terça-feira, 6 de agosto de 2024

Ônibus 4010-32 (cont.)

Este texto tem uma primeira e uma segunda parada; você pode encontrá-la neste mesmo blog no dias 6/6 e 7. E, também, pode ficar à vontade para pegar o ônibus 4010-32 nesta parada.




Capítulo 1 


Queria dormir e acordar bem, disposta, tomar café da manhã sem pressa, ter tempo para fazer um suco de laranja, ir à padaria e comprar pão, voltar e, então, ter uma refeição decente — cena de novela, de comercial da década de 90. Queria fazer a saudação ao sol, mesmo que o céu esteja cinza.


Odeio acordar já na hora de sair para trabalhar, levantar pensando em quanto preciso correr para não perder o ônibus, fazer tudo às pressas: banho rápido, amarrar o cabelo, comer qualquer coisa, não dá tempo de pôr a lente de contato, roupa sem combinar, é escovar os dentes e sair sem um batom sequer, com os brincos sacolejando na bolsa, para quando o tempo resolver respirar. Respirar. Corre! O ônibus virou na esquina, corre, o ponto está a quinhentos metros, corre, e tinha que ser uma subida.


Perde o ônibus, perde a correria toda, respira no ponto de ônibus em pé por mais trinta minutos, olha o celular, avisa a chefia, não avisa, reza para ela também se atrasar.


Começa a adiantar o trabalho pelo telefone, mas ainda não é a hora, ainda não devia começar. Começa a rever aquele início de dia: o que precisa mudar? Acordar mais cedo, como? Dormir mais cedo, acordar às seis, dormir às dez, não mexer no celular quando já estiver deitada, jantar coisas leves, parar de trabalhar através de telepatia — não é funcional. Ficar na meia-luz ou no breu perfeito. 


Parar de sonhar!


E não estou falando de sonhos de planos e desejos; estou falando da cabeça que começa a interagir com as demandas do dia antes mesmo de abrir os olhos. Eu sonho com a discussão no trabalho sobre o cachorro novo que o estagiário trouxe e que mija na cadeira do chefe, que chora para a colega do RH. O estagiário é um rapaz que conheci no fim de semana, em uma balada; a colega do RH é minha psicóloga e o chefe, meu irmão mais novo. No meu trabalho, não há estagiário! Se alguém levasse um cachorro, eu só iria rir. Que discussão seria possível sobre um cachorro em um escritório no décimo quarto andar?


Já sonhei que estava em um filme também. Era atriz, mas as bombas que deveriam ser falsas eram verdadeiras. Eu e o elenco do filme, sobre a Segunda Guerra Mundial, que incluía minha irmã (essa sim atriz), uma amiga dos tempos de faculdade, dois ex-namorados (que eram a mesma pessoa, mas apareciam com rostos diferentes a cada hora), e duas colegas de trabalho, começamos a investigar quem trocou os artefatos.


sábado, 6 de julho de 2024

Ônibus 4010-32 (cont.)

Este texto tem uma primeira parte; você pode encontrá-la neste mesmo blog no dia 6/6. Mas também pode ficar à vontade para pegar o ônibus 4010-32 nesta parada.


Primeira parada

Desenhou com a ponta dos dedos a silhueta na capa do livro, um ato de amor, sabor em iniciar um novo caso; chegava mesmo a passar a ponta da língua nos lábios, não premeditado, os dedos descendo pela lombada do objeto, agora segurando firme para que a outra mão dedilhe o outro lado das folhas livres.

Alana, que não gostava de escolhas: Alana, que todos os dias pegava o mesmo ônibus, que todos os dias sentava no mesmo lugar, que todos os dias fazia a mesma refeição — café preto, sem açúcar, com pão amanhecido de ontem — que todos os dias lia no 4010-32. Essa Alana tinha prazer em escolher histórias.

Por onde escolher livros? Pela capa? Pela quantidade de folhas? Uma indicação… uma crítica…? Uma escritora da qual já se gosta… um autor já conhecido?

O último livro tinha sido um desafio para Alana. Detestava o jornalista que o escrevera, achava-o de uma dramaticidade burguesa medíocre, mas foi traída por sua curiosidade quando um colega da faculdade colocou a obra à sua frente: "Este, sem dúvida, é o livro da minha vida". O que poderia haver depois disso? Qual preconceito ao jornalista a transportaria para longe da brochura entregue? Entregue, foi como ela sentiu o colega, completamente entregue, desnudo naquelas palavras/letras do miserável.

