Nem o mais criativo autor do gênero realismo mágico imaginaria, no início de 2020, uma quarentena tão longa e cansativa. Vicente, que não faz ideia do que seja realismo mágico, imaginava alguns meses de descanso em casa, como todos os seus companheiros de trabalho no escritório.
Depois de alguns dias, algumas semanas, alguns meses, as atividades do escritório já haviam sido adaptadas para o home office. Vicente, que além de avesso à tecnologia era responsável por atividades presenciais, esperou. No escritório fazia pequenos reparos, reposição de materiais, serviços bancários. Tudo o que o home office dispensava.
A secretária já havia colocado todos os salários no pagamento automático do banco. Parece que a estagnação salarial dos últimos anos facilitou o trabalho dela. Foi um pouco antes de pedir demissão e aproveitar a onda de delivery para se dedicar à culinária.
E foi assim que o escritório permaneceu por um ano e meio, no modo automático, até voltarem às atividades presenciais, depois das vacinas, ainda com muito álcool gel e máscaras. O clima era de descontração. Prevalecia o alívio por sair de casa e interagir melhor com as pessoas, mas pairava em todos a sensação de esquecer alguma coisa. Brincavam que devia ser um efeito colateral da quarentena, a ser estudado.
Vicente, em casa, aguardava por novidades. Tinha a certeza de que alguém do escritório entraria em contato quando fosse necessário voltar ao trabalho. Enquanto isso, permanecia em casa, nas férias mais longas que já tivera na vida, desde que começou a trabalhar, aos 14 anos, quando o país também vivia uma crise econômica e caos político, no início dos anos 90.
A rotina entediante era abalada por um SMS. Vicente corria para ver. Geralmente era a operadora de celular oferecendo promoções e vantagens. Para falar com quem? Sequer lembrava da última ligação pessoal, que não fosse para interagir com um robô ou negar serviços oferecidos por telemarketing.
Nos últimos meses, ele fazia de uma ida ao mercado um grande acontecimento. Era a motivação para tomar um banho, colocar a melhor roupa, borrifar água de colônia e fazer a barba, ainda que o capricho fosse escondido pela máscara.
Do outro lado da cidade, os funcionários nem perceberam que os meses de clausura ensinaram que todos eram capazes de conciliar tarefas manuais com o trabalho. Era possível trocar uma lâmpada, preparar o café, abastecer as impressoras com papel, regar plantas, fazer pequenas compras; só a sensação de que estavam esquecendo alguma coisa permanecia no ar.
Tanto tempo de espera fez Vicente se dar conta de que após vários anos trabalhando com as mesmas pessoas, sequer conhecia a maioria delas. Teria trabalho para encontrar o telefone de alguém do escritório, além do que não gostaria de incomodar alguém, com quem não tinha muito contato, com uma ligação. Achou prudente esperar.
Voltar ao escritório não era bem uma vontade. Sabia que era necessário, que precisava do salário, que interromperia uma rotina extremamente cansativa – nunca imaginou que não fazer nada cansava tanto –, mas tinha a certeza de que não era hora.
Ele, que não foi incluído em nenhum dos inúmeros grupos de WhatsApp do escritório, não tinha dúvida de que quando voltassem a trabalhar entrariam em contato. Aquele pessoal não saberia se virar sem ele. Sua importância no dia-a-dia era inquestionável, não passava um dia sem ser requisitado dezenas de vezes por aquelas pessoas que não desgrudavam do computador. Jamais conseguiriam se virar sem ele.
Depois de alguns dias, algumas semanas, alguns meses, as atividades do escritório já haviam sido adaptadas para o trabalho presencial novamente. Vez ou outra alguém lembrava daquela estranha sensação de que faltava alguma coisa.
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