Foi há uns dois anos, ou algo por aí. Tinha descoberto que estava com dengue, depois de passar um dia todo no pronto-socorro de um hospital público, onde vi um homem sem nariz, uma criança com o pé torto, algumas idosas com variados problemas, quilos de palavras saídas com gosto de dor e cheiro de raiva.
Depois de tomar soro, ainda tonteado pelos primeiros sintomas, topei com um homem que barrou meu caminho e perguntou: você é PT? Não entendi e ele repetiu: você é PT? Confuso como qualquer um quem sai do hospital, o único PT que me ocorria era “perda total”. E apesar da fraqueza nos músculos e nos olhos (desconfio que o olhar também estava convulsionando), perguntei: PT… o partido? Ele confirmou e entendi que sua pergunta era, na verdade, uma afirmação: eu era um homem barbado, de óculos, brinco e camiseta vermelha: se não era do partido, estava vestindo uma aparência muito complicada para a época. Nem esperou que eu respondesse: vociferou contra a corrupção, o descaso com a saúde pública e as sete pragas do Egito. Pensei em mostra-lhe a placa logo acima de nós, com uma imensa logomarca do governo do estado, ponderar sobre a responsabilidade de cada esfera do poder público, mas nem eu nem ele estávamos em condições de travar uma conversa (e alguém ainda está?) sobre a política partidária e seus afazeres. Ouvi seu desabafo enquanto caminhava até o portão e voltei para casa, que a cama era meu único remédio.
Durante dias meu corpo era campo de batalha e não suportava interferência: não conseguia mover um músculo e durante muito tempo dormi. Ou acho que dormi. Provavelmente só estivesse assistindo, de olhos abertos, as projeções do meu inconsciente bagunçado por notícias e mosquitos. E assim seguiram os sonhos (ou quase sonhos), passando primeiro por imagens mais imediatas do cotidiano, seguidas de memórias fantasiosas e culminando com criações que eram composições feitas com poemas de Murilo Mendes, Jorge de Lima e desenhos animados. Foi nessa fase que vi uma berinjela recheada de purê de batatas ganhar vida em forma de aranha e acabar devorada pelo meu cão. E também foi nessa fase que assisti os devaneios de uma série que misturava Idade Média e futuro, tecnologias e piratas que falavam línguas completamente novas. Uma série internacionalmente conhecida e desejada, uma produção de milhões de dólares. No auge do sucesso, hackers roubaram os episódios inéditos e chantagearam a emissora, que não quis negociar. Para provar a seriedade, os sequestradores de capítulos vazaram dois desses episódios, o que causou um furor entre os aficionados. Então o canal tomou uma decisão radical e cancelou a série. Em muitos lugares surgiram pequenos protesto. Nas redes sociais, circulavam petições e escritos em caixa alta, responsabilizado a produtora. Alguns fãs tentaram fazer, eles mesmos, outras versões do programa e criaram em suas casas episódios alternativos, outras versões possíveis dos fatos. Mas logo percebeu-se o fracasso dessa empreitada: tudo soava falso, as pessoas percebiam o simulacro. Era preciso a realidade da série. As manifestações virtuais se transformaram em passeatas cheias de cartazes e coreografias. Gritavam, rezavam, pediam intervenção divina ou militar, qual viesse primeiro. Tudo para requerer a volta daquele mundo de causas e efeitos especiais.
Era febre. Ou um desses delírios que o país pode causar.
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