sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

2019, o ano da coragem

2019 cumpriu sua promessa. Acompanhar as notícias de jornal virou uma espécie de tortura, uma sequência de catástrofes, mortes, desmatamento, desemprego, empobrecimento, todo o tipo de ameaça ao bem-estar presente e futuro da maioria da população.

Outro dia no Twitter rolou uma "corrente" na qual os usuários contariam sobre as coisas boas que lhe ocorreram neste ano. Algumas pessoas ficaram ofendidas porque não haveria espaço para celebrar nada num ano tão marcado pela destruição.

Minha percepção é que se assolou no país uma tristeza generalizada. Mesmo para aqueles que se identificam com o fascismo, ninguém me parece alegre ou satisfeito. Fora isso, temos o bom e velho capitalismo que exige cada vez mais das pessoas eficiência e dedicação plena à vida profissional. A competição extremada do mercado de trabalho gera angústia e instabilidade emocional. Muitas pessoas não conseguem sequer cultivar um hobby ou mesmo usufruir do seu tempo livre sem se preocupar em fazer algo útil.

A Companhia das Letras publicou uma palestra provocativa do Ailton Krenak chamada "Ideias para adiar o fim do mundo". Deixo aqui minha indicação de leitura para este final de ano. Fiquei muito tocada com o texto porque ele foi de encontro às minhas angústias com o fim do mundo cada vez mais próximo. 

Assim como eu, muitas pessoas se desesperam com o colapso ambiental e a luta homérica contra as injustiças sociais que parece não ter fim. O desespero leva ao pânico. Acho que é sobre isso quando o Ailton fala que não sabe se os brancos vão aguentar o fim do mundo. Mais de 500 anos desde a invasão portuguesa, mais de 500 anos desde o fim do mundo e ainda existem diversos povos indígenas no Brasil. E como eles resistiram?

Uma possível leitura é que eles resistiram criando sentido de viver em sociedade, gozando do prazer de estar vivo. Resistiram a ordem de integrar o "mundo dos zumbis", não permitiram que seus corpos ficassem tristes. Como disse o filósofo Deleuze, o poder necessita da tristeza porque é assim que consegue dominar: é pela alegria que temos potência de criar e resistir.

Termino o ano com essa reflexão: a urgência de recuperar a alegria de viver e a coragem para enfrentar a vida. Quando o mundo estiver pesado demais é preciso empurrá-lo de volta pra cima e respirar fundo. Se estamos nos encaminhando para o fim do mundo, podemos ao menos tentar adiá-lo como sugere o Ailton Krenak.

domingo, 22 de dezembro de 2019

Melhores livros lidos em 2019

Quem me conhece um pouco, sabe que sou apaixonado por literatura e por livros. Quem me conhece um pouquinho mais, certamente saberá que também sou um esquisito admirador de listas. Assim, não posso deixar de juntar estas duas paixões e, pelo terceiro ano consecutivo, publicar minha lista de melhores leituras do ano. Nunca é demais repetir que não se trata de uma lista de livros publicados em 2019, mas de livros cuja leitura fiz neste ano coxinha que já está terminando.

Minha lista é bastante tendenciosa. Nos últimos 4 anos meus interesses têm se voltado bastante para literatura brasileira e hispano-americana contemporânea, de modo que isso se reflete aqui também. De tempos em tempos, é claro, também leio autores mais clássicos (e dois deles se fazem presentes aqui), mas preciso dizer que são minoria. Bom, mas vamos à lista (que não segue ordem alguma)!

A uruguaia e Uma noite com Sabrina Love, ambos de Pedro Mairal (Argentina) - Mairal tem um grande poder de nos fazer empatizar com seus personagens e seus dramas. Não dá pra largar seus livros depois que lemos a primeira linha. É uma prosa viciante, com diálogos e reflexões com os quais gostaríamos de participar, de falar junto, torcendo por seus personagens, seja o quarentão Lucas Pereyra, tentando resolver seus inúmeros problemas pessoais enquanto deambula pelas ruas de Montevidéu, seja o adolescente Daniel Montero, em sua saga para chegar a Buenos Aires para passar uma noite com Sabrina Love, a estrela do canal pornô que sorteou seu nome, entre milhares, como nos programas de auditório tão comuns nos países latino-americanos.

