quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Salário não é renda

Com o aumento recente da inflação, alguns termos técnicos de economia voltaram a circular com mais frequência nos jornais. Isso faz com que algumas palavras sejam usadas de forma equivocada, principalmente por quem não é especialista no assunto.

O IPCA voltou às manchetes. É preciso dizer que significa Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo. É preciso dizer que isso não esclarece muita coisa. O fato é que o tal IPCA mede a inflação, que chegou à maior alta em 21 anos.

Isso é dito por pessoas que em 2015 juravam que o Brasil vivia a pior crise econômica de sua história. Pessoas que têm idade suficiente para lembrar da hiperinflação dos anos 1980 e, portanto, para saber que em 2015 estávamos longe da pior crise da história. Só estávamos próximos de conseguir apoio popular para o impeachment de Dilma Rousseff e para isso um cenário apocalíptico caia bem.

Hoje, com a situação econômica pior do que há seis anos, os jornais afirmam que a inflação compromete a renda do trabalhador. O problema é que o trabalhador não tem renda, tem salário. Pode parecer preciosismo, já que qualquer um entende que a tal renda se refere ao dinheiro que recebemos em troca da força de trabalho, mas na prática a diferença é bem grande.

O salário é comprometido pela inflação porque com os preços mais altos o trabalhador gasta mais para comprar tudo o que precisa. Os preços sobem por uma relação complexa de fatores, com alguns pontos chaves, como os combustíveis.

Desde o fim de 2016, no governo Temer, o preço dos combustíveis é atrelado ao dólar, portanto não importa a quantidade de petróleo que o país consiga extrair, se o valor do dólar subir, como subiu, o preço aumenta. Em um país onde a maior parte dos produtos é transportada por estradas, aumentar o combustível gera uma reação em cadeia. É necessário aumentar o frete, isso encarece as matérias primas e deixa o produto final mais caro. Já o salário do trabalhador não aumenta.

A renda é outra coisa. É composta por tudo que a pessoa receber. Pode até incluir um salário, mas também tem outras fontes, como o lucro de ações de quem especula na bolsa de valores e eventualmente tenha comprado ações da Petrobrás. Ao manter o preço do combustível atrelado ao dólar, o governo garante que esses acionistas tenham lucro muito maior do que quando a gasolina custava metade do valor atual – e alguns motoristas colavam adesivos com uma montagem tosca e chula, de Dilma Rousseff com as pernas abertas na entrada do tanque de combustível.

Pode ser incluído na renda o lucro mensal proveniente de aplicações. Essa renda vai desde uma pequena poupança, cultivada com muito suor ao longo da vida, até somas milionárias, por vezes em dólares, como os 9,55 milhões do ministro Paulo Guedes, mantidos seguros em um paraíso fiscal. Pelo menos agora entendemos por que, nas palavras de Guedes, “dólar alto é bom”. Qualquer um que lucre cerca de R$ 14 milhões com a variação de câmbio concorda com a afirmação.

Outra fonte de renda são as aposentadorias e pensões. Como as pensões pagas aos dependentes de militares, que em 2020 custaram aos cofres públicos R$ 19,3 bilhões de reais, pagos a somente 226 mil pessoas. Muitas dessas rendas superaram o teto constitucional de R$ 39,3 mil, chegando a R$ 80 mil para 77 pensionistas.

Entre quem vive de renda, é comum ter imóvel, ou imóveis, para alugar. Um imóvel, como o próprio nome diz, é fixo e estável. Não sofre influência do combustível, do dólar ou da energia. Independente das flutuações da bolsa de valores, o imóvel segue no mesmo endereço, com a mesma quantidade de cômodos, mas o aluguel varia de acordo com o IGP-M, que significa Índice Geral de Preços do Mercado, que não explica muita coisa. O Mercado, com letra maiúscula, personificado, decide. A renda aumenta a despeito do salário comprometido pela inflação.

O trabalhador não tem a renda comprometida pela inflação porque o trabalhador não tem renda. Como desemprego em alta e os empregos formais precarizados pelas reformas que prometiam melhores condições de emprego, o trabalhador tem, quando muito, um salário. Este sim, comprometido por políticas de austeridade seletiva. A renda, em geral, segue muito bem protegida.



*Nota: Falando em preciosismo dos termos, no editorial de ontem o jornal O Globo afirma ser "um absurdo acusar Bolsonaro de genocídio". Segundo o jornal, "palavras não são inócuas (...) devem ser usadas com a maior parcimônia". De fato, não são inócuas, e por isso mesmo genocida serve a Bolsonaro como uma luva.

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