Dia desses fiquei observando-a sentada no sofá enquanto atentamente corria a agulha por entre os pontos formados pela linha. Estava fazendo crochê. Fiquei ali por uns quatro minutos, revivendo tempos passados quando ela dedicava-se a algum tipo de artesanato nas pausas de suas tarefas, das quais, muito provavelmente, ela não se lembra mais, e só consegui pensar para onde vão as nossas memórias quando a gente perde a capacidade de lembrá-las. Pensei que talvez elas se percam num limbo metafísico, daquilo que foi e já não é, porque não é acessado senão pelo sentimento, ou talvez fiquem guardadas em algum outro lugar que resiste ao tempo porque conformam concretamente o que somos, e não há maior concretude do que ser, ou não, já não sei. Seria quase o mesmo que pensar para onde vai o tempo que passou, e não faz muita diferença se lembramos ou não dele, mas quando é possível lembrar, de alguma forma ele existe, e se nunca mais for lembrado?
Fiquei pensando nisso ao longo do dia, e só à noite, depois de alguma reflexão, percebi que a resposta dava-se por si mesma, pois têm coisas que nunca se perdem: não era ela quem fazia o crochê, mas sim o contrário. Ela aprendeu com a minha avó, que deve ter aprendido com minha bisavó e assim por diante, e por mais que em algum momento da minha infância eu também tenha aprendido, hoje não me lembro mais como fazer, mas lembro bem da carga afetiva que traziam aqueles momentos em que as gerações se reuniam no quintal de casa para tramarem juntas aquelas peças, e ainda trazem.
Sinto constante necessidade de reconhecer nela vestígios daquela força e criatividade e confesso que ela voltou a fazer crochê por incentivo meu, pois já nem se lembrava dos barbantes esquecidos no armário. Hoje é mais difícil, faz, refaz, faz errado, volta, perde a página da “receita”, me chama pra ajudar, faz de novo e quando volto a “fiscalizar” está no início mais uma vez. Mas apesar da tristeza que sinto ao perceber essas dificuldades, é fascinante ver como as memórias se resgatam naquele fazer em que linha e agulha tramam sua própria história e ancestralidade, resgatando as lembranças daquilo que não se perde porque se transmite pelo amor. Ali, entretida em seu trabalho, por diversas vezes chegou a se lembrar do pai, das tias, dos frutos mais bonitos que ficavam no alto dos pessegueiros e eram difíceis de ser alcançados.
Minha avó fez crochê até uma idade avançada. As últimas peças não ficaram perfeitas como as que havia feito ao longo da vida, a visão já estava dificultada, mas minha mãe as guardou, incapaz de dizer que estavam erradas. Só parou quando a cabeça assim a impôs, não percebia que já não passava a agulha pela linha construindo pontos, simplesmente tomava os bolos de sobras e as enrolava até dizer que estava cansada de fazer crochê, guardava tudo na sacola para dali a quinze minutos voltar a tomar as linhas novamente em suas mãos, como se aquilo fosse a única coisa que preenchesse o vazio de lembranças presentes. Não sei se, ou quando, isso irá acontecer com a minha mãe, temo que vá, mas espero ter tempo bastante para que ela possa continuar a tecer essas tramas que nos ligam de forma tão simples e ao mesmo tempo tão complexa, pra que ela possa seguir enfeitando a sala, o banheiro, meu quarto e a minha vida.
Fernanda, que coisa bonita, doída e emocionante! Não pude conter as lagrimas...
ResponderExcluirA composicao de uma trama a partir do emaranhado das memórias ainda é um desafio para todos nós. Mas, com certeza, um dos cernes é o afeto.
Obrigada, Carol! Essas questões sobre essas tramas/teias da vida têm ocupado muito minhas reflexões... <3
ExcluirTambém chorei. Obrigada por compartilhar a sua história com a gente.
ResponderExcluir