A vegetariana, de Han Kang (Coréia do Sul) - Baita livro, o primeiro de uma escritora sul-coreana que li na vida. A grande questão de A vegetariana é mostrar o quanto as pessoas se sentem no direito de intervir em escolhas individuais alheias (sobretudo se envolvem corpos femininos, sobretudo em sociedades conservadoras - assim, tipo a brasileira). O livro é dividido em 3 partes, cada qual com um narrador distinto, cada um com uma narrativa acerca do fato da protagonista ter se tornado vegetariana. A grande sacada do livro é que nenhuma dessas narradoras é a própria protagonista. Só sabemos o que falam dela, nunca o que ela fala de si própria.

Sombrio Ermo Turvo, de Verônica Stigger (Brasil) Este livro é uma aula de escrita em forma de contos. Nenhum deles passa perto de qualquer convencionalismo e sempre deixam o leitor com o disjuntor caído ao final. Mais um baita livro de Verônica Stigger!

O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Marquez (Colômbia) - Gabo é pra se ler em voz alta, sentindo o sabor de cada palavra. Este talvez seja seu livro mais poético, a história do amor obstinado de Florentino Ariza, que precisa esperar 50 anos para poder se declarar para Fermina Daza. Um grande tratado sobre o amor que, ao contrário de outros livros do gênero, não cai uma linha sequer em qualquer tipo de pieguice. 

Nocilla Experience, de Augustín Fernandez Mallo (Espanha) - Mallo se auto-declara representante de uma "literatura móvel" ou fluida. Em Nocilla Experience (que compõe com Nocilla Dream e Nocilla Lab uma trilogia) temos exatamente isso, trata-se de uma coleção de textos curtos, altamente povoados de ícones da cultura Pop - Nocilla nada mais é que a Nutella espanhola) que permitem uma leitura quando tomados isoladamente (quando vistos de perto, digamos, como quando nos aproximamos de um quadro) e uma outra leitura quando lidos em conjunto (quando vistos de longe).

Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade (Brasil) - Este ano resolvi parar de ler os poemas de Drummond no modo aleatório e lê-los de modo mais sistemático (não que seja ruim ler aleatoriamente, mas quis fazer essa experiência), lendo os 7 primeiros livros dele, de "Alguma Poesia" até "Fazendeiro do Ar". Poderia escolher qualquer um para estar aqui, mas escolho o primeiro, aquele que tem as bases da poesia de Drummond e que reúne os poemas que ouvi desde sempre, como "Poema de Sete Faces", "No meio do caminho", "Cidadezinha qualquer" e "Quadrilha".

O teatro da rotina, de Alex Xavier (Brasil) - Da nova safra de ótimos escritores brasileiros, Alex Xavier tem um repertório infinito de procedimentos narrativos em seus contos, onde consegue extrair o fantástico de situações mais rotineiras. 

Bonsai A vida secreta das árvores, de Alejandro Zambra (Chile) - Os dois primeiros livros de Zambra já tiveram edições separadas pela Cosac e agora aparecem em edição única pela Tusquets. Além de ambos terem a figura de árvores como referência, também tratam igualmente de desencontros amorosos. Além disso, os dois livros são narrativas curtas, de linguagem muito potente, que vale por si só. A primeira passagem de "Bonsai" já nos diz que a literatura de Zambra busca muito mais uma linguagem do que um grande tema: "No final ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia. Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava e continua se chamando Julio. Julio e Emilia. No final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura".

E você, quais foram seus livros favoritos de 2019? Cite aí nos comentários (nem precisa dizer o motivo...rs).

sábado, 21 de dezembro de 2019

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Especial de Natal

Sobre o Natal guardo desde a infância a memória de uma época de paz, confraternização e a família quase se engalfinhando por conta da uva passa no arroz. Isso no fim dos anos 80. Os argumentos de cada lado eram defendidos com fervor, enquanto eu ficava pensando por que não fazer duas travessas de arroz separadas.

No fim dos anos 90 o debate anual seguia firme e forte, porém, entre uma uva arremessada nas costas do tio Alcínio e uma pimenta maldosamente mocozada no prato da tia Anísia, alguém resolveu elogiar a privatização da Vale do Rio Doce e da Telebrás, concluindo que isso acabaria com a roubalheira.

O debate foi acalorado, sem conclusão, mas intenso o suficiente para tirar o foco das pequenas pérolas negras que adornavam o arroz. Foi um marco. A primeira quebra no monopólio da discórdia.

Uma década mais tarde eu já tinha idade para participar das discussões, mas mantive minhas raízes de neutralidade. Mantinha minha passividade suíça em meio à guerra. Acreditava que a lenga-lenga da uva passa seria superada pela maçã que apareceu na maionese, mas alguém lembrou que, contrariando as expectativas do começo da década, o governo do PT vinha fazendo um bom trabalho.

