Luz apagada, fecho o livro e os
olhos. O corpo relaxado, um suspiro longo para acomodar o sono e ouço um eco do
que acabo de ler: o pai do escritor Lima Barreto, subitamente, enlouqueceu. Foi
dormir lúcido e, no meio da madrugada, acordou delirando. Nunca mais se
recuperou. A imagem desse pai dormindo na véspera da loucura me traz a curiosidade
de saber como é o meu próprio rosto neste momento em que estou estirado na
cama, madrugada nascendo. Das questões infantis que me acompanham ainda hoje:
saber com qual rosto os outros me reconhecem. E ao pensar em meus traços, a
imagem que surge é do meu avô (com quem eu me pareço) deitado em seu caixão,
prestes a virar cinzas. Sou eu ali, morto? Sorrio, como também minha mãe sorria
em seu próprio velório. Meu avô estava lá, se despedindo da filha. Quando na
vez dele, eu estava lá, (como estou agora, revendo seu rosto) velando o corpo
ao som da música caipira que tocava ao fundo: Saudade de Matão. A convivência
com o gosto musical desse avô, aliada ao discos que meu pai escutava, fez do
caboclo que habita em mim alguém que muitas vezes toma minhas mãos para
escrever meus textos. E quando adentro essa roça da imaginação, a referência é
quase sempre uma fazenda em que fui uma única vez, criança. Parentes de uma
vizinha que gostava muito de mim. E sua sobrinha, moradora da fazenda, também
me gostava, à ponto de procurar subterfúgios, naquela exclusiva visita, para me arrancar um beijo. Na época não
percebi esse estratagema, estava ocupado em apreender a vida no campo. Quando
me dei conta de que Raquel queria me beijar, já estava longe e, num misto de
vergonha e raiva, ri exageradamente de qualquer piada que fizeram no carro.
Raquel era sobrinha de dona Ana, o
rosto que me visita agora, luz fechada, livro apagado, olhos por dentro. Por
que penso em dona Ana agora? Lembro que passava muito tempo na casa dessa
mulher, mais velha que minha mãe. Ela parecia gostar da minha presença, mas
talvez minha memória não enxergue os olhos virados de quem preferiria estar
assistindo televisão. Não, dona Ana gostava mesmo de mim, me trazia laranjas da
fazenda, me oferecia leite com chocolate, me apresentou o café. Dona Ana e seu
marido (como era o nome dele?) que tinha um dedo à menos por conta de um
acidente com fogos de artifício. Imagino o estouro e logo sou lançado a uma
recordação: estou na rua, ano-novo pipocando e meu avô me ajudando a estourar
um rojão. Saiu um tiro. Saiu o segundo tiro. O terceiro se recusou. Esperamos
alguns segundos, mas nada. Meu avô, segurando o rojão comigo, abaixou o objeto,
que estourou o pavio no exato momento em que estava frente aos meus olhos.
Gritos, choro. Os adultos me socorrem. Meu avô se desespera e fico com pena de
sua culpa materializada em uma caminhada sem sentido. Paro de chorar, está tudo
bem, vô. Olha, até consigo piscar.
Pisco de olhos fechados, forçando as
pálpebras que já descansavam, livro sem luz. Dona Ana rindo porque bebi água
com formiga sem perceber, ela dizendo que tamanduás não precisam de óculos, uma
vez que esses insetos fazem bem para a vista. Acho que engoli poucas formigas,
minha miopia bem sabe. Só agora me atento que sempre gostei da companhia dos
mais velhos. Ao mudar de bairro, deixo dona Ana (por onde anda Ana, dona?) e
começo a frequentar a casa da tia paterna. Anete gostava de ler - muito - e
compartilhava comigo este sabor. Contava enredos, me fazia inventar outras
histórias (meu pai também tinha prazer em criar comigo; era brincadeira
familiar deles?). Anete foi que me ensinou
a língua do P, da qual fiquei fluente, conversando por horas nesse nosso
idioma secreto. Ela quem me apresentou o kiwi, a fruta-pássaro que conseguiu se
colocar em um patamar próximo ao das laranjas, paixão do menino. Ana, Anete,
Iolanda, a tia materna que virou minha próxima companheira mais velha. Esse
“an” se repetindo nos nomes pelos anos. Iolanda e nossas risadas madrugada
adentro, acordando meu avô: vocês falam muito, ele resmungava, antes de voltar
para a cama.
Abro os olhos novamente, não deliro
nem estou morto. O pai de Lima Barreto continua ali no livro, recontado em sua
repentina insanidade. O quarto escuro, a respiração da companheira e dos cães
espalhados no quarto nessa noite fria confirmando a vida. Tudo ocorrendo por
décadas ou – eita! – nos últimos dez minutos. Luz apagada, livro os olhos de
estar acordado e dou boa noite a todos que conversam aqui dentro: vocês falam
muito.
Belo texto! Essa capacidade de migrar assuntos na leveza da brisa é de contador de causos, da calmaria do interior bucólico da nossa imaginação. Parabéns Tadeu!!
ResponderExcluirObrigado pela leitura tão sensível!
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