(Essa não é uma história verdadeira)
Por Marina Alvarenga Botelho
Quando
eu tinha 15 anos eu fui a primeira vez a uma psicóloga. As queixas vinham da
família: eu era muito agressiva e não sabia lidar com o meu pai. A minha queixa
pessoal era: eu odeio meu pai. Tentando entender porque eu odiava meu pai, a
psicóloga ouvia os relatos: “uma vez, no meio da loja dele, ele gritou comigo e
me disse: ‘você é o problema da minha vida, sua bosta’”. E mais, das minhas
lembranças: “sábado de manhã ele mandou a gente arrumar a cama. Eu arrumei. Ele
disse que não estava bom e que tinha que ficar igual a de hotel”. Ou também, de
quando eu fiquei em 46º lugar, em um vestibular seriado com mais de mil
concorrentes, e eu recebi apenas um “não fez mais do que a obrigação”.
Também
contei para a psicóloga que uma vez meus pais me abandonaram no meio de uma
rodovia na Bahia. Eu dividia o banco de trás com minha irmã mais nova, e como
eu era maior, e ela miúda, eu achava que tinha o direito de passar um pouco da
metadinha do banco. Ninguém achava isso e eu estava teimando. Aí meu pai disse:
“E se você não calar a boca eu paro o carro aqui e te deixo na rodovia”. Eu,
cheia de mim, falei: “então, para!”. Ele parou. Eu desci. O carro deu partida e
saiu andando. Eu olhei para os lado procurando uma casa para ligar para minha
tia. Me lembro do telefone dela de cor até hoje. Quando estava a perder de
horizonte o carro parou e deu uma ré. Eu fui e entrei no carro. Para mim, essa
situação foi traumatizante, mas para eles, não foi nada demais.
Foram
vários os compartilhamentos de sentimentos e lembranças desse estilo. Mas não
foi dessa vez, não deu certo com essa psicóloga. Não me lembro de ela ter
ajudado, não me lembro de nada do que ela falava. A situação continuou sendo
horrível. Continuei odiando meu pai.
Depois,
quando voltei de um intercâmbio eu simplesmente não conseguia me adaptar
novamente à vida de antes, e tive que procurar outra psicóloga. Até que dessa vez foi um pouco melhor. Ela
trabalhava com as crenças. Deus e família, principalmente. Bem, eu sou ateia, e
na minha família estava difícil o relacionamento. Dessa vez, não só com o meu
pai, que até hoje não passa de um oi, um beijinho no rosto e conversas
burocráticas. Mas era também com minha mãe, que sempre foi o foco do meu amor
em relação aos dois. A única que demonstrava afeto, a pessoa que participava da
minha vida. Minha e da minha irmã.
A
psicóloga falou umas coisas boas dessa vez. A principal para mim foi me colocar
na seguinte situação: “você está andando na rua e vê uma pessoa conhecida
passando ao seu lado. Ela não te diz oi. O que você acha que pode ser?”. Eu
respondi: “porque ela não gosta de mim”. E aí ela disse: “mas será que não
poderiam ser outras coisas? E se ela simplesmente não te viu? Ou, às vezes, ela
está em um dia ruim”. E aí eu me toquei: “nossa, é mesmo! Nem tudo é sobre
mim!”.
Lembro-me
também que ela dizia: “eu posso fazer por você duas coisas: te ajudar a
resolver um problema ou te ajudar a aceitar um problema que não pode ser
resolvido”. O que mais me incomodava era ela tentar falar de Deus para mim. Do
tipo: “se você acreditasse em Deus ele poderia ser uma força a mais para você”,
sendo que eu já havia deixado claro minha visão sobre. Enfim, tive altas,
voltei lá algumas vezes, mas nunca foi aquilo que eu esperava.
Me
casei com um psicólogo. E em uma época muito difícil da nossa relação, ele me
convenceu a procurar uma psicóloga behaviorista/comportamental.
Fui.
E foi quando minha vida começou efetivamente a mudar. É quase como se fosse a
abertura de um terceiro olho, no sentido de passar a ver as coisas totalmente
diferentes, e de uma forma melhor, mais atenta, mais observadora.
Aí
eu acho que foi dessa vez que eu me dei bem com uma psicóloga. E entendi o
quanto a psicologia é completamente mal interpretada pelo senso comum, e o
quanto ela é essencial na vida das pessoas. Sério, todo mundo deveria ir!
Foi
quando eu entendi que na minha criação, eu quase nunca fui reforçada
positivamente – para quem não conhece o termo, quase nunca me deram um parabéns
depois de fazer algo bacana. É como dar um petisco pro cãozinho que pegou e te
trouxe a bolinha de volta. Esse “não fez nada além da sua obrigação” me deixou
insegura, com a auto-estima baixa, buscando sempre uma perfeição que não
existe, sempre com medo do que os outros vão pensar.
