Cresci ouvindo as histórias do tio Alcínio. Um piadista nato. Seu repertório era diversificado, indo do trocadilho com o pavê até a loira burra, passando pela bichinha alterada e o negro que sempre era o trapalhão da história.
Tio Alcínio só deixava o bom humor de lado e adotava um tom sério quando falava de sua contribuição à incansável luta contra o comunismo. Dizia que comunismo é coisa de molecada alienada. Essa cambada, nas palavras dele, ou apanha da polícia quando é jovem, para aprender, ou apanha quando é velho, para criar vergonha.
Eu, que sequer me considerava jovem ainda, resolvi tirar uma lição de suas histórias. Ia pular uma etapa! Claro! Enquanto meus amigos se tornariam jovens alienados, eu seguiria os conselhos do tio Alcínio e não perderia tempo com essas bobagens. Assim, antes que todo mundo, eu seria um capitalista bem sucedido, tão invejado quanto tio Alcínio dizia ser. Educado, ele esperava as mulheres irem para a cozinha, lavar a louça do almoço de família, para confessar em voz baixa para nós que paquerava as menininhas do bairro, e que elas adoravam.
Cresci. Sempre atento aos sinais do comunismo, via meus amigos perderem tempo com bobagens. Festas, bebidas, muita farra e pouco trabalho. Características que, segundo tio Alcínio, eram típicas do comunismo. Gente que não gosta de trabalhar e quer viver às custas do Estado.
Eu não. Desde pequeno estava resolvido a não perder tempo com essas bobagens. Enfiava a cara nos livros e me preparava para arrumar um bom emprego o quanto antes. Enquanto meus amigos continuariam perdendo tempo, eu logo estaria empregado, ganhando dinheiro, galgando cargos, comprando carros, vencendo na vida até ser dono do meu próprio negócio e do meu próprio nariz, para então contratar meus pobres amigos, que não tiveram o tio Alcínio para ensinar o caminho certo.
Assim segui minha jornada. Tudo friamente calculado. Arrumei meu primeiro emprego. Com meu primeiro salário comprei uma camisa polo. Foi frustrante mal conseguir pagar uma camisa, mas era meu primeiro emprego. Se o Silvio Santos começou como camelô, sem dúvida meu primeiro passo já havia sido mais largo.
O tempo passou. A empresa cresceu. Eu senti que cresci com a empresa. Fui promovido inúmeras vezes, transferido quando requisitado para filiais que abríamos em outras cidades, estavamos em ascenção. O salário aumentou. Não na mesma proporção que o trabalho, mas com esse governo cobrando tantos impostos, quem é que consegue aumentar salários? Pelo menos minha reputação estava sempre em alta. Uma subida contínua.
Consegui comprar um apartamento. Na verdade não comprei, estou comprando, mas logo termino as prestações. Minha própria empresa não saiu do papel, mas também, com esse governo.
Tio Alcínio já morreu. Até o fim da vida se tornou cada vez mais piadista. Não que tivesse piadas novas, mas repetia cada vez mais as antigas. Outro dia, eu prestes a me aposentar, em um almoço de domingo, comecei a pensar no tio Alcínio. Um piadista.
Quando foi servida a famigerada sobremesa tudo ficou tão claro! Tio Alcínio era um piadista. Sempre. Não ficava sério quando falava da caça aos comunistas. Apenas invertia os papéis e fingia seriedade para confundir minha cabeça.
"Acreditar em comunismo é coisa de molecada alienada" e eu, moleque alienado, não percebi e caí feito um patinho. Na tentativa de pular uma etapa e me dar bem acreditei que para ser bem sucedido, igual ao tio Alcínio, tinha que ser esforçado e trabalhar. E trabalhei. Trabalhei com afinco, a vida inteira. Trabalhei porque o trabalho liberta. Trabalhei porque não era um vagabundo comunista. Trabalhei porque isso era suficiente para crescer na vida.
O tio Alcínio. Um piadista.