, nos móveis, nos eletrodomésticos, na decoração, não ficaria espantada se tivesse que passar álcool até nas plantas. Seguiu ganhando uma diária. Constanza achou injusto pagar a mais, afinal uma diária é o período de um dia e o trabalho, esticado, não ultrapassou esse limite.
No ônibus da volta só pensava na bronca que ia levar da vizinha. E com razão. Era um favorzinho que acabou tomando o dia inteiro.
- Foi por causa do álcool!
- Muito bonito! Eu me acabando com essas crianças pra você ficar enchendo a cara!
Agora vivia repetindo “eu avisei” por onde passava. Quando o filho mais novo tentou argumentar que, há anos, todos os meses ela vinha avisando sobre alguma tragédia sanitária diante de qualquer resfriado, portanto um dia teria que acertar na previsão, levou um cascudo.
A quarentena, que por ela duraria uns quarenta anos, era total. Ninguém colocava o pé sequer no jardim, que dirá na rua. Tubos de álcool em gel, comprados a preço de ouro ou de dólar no mercado negro, estavam espalhados em cada canto da casa. Home office para manter a empresa, aulas virtuais para os filhos, atividades físicas dentro de casa e banho de sol só no horário em que a luz entrava pela vidraça.
Do outro lado da cidade a empregada seguia a rotina de acordar cedo e partir para a viagem que a levava ao trabalho. Com a creche fechada, deixou os filhos com a vizinha, com a ordem de que podia bater se eles fossem malcriados, principalmente no mais velho, que era o mais bagunceiro.
O coletivo já não parecia uma lata de sardinha, de tão apertado. No máximo uma lata de ervilhas, com todas aglutinadas, mas um espacinho quase folgado para quem estava habituada ao aperto.
A surpresa veio quando tocou o interfone da patroa e ouviu a voz de Constanza “Oi, não vai entrar em casa com essa roupa imunda. Seu uniforme está no banheiro dos fundos, toma um banho antes de trocar e lava esse cabelo.” Ela trabalhava naquela casa há alguns anos e nunca pode usar nem os sabonetes do banheiro. Se quisesse lavar as mãos tinha que usar o sabão do tanque e agora não só podia, mas tinha que tomar banho!
Lá estava o sabonete. Novinho. Na embalagem. E sabonete de rico. Protex. Ela nunca tinha usado e logo na primeira vez usaria até nos cabelos, já que nenhum xampu foi deixado no banheiro.
Se toda ordem da patroa fosse assim a vida seria um mar de rosas, pensou enquanto molhava o corpo. Pegou o sabonete e esfregou pelo corpo com toda a satisfação, vendo a espuma se acumular sobre a pele. Estava lavando os cabelos quando ouviu Constanza gritando de dentro de casa “Vai morar aí? Se demorar muito vou ter que descontar o banho do seu salário!”
Mal deu tempo de se enxaguar, tirar o excesso de água com a toalha e vestir o uniforme. Entrou pela porta dos fundos e a patroa pediu para que colocasse a máscara, pendurada no trinco da porta. Máscara?
E foi assim, mascarada e um pouco úmida, que a empregada seguiu a rotina de manter a casa quase esterilizada. A diferença foi a presença constante da patroa fazendo seu romófis e mandando ela fazer tudo o que já estava habituada a fazer sem ninguém mandar.
Já se preparava para ir embora, estava até atrasada para pegar as crianças com a vizinha, quando ouviu o “Ôh” da patroa.
- Pega um pano e passa álcool por tudo agora.
- Álcool, dona Constanza?
- Álcool. Tem um galão na dispensa. Passa por tudo, não esquece de nenhum canto.
- Mas pra quê dona Const....
- Você não assiste jornal, não? Esse vírus está matando todo mundo, eu não quero morrer por causa da sua preguiça, vai!
E ela foi. O segundo tempo da faxina. Álcool no piso, nos vidros, nos móveis, nos eletrodomésticos, na decoração, não ficaria espantada se tivesse que passar álcool até nas plantas. Seguiu ganhando uma diária. Constanza achou injusto pagar a mais, afinal uma diária é o período de um dia e o trabalho, esticado, não ultrapassou esse limite.
No ônibus da volta só pensava na bronca que ia levar da vizinha. E com razão. Era um favorzinho que acabou tomando o dia inteiro.
- Foi por causa do álcool!
- Muito bonito! Eu me acabando com essas crianças pra você ficar enchendo a cara!
foda demais. a corda sempre arrebenta pro lado mais frágil. quem morre de coronavírus não é o rico que se infectou na Itália, mas o pobre, empregado doméstico, que pegou do patrão.
ResponderExcluirNão que o autor do texto seja chamado para trabalhar presencialmente como se nada estivesse acontecendo, imagina....
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