Percebi
também que aquilo de eu “odiar” o meu pai era porque ele nunca fora uma fonte
de afeto. Enquanto os meus quatro avós (paternos e maternos), foram fontes
incondicionais – um carinho sem explicação!
Entendi
também que, até então, os meus comportamentos operavam no segundo nível de
seleção, ou seja, o ontogenético, ligado a minha história de vida. Em outras
palavras, os meus comportamentos diziam respeito ao que é interessante para
mim. E comecei a observar as pessoas e a entender que quase todo mundo
opera nesse nível. Talvez esse seja um dos maiores causadores de problemas no
mundo.
Foi
também quando eu aprendi o que é o terceiro nível de seleção, o cultural, e
entendi o que é amor de verdade. Que é quando seus comportamentos operam de
acordo com o que é bom para o outro. Amar alguém é querer que essa
pessoa seja feliz. É apoiá-la, mesmo quando você não concorda. É estar ao seu
lado. E eu percebi que grande parte do que me fez sofrer muito é meus pais não
operarem muito nesse nível. Meu pai, quase nada. Minha mãe, às vezes, mas isso
tem mudado.
O
meu pai opera totalmente na imposição da experiência soberana e incontestável
dele. Para ele, tudo que sai da boca dele é um tecmérion. Mal sabe ele que eu
sou um outro mundo, um mundo próprio, cheio de experiências e vivências!
Nas
minhas sessões com essa psicóloga comportamental, a gente observa as minhas
vivências, descrimina as coisas e cria estratégias para melhorar. Para melhorar
a minha relação com o mundo, com as pessoas, mas, principalmente, comigo mesma.
E isso só é possível operando no terceiro nível. Não vou mentir, é difícil para
caralho! Mas tem dado bons resultados. É treino, é paciência, é quase como
repetir um mantra: “terceiro nível, terceiro nível...”. Em uma briga, ao invés
de contar até dez, tem sido o mantra.
Tenho
os meus deslizes, e quando acontece alguma briga com meus pais, principalmente
com a minha mãe, dói demais. Porque é um trabalho que tem muito tempo, amor (e
dinheiro!) investido. Mas sei que é um trabalho para a vida toda – clichê, mas
verdade.
Às
vezes as pessoas falam: “nossa, mas você é casada com um psicólogo? Deve ser
estranho, ele deve ficar te analisando toda hora”. Mas, cara, ele é meu marido,
e não meu psicólogo! Os psicólogos não julgam as pessoas, muito pelo contrário!
Eles são um território judgment free –
tirando alguns charlatões, é claro, como em toda profissão. Acho que eu sou
muito mais psicóloga do meu marido do que ele de mim. Nossas discussões são
ótimas, cheias de termos técnicos, totalmente racionais – e isso é muito bom!
Na
verdade, hoje eu só escrevi tudo isso porque eu estou triste pra caralho.
Sempre escrevi melhor quando estou triste. Na minha sessão de ontem, eu e a
psicóloga ficamos orgulhosas de como, trabalhando o terceiro nível, (que eu já
apelidei de amor), consegui ter uma relação bacana com meus pais nos últimos
dias. E aí hoje, tudo desmoronou, num deslize meu. Em um momento em que eu fui
injustiçada – minha mãe achou que eu fui grossa em uma situação, mas eu não
fui.
Era
ela naquela historinha que contei no quinto parágrafo, tendo certeza que a
pessoa não falou “oi” porque não gostava dela. Era ela tendo a certeza de que
eu fui grossa, porque ela sempre acha que eu sou grossa. Quando, na verdade,
uma das primeiras coisas que eu falei na minha primeira sessão com a psicóloga
é – as pessoas falam que eu sou grossa. “Quem fala que você é grossa?”,
perguntou ela. E eu disse, “minha mãe”. E ela perguntou novamente: “mas você é
grossa?”, e eu entendi que eu não era grossa. Que minha mãe me
achava grossa. E, pelo visto, até hoje. Ela já parte do pressuposto de que eu
vou ser grossa, antes mesmo de eu responder. Enfim. Fiquei nervosa e esqueci do
terceiro nível. Acontece. E aí a gente
se machuca.
A
grande maravilha, para mim, da ciência do comportamento, é essa autonomia que
ela nos dá de nos entender, de entender as coisas ao nosso redor. De reconhecer
onde a gente errou e saber como mudar para a próxima vez. Estou numa relação
séria de amor pela ciência do comportamento. Isso me dá forças demais para
deixar o orgulho de lado e agir no terceiro nível. Aliás, vou ligar para minha
mãe agora mesmo.
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