quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Delírios virtuais

pintura de Lugufelo


          Foi há uns dois anos, ou algo por aí. Tinha descoberto que estava com dengue, depois de passar um dia todo no pronto-socorro de um hospital público, onde vi um homem sem nariz, uma criança com o pé torto, algumas idosas com variados problemas, quilos de palavras saídas com gosto de dor e cheiro de raiva. 
          Depois de tomar soro, ainda tonteado pelos primeiros sintomas, topei com um homem que barrou meu caminho e perguntou: você é PT? Não entendi e ele repetiu: você é PT? Confuso como qualquer um quem sai do hospital, o único PT que me ocorria era “perda total”. E apesar da fraqueza nos músculos e nos olhos (desconfio que o olhar também estava convulsionando), perguntei: PT… o partido? Ele confirmou e entendi que sua pergunta era, na verdade, uma afirmação: eu era um homem barbado, de óculos, brinco e camiseta vermelha: se não era do partido, estava vestindo uma aparência muito complicada para a época. Nem esperou que eu respondesse: vociferou contra a corrupção, o descaso com a saúde pública e as sete pragas do Egito. Pensei em mostra-lhe a placa logo acima de nós, com uma imensa logomarca do governo do estado, ponderar sobre a responsabilidade de cada esfera do poder público, mas nem eu nem ele estávamos em condições de travar uma conversa (e alguém ainda está?) sobre a política partidária e seus afazeres. Ouvi seu desabafo enquanto caminhava até o portão e voltei para casa, que a cama era meu único remédio. 
        Durante dias meu corpo era campo de batalha e não suportava interferência: não conseguia mover um músculo e durante muito tempo dormi. Ou acho que dormi. Provavelmente só estivesse assistindo, de olhos abertos, as projeções do meu inconsciente bagunçado por notícias e mosquitos. E assim seguiram os sonhos (ou quase sonhos), passando primeiro por imagens mais imediatas do cotidiano, seguidas de memórias fantasiosas e culminando com criações que eram composições feitas com poemas de Murilo Mendes, Jorge de Lima e desenhos animados. Foi nessa fase que vi uma berinjela recheada de purê de batatas ganhar vida em forma de aranha e acabar devorada pelo meu cão. E também foi nessa fase que assisti os devaneios de uma série que misturava Idade Média e futuro, tecnologias e piratas que falavam línguas completamente novas. Uma série internacionalmente conhecida e desejada, uma produção de milhões de dólares. No auge do sucesso, hackers roubaram os episódios inéditos e chantagearam a emissora, que não quis negociar. Para provar a seriedade, os sequestradores de capítulos vazaram dois desses episódios, o que causou um furor entre os aficionados. Então o canal tomou uma decisão radical e cancelou a série. Em muitos lugares surgiram pequenos protesto. Nas redes sociais, circulavam petições e escritos em caixa alta, responsabilizado a produtora. Alguns fãs tentaram fazer, eles mesmos, outras versões do programa e criaram em suas casas episódios alternativos, outras versões possíveis dos fatos. Mas logo percebeu-se o fracasso dessa empreitada: tudo soava falso, as pessoas percebiam o simulacro. Era preciso a realidade da série. As manifestações virtuais se transformaram em passeatas cheias de cartazes e coreografias. Gritavam, rezavam, pediam intervenção divina ou militar, qual viesse primeiro. Tudo para requerer a volta daquele mundo de causas e efeitos especiais.
        Era febre. Ou um desses delírios que o país pode causar.

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