sábado, 16 de maio de 2020

PESCADAS

Luz apagada, fecho o livro e os olhos. O corpo relaxado, um suspiro longo para acomodar o sono e ouço um eco do que acabo de ler: o pai do escritor Lima Barreto, subitamente, enlouqueceu. Foi dormir lúcido e, no meio da madrugada, acordou delirando. Nunca mais se recuperou. A imagem desse pai dormindo na véspera da loucura me traz a curiosidade de saber como é o meu próprio rosto neste momento em que estou estirado na cama, madrugada nascendo. Das questões infantis que me acompanham ainda hoje: saber com qual rosto os outros me reconhecem. E ao pensar em meus traços, a imagem que surge é do meu avô (com quem eu me pareço) deitado em seu caixão, prestes a virar cinzas. Sou eu ali, morto? Sorrio, como também minha mãe sorria em seu próprio velório. Meu avô estava lá, se despedindo da filha. Quando na vez dele, eu estava lá, (como estou agora, revendo seu rosto) velando o corpo ao som da música caipira que tocava ao fundo: Saudade de Matão. A convivência com o gosto musical desse avô, aliada ao discos que meu pai escutava, fez do caboclo que habita em mim alguém que muitas vezes toma minhas mãos para escrever meus textos. E quando adentro essa roça da imaginação, a referência é quase sempre uma fazenda em que fui uma única vez, criança. Parentes de uma vizinha que gostava muito de mim. E sua sobrinha, moradora da fazenda, também me gostava, à ponto de procurar subterfúgios, naquela exclusiva visita,  para me arrancar um beijo. Na época não percebi esse estratagema, estava ocupado em apreender a vida no campo. Quando me dei conta de que Raquel queria me beijar, já estava longe e, num misto de vergonha e raiva, ri exageradamente de qualquer piada que fizeram no carro.
Raquel era sobrinha de dona Ana, o rosto que me visita agora, luz fechada, livro apagado, olhos por dentro. Por que penso em dona Ana agora? Lembro que passava muito tempo na casa dessa mulher, mais velha que minha mãe. Ela parecia gostar da minha presença, mas talvez minha memória não enxergue os olhos virados de quem preferiria estar assistindo televisão. Não, dona Ana gostava mesmo de mim, me trazia laranjas da fazenda, me oferecia leite com chocolate, me apresentou o café. Dona Ana e seu marido (como era o nome dele?) que tinha um dedo à menos por conta de um acidente com fogos de artifício. Imagino o estouro e logo sou lançado a uma recordação: estou na rua, ano-novo pipocando e meu avô me ajudando a estourar um rojão. Saiu um tiro. Saiu o segundo tiro. O terceiro se recusou. Esperamos alguns segundos, mas nada. Meu avô, segurando o rojão comigo, abaixou o objeto, que estourou o pavio no exato momento em que estava frente aos meus olhos. Gritos, choro. Os adultos me socorrem. Meu avô se desespera e fico com pena de sua culpa materializada em uma caminhada sem sentido. Paro de chorar, está tudo bem, vô. Olha, até consigo piscar.
Pisco de olhos fechados, forçando as pálpebras que já descansavam, livro sem luz. Dona Ana rindo porque bebi água com formiga sem perceber, ela dizendo que tamanduás não precisam de óculos, uma vez que esses insetos fazem bem para a vista. Acho que engoli poucas formigas, minha miopia bem sabe. Só agora me atento que sempre gostei da companhia dos mais velhos. Ao mudar de bairro, deixo dona Ana (por onde anda Ana, dona?) e começo a frequentar a casa da tia paterna. Anete gostava de ler - muito - e compartilhava comigo este sabor. Contava enredos, me fazia inventar outras histórias (meu pai também tinha prazer em criar comigo; era brincadeira familiar deles?). Anete foi que me ensinou  a língua do P, da qual fiquei fluente, conversando por horas nesse nosso idioma secreto. Ela quem me apresentou o kiwi, a fruta-pássaro que conseguiu se colocar em um patamar próximo ao das laranjas, paixão do menino. Ana, Anete, Iolanda, a tia materna que virou minha próxima companheira mais velha. Esse “an” se repetindo nos nomes pelos anos. Iolanda e nossas risadas madrugada adentro, acordando meu avô: vocês falam muito, ele resmungava, antes de voltar para a cama.
Abro os olhos novamente, não deliro nem estou morto. O pai de Lima Barreto continua ali no livro, recontado em sua repentina insanidade. O quarto escuro, a respiração da companheira e dos cães espalhados no quarto nessa noite fria confirmando a vida. Tudo ocorrendo por décadas ou – eita! – nos últimos dez minutos. Luz apagada, livro os olhos de estar acordado e dou boa noite a todos que conversam aqui dentro: vocês falam muito.

2 comentários:

  1. Belo texto! Essa capacidade de migrar assuntos na leveza da brisa é de contador de causos, da calmaria do interior bucólico da nossa imaginação. Parabéns Tadeu!!

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