Gizamundo foi publicado em 2013 pela Editora Peirópolis, numa parceira com o Projeto Quixote. A partir de uma entrevista, os tres autores (um poeta, um grafiteiro e eu) fomos traçando a forma de este livro, que foi concebido como um mapa atemporal de acontecimentos e conta com uma parte em prosa (minha parte) e outra em poesia. O processo criativo, contou com vários encontros, muita liberdade criativa e até uma performance com público para testar os personagens.
I
Giza
sai de sua casa às pressas. Pega seu cachecol-raposa e os livros da escola. Corre
até o ponto e chega junto com a lotação, sentido centro. Passa o bilhete e gira
a catraca. Nos fones de ouvido, entre bandas estrangeiras e sertanejo universitário,
ela segue alguma letra, arrisca e canta. Quem diria que seu apego por sapatos a
levaria até uma loja do Brás? Depois de carregar caixas e limpar o chão, vai ao
banheiro, põe um pouco de rímel e coloca o avental de vendedora. Tem vezes que é
bom e vezes que não a tratam bem. Mas ela gosta é de ver todos os modelos de calçado,
sentir as texturas, perceber os saltos, olhar os desenhos. “Coisa de menina, viu”,
falou o seu cachecol-raposa, e Giza prendendo com a mão o focinho dela: “Foxy, vão
te escutar”. Voltava só o pó para casa, dormindo até o ponto final. A rua estava
silenciosa, pelo horário, a novela estava para acabar. Na frente dela, só sua sombra
caminhava. E Giza lhe sorriu.
II
No
dia em que Giza
se demitiu da lojinha de sapatos, uma nova alegria colocou-se entre seus lábios.
Havia trabalhado aos finais de semana e de tarde. Tinha acreditado nos cursos. Inacreditável
era não ter abandonado a escola nem as festas dos colegas de sala. Quando pela primeira
vez olhou pelas imensas janelas da empresa e viu a cidade aos seus pés, não sentiu
medo. “Eu mereço isto.” Era sua vontade, importante somente para ela, em silêncio,
solitariamente, seu novo despertar. Era o começo do seu futuro, e Giza o segurava
com consciência, como se soubesse que cada sonho seu poderia se tornar real.
III
Nuvens
apareceram sobre os prédios e fizeram sombra nos vidros foscos, escurecendo a cidade.
Pingou nas janelas. Uma vez, duas, várias vezes. Um relâmpago silencioso iluminou
o rosto nervosíssimo, fechado de Giza. Ninguém ao seu redor preocupava-se com a
chuva, e ouviu até uma colega dizer “ainda bem que é agora, e não no final de semana!”.
Enviou uma mensagem para a mãe e não recebeu resposta. Todo verão era igual: chuva
caindo, rio transbordando, enchente subindo, casa alagando. Dessa trágica poesia
já conhecia cada verso. “Hoje teremos uma péssima noite, amiga”, lhe disse Foxy,
enquanto Giza trocava sapatos por chinelos antes de sair do prédio onde trabalhava.
IV
Depois
de um dia inteirinho no trampo, os
pés doem, a cabeça dói. O mundo ao redor a cumprimenta entre balas, salgadinhos
e tevê. Faz tempo que Giza não conversa
com suas amigas. Perdeu o gosto ou não sabe mais do que falar? As meninas lhe fecham
o passo perto da esquina (um funk cru e nu sai de um celular). “Ei, Giza, não gosta
mais de mim não?”, pergunta-lhe Carol, mexendo a boca no ritmo do chiclete sabor
tutti-frutti. Mas Giza não teme mais seu
passado, não treme mais diante da dor. “Minha mãe tá doente, hoje cuido dos meus
irmãos”, e se solta da mão quente, úmida da Carol. A sinceridade lhe abre o caminho.
Será que tem remédio para a solidão?
V
Chegando
em casa (e sabendo que o bairro não tinha
alagado desta vez), a sua práxis é tirar os sapatos e colocá-los no alto, a salvo
da enchente. Sua mãe, novamente, não teria feito comida nem passado as roupas. Seus
irmãos não queriam tomar banho. Assim era sua rotina após o expediente, ainda
que lhe parecesse que não a aguentaria e nem que a merecesse. “Mãe, assim não consigo,
entende?”, gritou sentada na mesa comendo um miojo, “Ou eu faço o meu trabalho direito ou eles me demitem”. O
silêncio só foi quebrado pelo barulho da porta do quarto sendo fechada com raiva.
Sozinha na cama, Giza se promete fazer todo o possível para sair daquele lugar.
