terça-feira, 16 de março de 2021

Amigo Invisível


Caro desconhecido,

 

            ontem, enquanto me preparava para jogar fora todo o lixo reciclável que se acumulou ao longo da semana, tanto no apartamento quanto em minha cabeça, lembrei por um instante de você. E ao deixar o material na calçada à espera de outro destino, observei o boteco da esquina às escuras, um resto de chuva ainda escorrendo pela lona. Tive saudade. Não o vejo desde o início do isolamento, embora me parecesse que você já estava em um autoexílio desde sempre. Mas que bobagem estou falando? - este sempre a que me refiro só começa a ser contado a partir do momento em que percebi pela primeira vez a sua constante presença na mesma mesa, sentado na mesma posição e com o mesmo cenário: uma ou duas garrafas de cerveja, um copo pela metade, uma bolsa lateral sobre o colo e, eventualmente, um caderno surrado que você folheava sem pressa.

*

            Uma tarde quente voltávamos de algum lugar e você estava lá, esperando o fim do dia. Confidenciei à minha companheira que sempre o via por ali e ela revelou que também notara seu devotado comparecimento. Naquele instante começou nossa aventura de cogitar sua personalidade, sua biografia: sua roupa revelava alguém que não se atém em preocupações sobre qual a melhor combinação, usando quase sempre o mesmo estilo de calça e camiseta. Talvez isso seja um engano de minha dedução e você gaste um pouco o pensamento em aparentar uma figura descuidada no vestir. Conheço o tipo. Aliás, também reconheço esse olhar quase sempre fincado com uma ruga entre as sobrancelhas, apontando para um carro ou um poste do outro lado da rua e que, sabemos, não está mirando nem carro, nem poste, porém uma ideia que mistura metafísica e a conversa animada da mesa vizinha. Um professor? De História, talvez? Um escritor? Aquele caderno tem o rascunho de um romance que há anos você reescreve à mão, suponho. Depois cogito serem poemas que você anota na mesa (sim, observei que você escreve no caderno quando em vez) e imediatamente minha expectativa de observador conjetura que você gosta de Baudelaire e conhece de cor o poema A uma Passante, e partilha da sensação do poeta francês vivendo no início da modernidade europeia: a grande cidade, com suas multidões, coloca em alta velocidade as percepções e o encontros.

*

Em outro início de noite comentei contigo sobre essa narrativa que criei ao redor de sua existência e você me explicou que a expectativa é sempre do observador, não do observado e portanto a frase anterior - ‘minha expectativa de observador...” – era uma redundância.

            Essa conversa foi criada por minha companheira, que depois de tanto darmos contigo no mesmo lugar, deu de imaginar que você era uma versão minha do futuro: sozinho, bebendo e pensando sobre um escrito. Tremo, evidente. Não bebo cerveja e não sou sozinho. Ela ri e diz que o meu amigo também riria com o fato de eu titubear em ser igual a ele. Não, amigo, não tenho receio em ser como você: só quero que você seja outro, inteiramente outro com suas experiências, sua vida. Um alguém que me apresenta um novo elemento em um sábado, quando o boteco está cheio devido à famosa feijoada e em sua mesa tem dois adolescentes.  De passagem escuto a conversa, você fazendo um apanhado das últimas notícias políticas e instaurando uma crítica com a qual concordo. Os adolescentes não estão muito interessados, principalmente a menina. Ela responde com palavras curtas enquanto a expressão entrega o desejo de estar em outro lugar. Então temos uma virada no roteiro que designamos ao nosso personagem: não é tão solitário, há filhos e, possivelmente, uma ex-esposa com a qual ele não se dá e por isso ela nunca aparece nesse almoço, um momento com o pai que se repete por meses, intermitentemente, até um dia em que a menina não tem mais interesse na relação e o menino desaparece dentro do celular até sumir por completo e meu amigo voltar a beber sozinho, qualquer dia da semana. Digo beber por conta da garrafa sobre a mesa, mas a verdade é que nunca o vi dar um gole sequer.

*

            Todas essas elucubrações poderiam ter respostas se eu chegasse até sua mesa, encarasse sua imagem de hippie anacrônico e perguntasse: quem é você? Você se assustaria com essa intromissão ou logo declararia que há tempos esperava por minha pergunta? E se eu descobrisse que você é o contrário de qualquer possibilidade que cogitei, alguém desinteressado de literatura, um agiota ou alguém que vive de alugar imóveis e o caderno é apenas o controle dos recebimentos? Ou você finalmente beberia e, incomodado com minha curiosidade, se levantaria em silêncio e buscaria outro boteco de esquina para pousar. Não, prefiro alimentar as fantasias que desenhei para meu personagem, como alguém que começa a diminuir o ritmo da leitura de um livro com pena de acabar o contato com aquela realidade.

            Mais uma vez reitero minha saudade e espero que esteja bem.

 

                                                Abraços desse que o acompanha episodicamente,

 

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