sexta-feira, 24 de abril de 2020

“E se...?”

“Fernanda, pelo contrário, procurou-a unicamente nos trajetos do seu itinerário cotidiano, sem saber que a procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las” (Cem Anos de Solidão – Gabriel García Márquez)

A primeira vez que li o romance do García Márquez, tinha por volta de 19 anos, aproximadamente 1 ano e meio após a morte do meu pai. Fiquei apaixonada, tanto pela complexidade da história, que de tão complexa se torna simples, quanto pelo cíclico e interminável resgate de memórias, vivências e traumas familiares, e naquele momento estas questões eram muito importantes pra mim.

Reli o livro ano passado e ao mesmo tempo fui relida. Destacaria muitos trechos que trouxeram reflexões, mas sem dúvida esse com que inicio o texto, foi o mais profundo de todos. E o mais surpreendente é que esse excerto continua a se reatualizar e ressignificar muitas histórias e contextos na minha vida.

Quando estava relendo o livro, vivia o retorno de um relacionamento que desde o início esteve fadado ao fracasso, mas que estava ali, novamente impondo-se no meu cotidiano e ao qual ainda era apegada e tinha grande dificuldade em “deixar ir”. Era um recomeço, era como “encontrar algo perdido”. Ao mesmo tempo, sentia García Márquez conversando comigo (para além da coincidência entre meu nome e o da personagem), era eu tentando reencontrar a mim mesma, em meio a um turbilhão de sentimentos que se colocavam naquele momento em minha vida pessoal e profissional.

Talvez já esteja posto, ou ainda precisarei de muito tempo pra deixar isso minimamente mais claro, que os textos que coloco aqui trazem reflexões de mim mesma. “Claro”, qualquer um diria, “escrevemos para isso”. Mas não é somente isso, as reflexões sobre mim mesma estão muito relacionadas ao que sou, e a como me coloco e expresso no mundo. Uma de minhas maiores preocupações na vida é ter sentido, fazer sentido, e pra isso é fundamental conhecer a mim mesma.

Dito isto, voltando ao livro, e mais particularmente ao trecho que destaquei, penso, neste momento em que decidi fazer uma reflexão sobre ele pra postagem de hoje, que talvez as nossas concepções sobre os trajetos de nossos "itinerários cotidianos", nunca mais voltem a ser as mesmas. Seria ótimo, se assim fosse, por um passo adiante, o avanço de um degrau, pelo rompimento de algumas certezas às quais éramos apegados, etc.; mas como tem se dado, diante de uma crise mundial de saúde pública, forçosamente estamos tendo que reaprender e criar dia a dia um novo cotidiano que em nada se assemelha ao que tínhamos antes, quando tudo era previsível e racionalizado.

“E se...?” é o que mais tenho me perguntado nestes dias, sem conseguir definir planos e metas que ultrapassem dois, três dias, no máximo uma semana. Perdemos todos os prazos, adiamos compromissos, fechamos nossas casas e não sabemos como vai ser amanhã. É sensato, manter a mente tranquila, comprometidos com nossos afazeres, sejam eles quais forem, mas não há como negar que a insegurança quanto ao amanhã, como a chegada dos feriados esperados para nos reunirmos com aqueles que nos são caros, os aniversários dos amigos, os abraços apertados, as longas conversas na mesa do bar, os beijos apaixonados e o vai e vem cotidiano da vida não nos deixe tristes e assustados. “E se...?”.

Tenho me voltado muito pra mim, respeitando meus limites, os meus “quereres”, os meus pequenos talentos, capacidades para coisas que antes não sabia possuir, minha preocupação com aqueles que amo, com meu trabalho, enfim... tenho aprendido muito sobre mim mesma e isso, por si só, é grandioso. Mas como é difícil querer me encontrar fora dos meus “itinerários cotidianos”, em um lugar em que tudo é dúvida e incerteza. Talvez, se García Márquez fosse vivo hoje e estivesse escrevendo seu romance, Cem Anos de Solidão tivesse outro sentido,  com muitas “coisas perdidas” e poucos “hábitos rotineiros”.

2 comentários:

  1. Muito bonito e coerente com o que temos passado nos dias atuais.
    Gostaria demais de ler a versão atual desta célebre obra (gostaria de ler a primeira versão também - ah, que vergonha admitir que não li)

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