Olho por muito tempo a foto em que muitas crianças estão posadas, roupas de domingo. A segunda menina, da esquerda para a direita, é a minha mãe, que pela cara espevitada não devia estar pensando em futuros filhos, mas na próxima brincadeira que aprontaria. E de tanto olhar o registro, observo quem não aparece na foto: minha vó. Ela está ali, nas roupas limpas, nos cabelos penteados, na bronca para manter a seriedade da molecada. E então a memória e a imaginação (e não seriam elas irmãs gêmeas?) buscam o tempo mais atrás.
Minha vó é menina mineira. Nasceu em Poté, uma cidade
bem da pequena, quase chegando ao sul da Bahia. Aquela vila, cercada de
montanhas e mata atlântica, é região de extrativismo de pedras preciosas desde
épocas imperiais e, portanto, região de trabalho escravo. Região de índios das
mais diversas etnias, principalmente dos chamados Botocudos, conhecidos por
serem guerreiros brabos. A bisavó da minha vó vivia ali, em condições de
escrava. Era uma tal Maria, que era conhecida por ter as pontas de todos os
dedos cortados, resultado de cada fuga empreendida em busca da liberdade: cada
fuga, um corte. A filha dessa Maria, aquela moça que um dia seria narrada para
mim como minha tataravó, chamava-se Jacinta Bernarda de Souza. Nome que achei
literariamente lindo desde a primeira vez que ouvi, supondo uma personagem de
Machado de Assis.
A Jacinta, filha da Maria, trabalhava no roçado de uma
das muitas fazendas que pertenciam a poderosa família Lopes de Oliveira. Pois
foi um desses fazendeiros que atentou de maneira diferente para a filha de
Jacinta, a caboclinha Rosa. Vai então que a Rosa ficou grávida e o rapaz ficou
apaixonado, quis largar família, tradição, propriedade, tudo para ficar com Rosa, que respondeu: não senhor! Eu lá sou mulher de ficar plantada, sendo
esposa!? Acho essa resposta forte, vibro com ela, mas desconfio o quanto de
ficção há na oralidade que me chegou.
E assim nasceu Edite, minha vó. Menina mineira.
Nascida no campo, criada na roça, dividindo a criancice entre o trabalho na
terra e as brincadeiras. Distração gostosa era pegar sabugo de milho e fazer
bonecas, tão bonitas com seus cabelos cheios . E elas tinham companhia: os bois,
cavalos e outros bichos feitos das frutas verdes que se espalhavam pelo chão.
Domingo era dia de igreja: a menina Edite já fazia gosto da missa e das festas,
adorava seguir procissão, cantar alto para que os anjos ouvissem.
Um dia, a família feita de tantas mulheres precisou
deixar a cidade. Edite tinha, então, oito anos. Esse andarilhar por necessidade
também carregava um afã de vontade. O trabalho só foi encontrado na outra
lateral do país, em Presidente Prudente, cidade beirando o Mato Grosso, que
naquela época ainda nem era do sul. Ali, a menina continuou na lida do campo e
nas brincadeiras. Vez por outra atravessava um campo aberto conhecido por Deus-me-livre.
O nome era por conta de tantos corpos e esqueletos que jaziam naqueles
matos, vítima da violência de grileiros contra trabalhadores rurais. De chão em
chão, mais uma vez deixaram a cidade e foram para outro Estado, peregrinas que
eram. Esse tanto de caminhar, agora penso, talvez não tenham deixado muitos
resquícios de festejos na memória da minha vó quando tento me aproximar de suas
reminiscências. Ela não fala (não lembra?) sobre músicas, manifestações
culturais à parte da Igreja, enredos. Não houve tempo de fixar raízes devido à falta
de solo firme. As memórias, em sua maioria, desde a infância, são sempre de
trabalho pesado. De mulheres carregando o mundo, mulheres da classe trabalhadora.
Aquelas (e aqueles) que de fato ergueram uma nação, que conforme Darcy Ribeiro,
não deve ser confundido com o Estado, essa invenção jurídica tão ao gosto
patriarcal.
Essa caminhada toda no deserto da História fez com que
Maria gerasse Jacinta, que gerou Rosa, que gerou Edite, que gerou minha mãe,
que não teve filhas, mas gerou pegadas.
A assiduidade dos detalhes conta a presença de uma Mãe.
ResponderExcluiros sinais...
ExcluirLindeza... 🥰💞
ResponderExcluir;-)
ExcluirTadeu, adoro os seus textos! Esse foi especialmente gostoso de ler, embora tenha me gerado uma certa invejinha. Perdão. Inveja porque você conhece bem a história e a das mulheres que te antecedem. Eu não conheço as minhas. Já tentei, mas elas se perderam por aí. Obrigada por compartilhar suas histórias =D
ResponderExcluirAh, bom saber que gosta dos meus textos!!!!
ExcluirAndei curioso de perguntar, mas é muito difícil. Minha vó, que é a mais antiga ainda viva, não gosta muito de falar do passado....
Fiquei hipnotizada lendo esse texto. Quando acabou eu só pensei: mas já? Não! Continua!
ResponderExcluirA ideia é escrevr outros nessa linha das memórias conforme for descobrindo as histórias...
Excluiré triste que a maioria dos brasileiros e brasileiras não tenham acesso às próprias memórias de origem, parece que somos folhas brancas, sem passado. gostei muito do texto, Tadeu. me fez pensar sobre meus ancestrais mesmo sem conhecê-los.
ResponderExcluirAndo pesquisando algumas histórias, mas é bem difícil ir longe...
ExcluirVi uma vez uma senhora (não me lembro nome) dizer que precisamos retomar nossas narrativas ancestrais verdadeiras que a história patriarcal apagou/alterou nem que seja pela ficção...que nossos corpos carregam estas histórias e talvez sejam eles os responsáveis por buscar esta arqueologia não documentada.
ResponderExcluirLindo texto!