Com a picanha na churrasqueira, teve gente que lembrou do mensalão e, com um copo de caipirinha na mão, chamou o Lula de cachaceiro. A Dilma foi chamada de feia, para desespero da minha prima, que fez um árduo discurso sobre o machismo do falso argumento.

Ano passado a coisa ficou mais tensa. Cheguei a acreditar que algumas questões fossem para as vias de fato. Entre promessas passadas, não cumpridas, e promessas para o futuro, impossíveis de serem cumpridas, as uvas passas até adoçaram um pouco, à contragosto de alguns, aquela ceia amarga.

E chegamos ao paradoxal 2019, que passou voando apesar de parecer ter 487 meses. A ceia de Natal passou a ser combinada pelo grupo de família no Whatsapp. Era tradição que a primeira exigência fosse as uvas passas no arroz, seguido do primeiro protesto, contra a presença das bolinhas negras da discórdia.

Neste ano a primeira pergunta sobre a ceia foi respondida com um “Quem votou no Bolsonaro que leve a carne”, seguido de “Não vou em ceia com quem defende presidiário”. O primeiro áudio veio depois que alguém perguntou “E cadê o Queiroz?”; mais vexatório que o gemidão do Whatsapp foi ouvir o tio Alcínio gritando “TÁ NO SEU CU, FILHO DA PUTA!”.

É a primeira vez em décadas que as uvas não são sequer mencionadas. Se por um lado as brigas familiares têm sido intensificadas nos últimos anos, fica o consolo de que com o tempo até a uva passa.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A parte boa

2019 foi ~está sendo~ um ano desgraçado de muitas formas.

Para não chorar enquanto escrevo, nem para deprimir ninguém - e o dia chuvoso está ótimo para uma melancolia - pensei em fazer um exercício pessoal de gratidão.

Sem esquecer as lutas, porque elas são diárias; sem esquecer as perdas, porque elas são reais; sem esquecer os crimes, as injustiças, os percalços, os retrocessos; sem esquecer os nossos e os mais oprimidos, quero lembrar algumas coisas boas que aconteceram comigo em 2019. 

Esse fim de semana participei de uma oficina na qual a facilitador fez uma rodada de apresentação na qual perguntava seu nome, sua motivação para fazer a oficina e algo pelo que você é grata. Quando pensei em "pelo que sou grata" hoje, a primeira coisa que me veio à mente foram os gatinhos que moram comigo. Oliver, com sua ternura infinita e suas visitas diárias, abriu nossos corações para receber em nossa casa, esse ano, duas gatinhas que precisavam de um novo lar... Rami-Sati e Nuala. Nem preciso dizer aqui o quanto os animais são generosos, incríveis e maravilhosos, e têm a capacidade de mudar nossas vidas, né? Mas digo mesmo assim porque eles merecem essa exaltação!

Além dos felinos, sou muito grata por meu corpo, que esse ano me levou a lugares as vezes necessários, as vezes belíssimos, e me levou até pessoas queridas. Através do corpo nos conectamos, abraçamos, tocamos, sentimos os cheiros, fazemos carinho e cócegas.
Meu corpo me permite correr, fazer exercícios, brincar com meu sobrinho e dançar, uma das coisas que mais amo! Esse ano não me lembro de ter ficado doente, fora um mal-estar ou outro, causados, na maioria das vezes, pela ingestão de lactose ou álcool (foi mal pelos vacilos, corpo!).

Sou grata pela meditação diária que venho praticando. Hábito muito valioso, que esse ano consegui incorporar em minha rotina, e me proporciona calma, concentração e auto-conhecimento.
E como ninguém vive sozinho, a melhor parte de 2019 são os meus companheiros de vida e de luta. Parceiro, familiares e amigos, sem os quais não suportaria todo peso de um ano tão difícil. "Ninguém solta a mão de ninguém!"

Sou grata por ter conseguido me qualificar no metrado esse ano, e pelo tanto de conhecimento que adquiri através do estudo, de leituras, conversas e sessões de orientação, de outras atividades acadêmicas e também de oficinas livres (como a que mencionei lá em cima), e coisas que vamos ouvindo aqui e ali, testando acolá e passando adiante, porque o maior sentido do conhecimento é esse, o de compartilhar.

Falando em compartilhar, que tal você, que leu tudo isso, não fazer o mesmo exercício e escrever nos comentários a sua parte boa de 2019? Estou curiosa para saber o que aconteceu de bom e pelo que você é grata/grato.