trecho de livro de artista: tadeu renato |
Meu pai tem essa mania de andar pela casa rindo, deixando o chinelo no caminho e lembrando histórias que jura minha participação, mesmo eu dizendo que não sei quem são as pessoas que ele narra, muito menos os lugares. Ele ri, diz que eu não lembro porque bebi um pouco e estou falando feito um bobo. Ri das nossas rimas, temos o mesmo nome. Ele e essa mania de fingir que não sabe que está morto. Ou estou meio bêbado e inventado uma história em que ele é que não reconhece as pessoas, os fatos, os espaços? Vamos tirar uma foto para mostrar aos meus irmãos que você ainda está faminto, querendo aquele churrasco que prometemos quando você melhorasse. Meu pai ri da mania que eu tinha de ficar abrindo e fechando a porta só para ouvir o canto enferrujado das dobradiças e depois ri dos próprios gemidos que seu fígado o fazia disparar de hora em hora, alarme dolente que não deixava a esposa descansar. Nunca entendi o humor do meu pai.
*
RIM
Essa casa não é minha, como não foram
minhas mãos que plantaram essa goiaba (explodindo de madura) que agora aspiro
tentando tornar real seu sabor que não posso mais provar. Essa cama não é a
mesma que tive por anos: precisei trocar depois da operação. Não é meu esse
fígado filtrando meu tempo e já não são minhas as pedras malcheirosas que foram
britadas pelo rim. Da mesma forma não são meus esses grampos que
costuravam o novo órgão até que ele se acostumasse com seu novo espaço. Guardei
essas presas e as pedras em vidros que antes continham as ervas para banho.
Espiei por muito tempo essas réstias que meu corpo expeliu, busquei seus
formatos, os granulados das pedras prestes à se dissolverem em pó, o aço
inoxidável que fez ponto em minha pele e ainda brilhando. Feita de terra,
cismo, sou terra de onde brotam minérios. Dar à luz a plantas também seria um
desejo, se eu pudesse, assim meus vasos não teriam secado enquanto estive
internada.
Ainda sou interna de um corpo cansado,
mantido de pé por 720 comprimidos mensais e muita água. Alcalina, disse a
médica. Enfatizou: ALCALINA. Nascemos alcalinos e, velhas, somos cada vez mais
ácidas. Preciso ser criança outra vez? Preciso morrer para isso? Pequenas
mortes são o suficiente? Preciso voltar à água.
É de ondas esse sono que não me pertence,
é resultado da medicação, acordo e durmo com a mesma displicência, seja noite
ou dia. Um sono de peixe que
dorme sem parecer. Imagens que não reconheço, lembranças que não tenho. Não são
meus esses sonhos. São do rim que me habita. Acordo com um convicto desejo
de despejar minhas pedras e grampos cirúrgicos no vaso da orquídea que perde a
força. Peço licença para que ela me ensine a me acostumar com a morte.
*
COLUNA
Tem que disseram quinze dias, cata suas coisas e deixa o barraco.
Antes eu voava por cima das vielas e depois dançava com a chama das velas que
acendem sempre na esquina. Agora não consigo mais, que minha coluna dói, fica
me obrigando a rastejar e não tem jeito que me faça levantar a cabeça. Fosse
por mim, arrancava essa cobra das minhas costas e usava para laçar meu filho e
não soltar. Ele vai entrar por aquela porta mais uma vez, como tem feito toda
noite, vai dizer meu nome, sorrir sua molecagem e querer se apagar, mas minha
serpente vai segurar ele aqui: sai mais não, menino, lá fora é
perigoso.
Tem que nem é de muito o que preciso colocar em caixa, a maior
parte ficou na enchente dos dias e o resto eu poderia contar por anos à fio,
sem parar para deitar, sem parar nas contas das dores, sem dar tempo pros remédios.
Falaria até acabar o ar e ainda teria o que dizer do que tenho comigo, mas não
gosto disso, de ficar olhando dentro do poço sujo: se está lá embaixo, a gente
só traz pra cima em casa de incêndio ou sede sem fim. Já me basta ouvir meu
filho entrando em casa toda note, chamando mãe com aquele
sorriso debochado e não querendo esperar uma janta. Engole algo, menino, eu
engulo comprimidos enormes e você não consegue nem engolir esse sangue todo
saindo pela boca?
Tem que gritar desse jeito de arrebentar a porta a pontapé? Tem
que ser polícia atirando sem piscar, abrindo buraco em você e nos seus amigos?
Não consigo mais voar, prefiro entrar nos buracos do seu peito e ficar lá,
escondida três semanas até que me esqueçam, até que eu durma quentinha aqui,
entre os bichos de pelúcia que é só o que a mão pode tocar dos meus guardados.
E quando a pílula explode dentro do meu estômago é que você entra sonhando meu
sonho e parece tão bem, tão meu, tão teimoso que me dá vontade de te juntar
todo, só que você sempre se parte e vai. E é por isso que não sei mais como se
dorme bem.
- "Pequenas mortes" é como algumas culturas ameríndias se referem ao sono/sonhos.
Essas prosas (contos?) são parte de um projeto que venho desenvolvendo a partir da escuta e reelaboração poética de sonhos alheios.
😍💗💗👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirCada parte um risco (fígado), um corte (rim), um rasgo (coluna).
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