Queria ter seu armarinho só para sapatos. Queria colecionar cadarços coloridos,
brilhantes, diferentes. Queria, enfim, uma família feliz. Queria, por que não, um
amor.
VI
Entre
as preocupações de casa e as ocupações da empresa, à Giza pouco restava de tempo.
“Seria isso a vida - dividida em dois - sempre uma encrenca?”, pensou. Era a casa,
as coisas da escola e do curso, os irmãos, a maldita louça, os sapatos pendurados
(se a enchente chegasse...). No escritório era o chefe, a pressão dos compromissos,
as reuniões, tudo direitinho e arrumado. Estaria satisfeita? Ouviu dizer que poderia
ser efetivada e não escondeu sua alegria da família. “Oh, gente, por vocês e por
mim, que eu não vou largar o meu trabalho.” Daí para frente, sua mãe não telefonaria
mais para ela durante o serviço e teria que fazer almoço para seus irmãos. Era tudo
ou nada. E seria tudo. Tudo. TUDO.
VII
No
inverno e no verão, a Foxy vinha pendurada no pescoço de Giza. Ela parecia uma rainha
com aquele cachecol-bicho dando ideia
para o bem ou para o mal. Usava-o no busão,
usava-o no metrô. Levava-o na empresa e tudo mundo por lá a elogiava. Quando
antes se viu um cachecol que fala? Ainda menos um que sabe o que Giza pensa e o
que ela deve fazer? Foxy era só conflito, confronto, contradição. “Me larga de uma
vez”, gritou Giza na frente de dois estagiários e um supervisor, cansada de toda
aquela confusão. Aquela noite Giza, por fim, pendurou Foxy num cabide no fundo escuro
de seu armário.
VIII
Todo
dia, cada mês, durante o ano inteiro aquele emprego poderia parecer muito. Papelada,
prazos, prezados colegas e o cafezinho. Era um bom salário, certo? Seria aquilo
uma futura profissão? “Não, não é muito, isto é meu sonho”, disse Giza para a imagem
dela mesma no espelho do banheiro enquanto acertava a maquiagem. Giza viu seu sonho
crescer infinito. Se ela quisesse, algum dia, chegaria ser gerente de uma loja de
sapatos, ou dona de uma franquia, e por que não designer de seus próprios
modelos? “Será que é assim que fala disainer?” Era isso, correr atrás de
uma faculdade. Acreditar mais nos seus desenhos e virar artista. Ser uma boa mãe,
isso era indispensável. Giza viajava naquilo quando derrubou o café na frente da
supervisora, que, apesar da bagunça, não a olhou feio.
IX
A
vida, na simplicidade, era mais bela. Acordar cedíssimo para ficar gatinha. Comia sucrilhos olhando para seus irmãos
que ainda dormiam. Que inveja boa sentia daquela ingenuidade toda. Sua mãe tinha
seu jeito, nem adiantava querer mudá-la. Na lotação Giza cumprimentava o motorista,
dava bom dia à cobradora, era com certeza a única que sorria. O centro da
cidade era mais limpinho, cheio de árvores, tudo bacana. Uma súbita alegria surgia
no elevador quando as pessoas a cumprimentavam, era um respeito que antes desconhecia.
Daí um dia Marquinhos, outro aprendiz, veio falar com ela, ficou nervosa. “Vamos
fazer alguma coisa depois das 18h?” Então ela fez aquele gesto, depois conversamos,
e se despediu. Ainda olhou para trás e descobriu, surpresa ou susto, que Marquinhos
a olhava, “quem diria, Giza?”, apaixonado.
“Acho
que cresci muito cedo.” Era bom ficar sem maquiagem, achar seu verdadeiro rosto
debaixo das cores. Seu sorriso era mais esticado, quase perfeito. Sua mãe a beijou
na testa, deu a benção, e pouco na vida a fez tão feliz. A primeira vez que Marquinhos
veio pegá-la em casa foi o maior auê entre os irmãos. Era uma sorte que ele
também torcesse pelo seu time, se não seu pai jamais permitiria que ele
entrasse em casa. Lembrou-se
daquele homem como quem se lembra de um sonho, esquecendo-o. Ela brilhava naquele
momento e nada a deixaria triste. Esticando os braços, chamou seus irmãos - parecia
ensaio de teatro. Quando eles colaram nas mãos de Giza, marchando, levantando os
joelhos, acompanhando a irmã até a mão do Marquinhos, que de pé na porta nem acreditava
no que estava vendo.