“Fernanda, pelo contrário,
procurou-a unicamente nos trajetos do seu itinerário cotidiano, sem saber que a
procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso
que dá tanto trabalho encontrá-las” (Cem Anos de Solidão – Gabriel García
Márquez)
A primeira vez que li o romance
do García Márquez, tinha por volta de 19 anos, aproximadamente 1 ano e meio
após a morte do meu pai. Fiquei apaixonada, tanto pela complexidade da
história, que de tão complexa se torna simples, quanto pelo cíclico e
interminável resgate de memórias, vivências e traumas familiares, e naquele
momento estas questões eram muito importantes pra mim.
Reli o livro ano passado e ao
mesmo tempo fui relida. Destacaria muitos trechos que trouxeram reflexões, mas
sem dúvida esse com que inicio o texto, foi o mais profundo de todos. E o mais
surpreendente é que esse excerto continua a se reatualizar e ressignificar
muitas histórias e contextos na minha vida.
Quando estava relendo o livro,
vivia o retorno de um relacionamento que desde o início esteve fadado ao
fracasso, mas que estava ali, novamente impondo-se no meu cotidiano e ao qual
ainda era apegada e tinha grande dificuldade em “deixar ir”. Era um recomeço,
era como “encontrar algo perdido”. Ao mesmo tempo, sentia García Márquez conversando
comigo (para além da coincidência entre meu nome e o da personagem), era eu tentando reencontrar a mim
mesma, em meio a um turbilhão de sentimentos que se colocavam naquele momento em minha vida pessoal e profissional.
Talvez já esteja posto, ou ainda
precisarei de muito tempo pra deixar isso minimamente mais claro, que os textos
que coloco aqui trazem reflexões de mim mesma. “Claro”, qualquer um diria, “escrevemos
para isso”. Mas não é somente isso, as reflexões sobre mim mesma estão muito
relacionadas ao que sou, e a como me coloco e expresso no mundo. Uma de minhas maiores
preocupações na vida é ter sentido, fazer sentido, e pra isso é fundamental
conhecer a mim mesma.
Dito isto, voltando ao livro, e
mais particularmente ao trecho que destaquei, penso, neste momento em que
decidi fazer uma reflexão sobre ele pra postagem de hoje, que talvez as nossas
concepções sobre os trajetos de nossos "itinerários cotidianos", nunca mais
voltem a ser as mesmas. Seria ótimo, se assim fosse, por um passo adiante, o
avanço de um degrau, pelo rompimento de algumas certezas às quais éramos
apegados, etc.; mas como tem se dado, diante de uma crise mundial de saúde
pública, forçosamente estamos tendo que reaprender e criar dia a dia um novo
cotidiano que em nada se assemelha ao que tínhamos antes, quando tudo era
previsível e racionalizado.
“E se...?” é o que mais tenho me
perguntado nestes dias, sem conseguir definir planos e metas que ultrapassem
dois, três dias, no máximo uma semana. Perdemos todos os prazos, adiamos
compromissos, fechamos nossas casas e não sabemos como vai ser amanhã. É
sensato, manter a mente tranquila, comprometidos com nossos afazeres, sejam
eles quais forem, mas não há como negar que a insegurança quanto ao amanhã, como
a chegada dos feriados esperados para nos reunirmos com aqueles que nos são
caros, os aniversários dos amigos, os abraços apertados, as longas conversas na
mesa do bar, os beijos apaixonados e o vai e vem cotidiano da vida não nos
deixe tristes e assustados. “E se...?”.
Tenho me voltado muito pra mim,
respeitando meus limites, os meus “quereres”, os meus pequenos talentos,
capacidades para coisas que antes não sabia possuir, minha preocupação com
aqueles que amo, com meu trabalho, enfim... tenho aprendido muito sobre mim
mesma e isso, por si só, é grandioso. Mas como é difícil querer me encontrar
fora dos meus “itinerários cotidianos”, em um lugar em que tudo é dúvida e
incerteza. Talvez, se García Márquez fosse vivo hoje e estivesse escrevendo seu
romance, Cem Anos de Solidão tivesse outro sentido, com muitas “coisas perdidas”
e poucos “hábitos rotineiros”.
Muito bonito e coerente com o que temos passado nos dias atuais.
ResponderExcluirGostaria demais de ler a versão atual desta célebre obra (gostaria de ler a primeira versão também - ah, que vergonha admitir que não li)
Obrigada, Carol.
ExcluirEsse livro é sempre inspirador!