Eles estavam há mais de duas horas ali. Na
mesa, garrafas de litrão se acumulavam. Seu João se aproximou cuidadosamente,
como se não quisesse incomodá-los:
-O bar está fechando... Vocês podem acertar
a conta?
Saíram ainda inflamados pela discussão. Ele
gesticulava muito. Ela sorria ironicamente.
-Vocês não entendem! Há algo muito maior do
que todas essas questões de identitarismo. Vocês estão sendo usados para nos
enfraquecer, nosso alvo maior é a economia, deve ser ela, estamos brigando por
bobagens – ele dizia inconformado.
-Bobagens? Minha liberdade é inegociável,
vou brigar por ela no primeiro plano, não vou deixar pra depois. Você diz isso
porque é homem e branco. – Após uma pausa, ela disse calmamente: “Você não
entende os próprios privilégios...”.
-Sabe,
é isso que ta insuportável! A gente não pode mais conversar sem vocês apontarem
o dedo “porque eu como mulher”, “porque eu como negro”, “porque você como homem
branco”... Cara, não dá, a gente não consegue mais conversar sobre política ou
qualquer outra coisa sem ouvir isso. Qualquer opinião que eu dou, lá vem o dedo
me apontando. O cara dá uma “escorregada” e pronto! Já é linchado, sem levarem
em consideração todo o seu histórico e o que ele fez pela nossa causa. A mina é
assassinada porque estava brigando com os grandes da corrupção policial e
política e só falam que ela era negra, da periferia, lésbica, como se isso
tivesse alguma coisa a ver... Eu te amo, mas odeio quando você fica com essa
sua cara arrogante! Por que a esquerda...
-A esquerda?! Diga, meu bem, como nós
acabamos com a esquerda unificada e forte, pronta para iniciar a revolução!
-Tá vendo! Como vamos construir algo assim?
-Exato! Como vamos construir algo assim?
Sabe qual é a novidade? Vocês, homens brancos de classe média/elite, nunca se
deram conta de que são a régua padrão para tudo simplesmente porque o seu corpo
tem passe livre. Vocês nunca se deram conta de que os corpos são marcados socialmente, que quando alguém me vê, o meu corpo chega antes do meu argumento
porque vocês nunca viveram isso até agora. Mas se aplica a vocês também. O
lance é que vocês dispõem de uma falsa neutralidade, que é de dominância.
-Eu sei, mas acho que vocês exageram,
porque tem gente que é muito radical e aonde vamos parar? Você não acha?
-Não.
-Você não acha radical?!
-Não. Acho que sem questionar as coisas na
raiz, nunca conseguiremos avançar. Eu não quero lutar por uma sociedade justa
ao lado de pessoas que não me enxergam e não me tratam como par. Que me
interrompem quando estou desenvolvendo um argumento, que me tratam como se eu
fosse uma criança, explicando coisas que obviamente sei, que me assediam de
forma constante e inoportuna...
-Mas e a paquera?
-Não. Eu me recuso a falar disso de novo.
Chega! Estou cansada. Meu ônibus está parado ali, eu vou indo.
Ele baixou a cabeça chateado.
-Você não vai me dar nenhum beijo? – Ele
perguntou sem jeito, sem se sentir seguro o suficiente para tocá-la.
Ela o encarou e sorriu.
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