domingo, 16 de maio de 2021

Pequenas mortes



trecho de livro de artista: tadeu renato

*

FÍGADO


Meu pai tem essa mania de andar pela casa rindo, deixando o chinelo no caminho e lembrando histórias que jura minha participação, mesmo eu dizendo que não sei quem são as pessoas que ele narra, muito menos os lugares. Ele ri, diz que eu não lembro porque bebi um pouco e estou falando feito um bobo. Ri das nossas rimas, temos o mesmo nome. Ele e essa mania de fingir que não sabe que está morto. Ou estou meio bêbado e inventado uma história em que ele é que não reconhece as pessoas, os fatos, os espaços?  Vamos tirar uma foto para mostrar aos meus irmãos que você ainda está faminto, querendo aquele churrasco que prometemos quando você melhorasse. Meu pai ri da mania que eu tinha de ficar abrindo e fechando a porta só para ouvir o canto enferrujado das dobradiças e depois ri dos próprios gemidos que seu fígado o fazia disparar de hora em hora, alarme dolente que não deixava a esposa descansar. Nunca entendi o humor do meu pai.

                                           *                                      

RIM

 

Essa casa não é minha, como não foram minhas mãos que plantaram essa goiaba (explodindo de madura) que agora aspiro tentando tornar real seu sabor que não posso mais provar. Essa cama não é a mesma que tive por anos: precisei trocar depois da operação. Não é meu esse fígado filtrando meu tempo e já não são minhas as pedras malcheirosas que foram britadas pelo rim. Da mesma forma não são meus  esses grampos que costuravam o novo órgão até que ele se acostumasse com seu novo espaço. Guardei essas presas e as pedras em vidros que antes continham as ervas para banho. Espiei por muito tempo essas réstias que meu corpo expeliu, busquei seus formatos, os granulados das pedras prestes à se dissolverem em pó, o aço inoxidável que fez ponto em minha pele e ainda brilhando. Feita de terra, cismo, sou terra de onde brotam minérios. Dar à luz a plantas também seria um desejo, se eu pudesse, assim meus vasos não teriam secado enquanto estive internada.

Ainda sou interna de um corpo cansado, mantido de pé por 720 comprimidos mensais e muita água. Alcalina, disse a médica. Enfatizou: ALCALINA. Nascemos alcalinos e, velhas, somos cada vez mais ácidas. Preciso ser criança outra vez? Preciso morrer para isso? Pequenas mortes são o suficiente? Preciso voltar à água.

É de ondas esse sono que não me pertence, é resultado da medicação, acordo e durmo com a mesma displicência, seja noite ou dia. Um sono de peixe que dorme sem parecer. Imagens que não reconheço, lembranças que não tenho. Não são meus esses sonhos. São do rim que me habita. Acordo com um convicto desejo de despejar minhas pedras e grampos cirúrgicos no vaso da orquídea que perde a força. Peço licença para que ela me ensine a me acostumar com a morte.

 *

COLUNA

 

Tem que disseram quinze dias, cata suas coisas e deixa o barraco. Antes eu voava por cima das vielas e depois dançava com a chama das velas que acendem sempre na esquina. Agora não consigo mais, que minha coluna dói, fica me obrigando a rastejar e não tem jeito que me faça levantar a cabeça. Fosse por mim, arrancava essa cobra das minhas costas e usava para laçar meu filho e não soltar. Ele vai entrar por aquela porta mais uma vez, como tem feito toda noite, vai dizer meu nome, sorrir sua molecagem e querer se apagar, mas minha serpente vai segurar ele aqui: sai mais não, menino, lá fora é perigoso.

Tem que nem é de muito o que preciso colocar em caixa, a maior parte ficou na enchente dos dias e o resto eu poderia contar por anos à fio, sem parar para deitar, sem parar nas contas das dores, sem dar tempo pros remédios. Falaria até acabar o ar e ainda teria o que dizer do que tenho comigo, mas não gosto disso, de ficar olhando dentro do poço sujo: se está lá embaixo, a gente só traz pra cima em casa de incêndio ou sede sem fim. Já me basta ouvir meu filho entrando em casa toda note, chamando mãe com aquele sorriso debochado e não querendo esperar uma janta. Engole algo, menino, eu engulo comprimidos enormes e você não consegue nem engolir esse sangue todo saindo pela boca?

Tem que gritar desse jeito de arrebentar a porta a pontapé? Tem que ser polícia atirando sem piscar, abrindo buraco em você e nos seus amigos? Não consigo mais voar, prefiro entrar nos buracos do seu peito e ficar lá, escondida três semanas até que me esqueçam, até que eu durma quentinha aqui, entre os bichos de pelúcia que é só o que a mão pode tocar dos meus guardados. E quando a pílula explode dentro do meu estômago é que você entra sonhando meu sonho e parece tão bem, tão meu, tão teimoso que me dá vontade de te juntar todo, só que você sempre se parte e vai. E é por isso que não sei mais como se dorme bem.

 

- "Pequenas mortes" é como algumas culturas ameríndias se referem ao sono/sonhos.

 Essas prosas (contos?) são parte de um projeto que venho desenvolvendo a partir da escuta e reelaboração poética de sonhos alheios. 

 

2 comentários: