Talvez você não tenha percebido ou até
mesmo “sentido” (perdoem o meu sarcasmo), mas nós já não queremos sentir as
coisas como realmente o são. Quem sabe seja por medo ou comodidade, nós seres
humanos sempre interrompemos, reprimimos, ocultamos nossas percepções. O meu
propósito aqui não é generalizar as coisas (mais do que já estão), porém sinto
essa particularidade na maioria das pessoas, pois não estou a cá a falar de
superficialidades, mas de coisas que desde sempre vem acompanhando a espécie
humana. Já não nos permitimos algumas sensações, emoções e instintos.
Quem nunca notou que já não suportamos
o frio? E, ironicamente, o calor também. Caso o contrário os aquecedores e ar
condicionados nem existiriam. E o que falar da intolerância a escuridão? Basta
olhar o mapa-múndi noturno e verá que nas grandes cidades há mais regiões
iluminadas do que escuras. E opostamente as pessoas também não suportam a luz
do sol, pois se essa excede um pouco, num dia de calor, nós vamos correndo
passar protetor solar colocamos nossos óculos de sol, chapéus ou guarda-sol. E
quando o calor intenso da areia da praia nos faz rapidamente colocar o chinelo
para nos abstermos daquela sensação? Incrivelmente andar descalço nos parece
uma loucura e nos dá grande agonia o simples fato de pensar em fazê-lo,
imagine, não abrigar os pés no asfalto quente?! E logo nós, que nascemos
descalços e que naturalmente não teríamos sandálias para acolher nossos pés. E
o choro que aqui é sinônimo de fraqueza, descontrole e tristeza. A pessoa o
engole e sente a amargura de uma lágrima reprimida, mas não se permite
deságua-la, pois o outro não suporta saber a vulnerabilidade sem criar uma
malícia.
E o que dizer dos instintos? É tão feio sentir
prazer? Quantos orgasmos reprimidos, por vergonha do outro, do que ele irá
dizer?! O que irá pensar?! Quantas risadas disfarçadas literalmente ocultadas
pelas mãos desesperadas a cobrir aquela inconveniência! Aquela falta de
respeito!
Quantos sabores renegados pelo medo de
um quilo a mais de um quilo a menos. Quantos amores perdidos, esquecidos! Pelo
medo de se envolver, se apaixonar e padecer... Privamos-nos até da felicidade
que tanto lutamos para alcança-la através do dinheiro, dos produtos, das
viagens e blá blá...
E os odores, no entanto os odores
naturais que hoje fedem, que não admitimos e com uma perseverança divina tentamos
loucamente disfarça-los tomamos banhos todos os dias e nos utilizamos dos mais
variados perfumes, colônias, desodorantes...
Uma dor que seja é rapidamente interrompida
com a cartela de remédios, nos medicamos com aspirinas que não fomos nós que
fizemos e, pior ainda, às vezes não sabemos nem o que temos. E não é de hoje que acreditamos mais na
mentira, porque não aguentamos a verdade. Mas aí eu me pergunto: Um povo que
aguenta tanta coisa não consegue conviver com sua própria humanidade? Pois
aguentamos a escola, a faculdade, o trabalho, o ônibus lotado, aguentamos Nagasaki,
Hiroshima, aguentamos essas leis, aguentamos as prisões, aguentamos ser
escravos por nossa cor de pele, aguentamos o capitalismo, o socialismo, o
comunismo, o feudalismo, aguentamos campos de concentração, aguentamos os pesticidas,
aguentamos o salário mínimo e o desemprego, aguentamos tantas guerras e não
aguentamos a humanidade, não aguentamos algumas vontades e fazemos algumas
mentiras virarem absolutas verdades.
Nós seres humanos, membros dessa sociedade,
renegamos a Terra e a usamos como não tivéssemos saído dela e como se não
tivéssemos usando nós próprios para uma mentira inventada por nós, o dinheiro.
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