Otávio nunca imaginou que uma Mega-Sena acumulada poderia causar tantos problemas. Tudo começou naquele fim de tarde monótono, quando a secretária do escritório levantou a bola. “Eu, se ganhasse, ia viajar o mundo.”
A sequência de sonhos foi rápida e extensa. Não faltaram Ferraris, iates, mansões, viagens e até ações gratuitas, ao alcance de todos, mas que precisavam de um suporte milionário por trás, como mandar o chefe à merda.
Otávio matutava em seu cantinho quando baixou o silêncio e alguém notara que ele não havia dito nada. “E você, Otávio?” Foi objetivo, logo no maior desejo: “Eu ia comprar uma bicicleta.”
Ficou meio perdido entre os risos que seguiram. Será que deveria ter detalhado melhor? Era uma bicicleta de 21 marchas, profissional, inteirinha vermelha. Achou melhor deixar o assunto morrer e perguntar para a secretária, em quem confiava, qual o problema com a bicicleta.
“Não tem problema nenhum, Otávio. Mas o prêmio está acumulado, são mais de 200 milhões, dá para comprar uma fábrica de bicicletas!”
Agora sim o caldo entornou. Muita gente estava dizendo que só ia apostar porque o prêmio estava acumulado. Mas por que esperar acumular tanto dinheiro? O fato é que precisava encontrar novas formas de gastar o prêmio, para o qual ainda nem havia jogado.
A noite foi de angústia. Rolava de um lado para o outro da cama. Poderia comprar uma televisão maior ou trocar a tela do celular, que há tempos estava trincada. De repente esnobar e passar uma semana inteira em Caldas Novas! Mas talvez ainda sobrasse dinheiro.
Se pelo menos soubesse dirigir poderia dizer que compraria a tal da Ferrari. Um iate não ia dar certo, pois mal sabia nadar. Uma mansão seria trabalhoso demais! Se manter o cafofo limpo e arrumado já era cansativo! Lembrou de alguém dizendo que ia comprar uma fazenda. Se esse sujeito soubesse o trabalho que dá carpinar um lote, jamais diria uma bobagem dessas.
No dia seguinte, exausto pela noite em claro, já chegava no escritório quando viu um morador de rua. É isso! Ali estava a solução. Não abriria mão da bicicleta, nem da semana em Caldas Novas, mas poderia usar o dinheiro para ajudar os pobres! Já tinha uma resposta e um motivo pelo qual jogar.
Era o último dia de apostas e Otávio levava a resposta na ponta da língua. Desta vez a rodada de sonhos começou logo de manhã. Não variou muito, as mesmas Ferraris, os mesmos iates, as mesmas mansões, etc. Na vez de Otávio a expectativa aumentou. Como já havia falado da bicicleta, resolveu pular essa parte. “Eu ia viajar... e ajudar quem precisa.” “Ô, madre Tereza, ficou louco?”
Era só o que faltava. Ainda não estava bom! Perdeu a última cartada e não fazia ideia de como iria gastar o dinheiro do prêmio. Seria um dia longo, pensando e repensando. Dificilmente encontraria algo que já não tenha cogitado durante a noite que passou em claro.
Não tocou mais no assunto. Ficou, como de costume, quieto em seu canto. A Mega-Sena foi assunto do dia, mas desistiram de perguntar a ele o que faria com o prêmio. Perdeu toda a hora de almoço na fila imensa da lotérica, mas voltou para o escritório com o maldito papel nas mãos, o comprovante da aposta, que lhe tirara, literalmente, o sono.
À noite segurou o papel nas mãos, enrolou tudo com um terço e sentou na frente da tevê, para assistir ao vivo ao sorteio. Assim que começou a transmissão começou a rezar, com uma fé que nem sabia que tinha. Suava a ponto de borrar todo o papel da aposta.
Em poucos minutos estava tudo resolvido. Brilhava na tela a materialização de seu maior sonho. As preces haviam sido atendidas e seu maior desejo havia se realizado. Não acertou um único número entre os seis sorteados.