O Quarto Azul - Pablo Picasso |
A fotografia mostrava um grupo de pessoas em frente a
uma mercearia. Estavam sérios, firmes, semblantes fixados em uma determinada
máscara que deve ter permanecido por algum tempo, uma vez que os processos
fotográficos eram demorados no início do século XX. Suponho que quando o
fotógrafo deu por encerrada a ação, a pose se desfez e os sorrisos retornaram a
seus lugares, as brincadeira seguiram seus caminhos e os meninos fizeram graça
com o cheiro que existia no ar enquanto se faziam estátuas. No entanto, não
foram os corpos estancados na entrada do comércio, observando o fotógrafo – e,
portanto, a mim – que me dispararam para além do registro, mas uma sombra, o
vulto quase inexpressivo andando no lado de dentro do imóvel, a pessoa que por
algum motivo não se colocou diante da máquina de parar o tempo. Uma forma que
lembrava uma mulher de cabelos dançantes . Foi o corpo em movimento que me fez
pensar: todos ali já estão mortos. Em seu livro “ A Câmara Clara”, Roland
Barthes vai chamar esse detalhe disparador de punctum, essa quase-nada
de acontecimento que faz abrir uma espécie de ferida na percepção (detalhe que
depende de cada observador), nos alçando para o que a fotografia não mostra.
Nunca mais encontrei essa fotografia, guardada apenas na minha lembrança de
vê-la em uma exposição, o que a torna intáctil como o fantasma de um fantasma. Talvez
tenha sido justamente isso que tenha me arremessado da mancha de uma pessoa animada
para o pensamento sobre a finitude: eu estava vendo fantasmas.
Ver fantasmas era um desejo quando criança. Nenhum
desejo pela adrenalina que o medo pode dar, nunca fui fã de filmes de terror ou
suspense. Uma curiosidade investigativa que sempre me acompanhou queria ter
certeza das histórias que ouvia de amigos e familiares. Toda gente tem uma narrativa
sobre visões do incógnito e eu duvidava. A chance veio quando morávamos na
escola, meus pais zelando pelo prédio. Era moda naquele momento (e creio que
nunca saiu) a tal Loira que habitava as paredes do banheiro feminino. Bastava
alguns ritos – que variam em cada escola – para que a aparição surgisse e
causasse arrepios de fazer virar a vítima dos avessos. Pior ainda se seu
surgimento fosse percebido através do espelho: capaz do encarnado enlouquecer.
Ousado – mas com uma dose razoável de temor –, planejei a experiência: na tarde
de domingo adentraria o banheiro, faria todo o chamamento e encararia a Loira (penso
quantas vezes tremi ao encarar uma menina naquela época), resolvendo duas
curiosidades: ver assombração e descobrir o reservado onde só as meninas podiam
entrar: seria diferente do nosso? Haveria que tipos de escritos nas paredes?
Haveria paredes? E janelas? Sim, havia uma janela alta por onde entravam os
últimos indícios do dia. Dei descarga três vezes, cinco voltas em torno de mim,
risquei uma palavra no espelho, fechei o olho e fiquei próximo da porta. Desejava
o encontro, contudo estava pronto para fugir quando acontecesse (e agora penso
nas meninas que vinham falar comigo e minha voz fraquejava). Abri os olhos e
para um misto de decepção e contentamento, não havia fantasma e minha
desconfiança seguia intacta.
De verdade, eu queria esse encontro com o além do
plano mais imediato do cotidiano, que me acontecesse um único desses sustos nômades
a adentrar os entardeceres da infância. E embora nada tenha acontecido, desconfio
que da possibilidade de fazer brotar uma mulher vista através do espelho, com
seu olhos de esfinge, nasceu esse compasso de espera atento ao espanto. Não
qualquer espanto, não esses sobressaltos
noticiosos que desabam sobre nós todas as horas e que, assim como uma palavra
repetida diversas vezes, deixam de fazer sentido, mas algo como o assombro de relembrar
a finitude de tudo ou como uma súbita paixão por uma passante seguindo por trás
dos que posam para retratos.
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