Caro desconhecido,
ontem,
enquanto me preparava para jogar fora todo o lixo reciclável que se acumulou ao
longo da semana, tanto no apartamento quanto em minha cabeça, lembrei por um
instante de você. E ao deixar o material na calçada à espera de outro destino,
observei o boteco da esquina às escuras, um resto de chuva ainda escorrendo
pela lona. Tive saudade. Não o vejo desde o início do isolamento, embora me
parecesse que você já estava em um autoexílio desde sempre. Mas que bobagem
estou falando? - este sempre a que me refiro só começa a ser contado a partir
do momento em que percebi pela primeira vez a sua constante presença na mesma
mesa, sentado na mesma posição e com o mesmo cenário: uma ou duas garrafas de
cerveja, um copo pela metade, uma bolsa lateral sobre o colo e, eventualmente,
um caderno surrado que você folheava sem pressa.
*
Uma
tarde quente voltávamos de algum lugar e você estava lá, esperando o fim do
dia. Confidenciei à minha companheira que sempre o via por ali e ela revelou
que também notara seu devotado comparecimento. Naquele instante começou nossa
aventura de cogitar sua personalidade, sua biografia: sua roupa revelava alguém
que não se atém em preocupações sobre qual a melhor combinação, usando quase
sempre o mesmo estilo de calça e camiseta. Talvez isso seja um engano de minha
dedução e você gaste um pouco o pensamento em aparentar uma figura descuidada
no vestir. Conheço o tipo. Aliás, também reconheço esse olhar quase sempre
fincado com uma ruga entre as sobrancelhas, apontando para um carro ou um poste
do outro lado da rua e que, sabemos, não está mirando nem carro, nem poste, porém
uma ideia que mistura metafísica e a conversa animada da mesa vizinha. Um
professor? De História, talvez? Um escritor? Aquele caderno tem o rascunho de
um romance que há anos você reescreve à mão, suponho. Depois cogito serem
poemas que você anota na mesa (sim, observei que você escreve no caderno quando
em vez) e imediatamente minha expectativa de observador conjetura que você
gosta de Baudelaire e conhece de cor o poema A uma Passante, e partilha
da sensação do poeta francês vivendo no início da modernidade europeia: a
grande cidade, com suas multidões, coloca em alta velocidade as percepções e o
encontros.
*
Em outro início de noite comentei contigo sobre essa
narrativa que criei ao redor de sua existência e você me explicou que a
expectativa é sempre do observador, não do observado e portanto a frase
anterior - ‘minha expectativa de observador...” – era uma redundância.
Essa
conversa foi criada por minha companheira, que depois de tanto darmos contigo
no mesmo lugar, deu de imaginar que você era uma versão minha do futuro:
sozinho, bebendo e pensando sobre um escrito. Tremo, evidente. Não bebo cerveja
e não sou sozinho. Ela ri e diz que o meu amigo também riria com o fato de eu
titubear em ser igual a ele. Não, amigo, não tenho receio em ser como você: só
quero que você seja outro, inteiramente outro com suas experiências, sua vida.
Um alguém que me apresenta um novo elemento em um sábado, quando o boteco está
cheio devido à famosa feijoada e em sua mesa tem dois adolescentes. De passagem escuto a conversa, você fazendo
um apanhado das últimas notícias políticas e instaurando uma crítica com a qual
concordo. Os adolescentes não estão muito interessados, principalmente a
menina. Ela responde com palavras curtas enquanto a expressão entrega o desejo
de estar em outro lugar. Então temos uma virada no roteiro que designamos ao
nosso personagem: não é tão solitário, há filhos e, possivelmente, uma
ex-esposa com a qual ele não se dá e por isso ela nunca aparece nesse almoço,
um momento com o pai que se repete por meses, intermitentemente, até um dia em
que a menina não tem mais interesse na relação e o menino desaparece dentro do
celular até sumir por completo e meu amigo voltar a beber sozinho, qualquer dia
da semana. Digo beber por conta da garrafa sobre a mesa, mas a verdade é que
nunca o vi dar um gole sequer.
*
Todas
essas elucubrações poderiam ter respostas se eu chegasse até sua mesa,
encarasse sua imagem de hippie anacrônico e perguntasse: quem é você? Você se
assustaria com essa intromissão ou logo declararia que há tempos esperava por
minha pergunta? E se eu descobrisse que você é o contrário de qualquer
possibilidade que cogitei, alguém desinteressado de literatura, um agiota ou
alguém que vive de alugar imóveis e o caderno é apenas o controle dos
recebimentos? Ou você finalmente beberia e, incomodado com minha curiosidade,
se levantaria em silêncio e buscaria outro boteco de esquina para pousar. Não,
prefiro alimentar as fantasias que desenhei para meu personagem, como alguém
que começa a diminuir o ritmo da leitura de um livro com pena de acabar o
contato com aquela realidade.
Mais
uma vez reitero minha saudade e espero que esteja bem.
Abraços desse que o acompanha
episodicamente,
...
Rapaz, antes de tudo você já esta tão bem com as palavras de ler alma tal e qual uma cigana faz com a mão
ResponderExcluirTateando...
ExcluirFiquei com vontade de ver o personagem.
ResponderExcluirSerá que ele é real?
ExcluirConjecturas... muito bom!
ResponderExcluirConjecturas... muito bom!
ResponderExcluir♥️
ExcluirBelo texto! Também fiquei curiosa para conhecer o seu amigo e torcendo para que ele não seja um agiota.
ResponderExcluirEspero mesmo que não seja rs
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