Sua reação foi perdoar o autor e abraçar sua obra, tentar desvendar o livro pela capa e depois mergulhar história adentro.

  .... continua

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Ônibus 4010-32

Ponto de Partida

Alana subiu no ônibus com o pé direito. Gostava de seguir preceitos de sorte, como se fosse um joguete, algo que não necessariamente fazia bem. Mas quem poderia afirmar com exatidão?

Era comum ela ser a terceira ou quarta passageira a entrar no ônibus 4010. Também era comum conseguir sentar no quinto banco, do lado direito, na janela. Infelizmente, era comum que, no ponto de saída do 4010, o ônibus já ficasse cheio e, em poucas paradas, lotado. O sacolejar do ônibus fazia com que o sono interrompido às 5h da manhã quisesse voltar ao corpo, contrastando com o brilho das telas de celulares, enviando os primeiros "bom dia" e dando início às conversas diárias.

Para Alana, o momento era de leitura. Embalava viagens nas horas de deslocamento até o trabalho e era tão precioso que a moça caminhava tranquilamente a distância de cinco pontos  da parada mais próxima de sua casa, na necessidade de ler pela manhã e conseguir o almejado lugar sentado, que todos os passageiros sonham. Por algum tempo, ela leu de pé; as inviabilidades eram diversas, como segurar o livro e segurar-se, ler com os braços dos outros cortando o campo de visão e, principalmente, a agressividade ao passarem por ela, em um "com licença" mal-educado, como se ele estivesse comendo carne em um restaurante vegetariano.

Começou caminhando três pontos para trás no trajeto do ônibus, o que lhe possibilitou sentar em algum assento do corredor. Três pontos não eram assim tão absurdos; o dia já estava claro no verão, na primavera e em parte do outono, mas de todo modo o movimento no bairro já era seguro, o que mais importava. O problema é que nem sempre conseguia o seu desejado lugar sentada e tinha que disputar o corpo a corpo quando o ônibus chegava na parada. Mentalizava profundamente que o motorista a escolhesse e parasse com a porta aberta diante dela, uma honra. E assim foi por um tempo, até que um dia a insustentabilidade da empreitada chegou. Foi quando Alana, lendo um capítulo efusivo, daqueles que se precisa tomar fôlego, percebeu seus ombros pesados com o olhar de um homem, lendo suas linhas particulares. Deste dia em diante, estava decidida a sempre pegar o ônibus no seu ponto de partida e garantir um local mais discreto para suas leituras.

... continua


segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Ano novo, vida nova?

Vai ano, vem ano… a gente acha que amadureceu, mas quando se dá conta continua cometendo as mesmas burradas. 


Por que será que caímos em tentação tão facilmente e quebramos regras que nós mesmo criamos para nos proteger, baseados em nossas experiências traumáticas passadas? 


A regra era clara: “Não dê moral pra gay que ainda não saiu totalmente do armário!”

E qual é a primeira coisa que eu fiz na virada? beijei um gay que não saiu totalmente do armário...


- “Qualé, ano novo! vida nova! vai ser diferente!” pensei, ignorando todos os sinais claros que já havia aprendido a definir no passado, mas que por algum motivo foram totalmente ignorados. 10 segundos! Apenas 10 segundos após a virada foi o tempo que eu demorei pra cometer o primeiro erro de 2024. Eu queria entender o que se passou pela minha cabeça. Eu sabia que estava fazendo besteira e mesmo assim cliquei em “estou ciente e desejo continuar”.


Por quê? Eu não sei, minha língua estava ocupada demais pra prestar atenção. Que erro! E o desfecho? nem merece ser comentado, vou poupar os leitores por enquanto.


Mas é incrível como todas as experiências passadas não me ensinaram nada. Será que a gente realmente acredita que “agora vai ser diferente”? ou só sonhamos com o momento em que seremos a exceção à regra?


É até simbólico ter cometido um erro do passado no ano novo. Costumamos encarar essa data como um momento de renovação, como uma nova porta se abrindo, um caminho para novas aventuras, mas quase nunca paramos para refletir sobre o que já passou:


Como foram formadas as paredes que sustentam essa nova porta?

De onde partiu esse caminho?


Olhar para trás, pras nossas experiências, validar nossas regras e vivências é essencial para evoluir. 


“Uma POC que não conhece sua História está fadada a repeti-la.” e dói pra caramba!  

(adaptação da frase de Edmund Burke)