Vimos estrelas
E ondas; vimos areia também.
E, apesar de muitas crises e
desastres
Inesperados,
Muitas vezes sentimos tédio,
Exatamente como aqui.
Charles Baudelaire.
Parece até uma provocação barata
escrever um texto sobre viagem no meio de uma pandemia que nos convoca a manter
isolamento social. Mas fazia tempo que estava com esse livro empacado nas
minhas leituras e gostaria de compartilhar com vocês as reflexões do filósofo suíço
Alain de Botton sobre viagem.
Na busca obsessiva pela
felicidade, provavelmente viajar está entre as atividades que mais se destaca
como forte candidata a satisfazer esses anseios. No livro A arte de viajar (2002), De Botton propõe uma investigação sobre como e por que deveríamos viajar. Quero trazer aqui os principais pontos
do livro que está dividido em nove capítulos, nos quais o autor traz suas
próprias experiências pessoais de viagem a partir do olhar e reflexão de
artistas e pensadores seletos.
- A expectativa
J. K. Huysmans, em seu livro Às avessas (1884), apresenta um herói
decadente que acreditava que “a imaginação era capaz de proporcionar um
substituto mais do que adequado à realidade vulgar da experiência concreta”. É
verdade que você pode ter muitos aborrecimentos durante uma viagem como ficar
doente ou não se livrar da preocupação com uma possível demissão quando
retornar, mas só porque a expectativa de que tudo se transformaria magicamente não se concretizou não significa que não valha à pena.
Assim, é preciso lidar com as
inevitáveis frustrações que podem surgir durante ou após uma viagem, pois freqüentemente
a experiência é diferente do que imaginamos.
- Os destinos de viagem
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cena do filme "O céu de Suely" |
Talvez o sentimento de
insatisfação e inquietação não atinja a todos do mesmo jeito, mas provavelmente
em algum momento você já pensou que sua vida seria diferente se sumisse, fosse
para outro lugar longe. “A vida é um hospital em que cada paciente está
obcecado com a ideia de mudar de cama”, teria dito o poeta Charles Baudelaire.
A “poesia da partida” evocada por
Baudelaire é uma sentimento que compartilho. Uma inexplicável sensação de
conforto e alegria ao observar terminais rodoviários, aeroportos, cais. O ambiente doméstico que por vezes pode aprisionar
uma face do nosso “eu” se liberta com a ideia de movimento evocada pela viagem.
Viajar oferece a oportunidade de conhecer “eus” adormecidos, escapar de hábitos
mentais cristalizados e a ter novas idéias.
- Exótico
O interesse pelo exótico não deveria ser lido apenas como uma curiosidade em si mesma. Podemos
nos encantar com elementos estrangeiros porque são aspectos que valorizamos e
gostaríamos que nossa terra natal se parecesse. Como observou Flaubert, na vida
adulta temos a liberdade de recriar na imaginação nossa identidade de acordo
com nossa essência.
- Curiosidade
Ativar a curiosidade para além do
que guias turísticos e outros turistas apontam como local de interesse para se
conhecer pode trazer enriquecimento para nossas vidas. Isso porque ao visitar
um local e investigar as marcas do passado nele traz compreensão, segundo
Nietzsche, um olhar para além da própria existência individual e transitória
ganhando um senso de continuidade e vinculação com a própria sociedade.
Ter curiosidade não apenas em
territórios estrangeiros, mas inclusive na própria cidade. Refletir sobre como
nossa identidade também é fruto de quem veio antes de nós.
- Campo e cidade
Se no início foi motivo de chacota, o mesmo não se pode
dizer com o passar do tempo sobre a poesia de William Wordsworth. O poeta
inglês exaltava a natureza e acreditava que ela era corretivo indispensável
para os danos psicológicos infligidos pela vida urbana.
Estar o tempo todo imerso no mundo dos humanos nos aliena de
fazer parte de um todo, nos faz esquecer que dividimos o planeta com outros
seres vivos. Testemunhar a vida selvagem nos estimula a olhar pra vida por meio
de outra perspectiva, em respeito aos outros e também a nós mesmos.
- Sublime
O filósofo Edmund Burke discute
como o sublime tem relação com um sentimento de fraqueza. Assim, segundo o
autor, o sublime seria um encontro prazeroso e, até inebriante, da fraqueza
humana diante da força, da idade e das dimensões do Universo.
Paisagens que evocam o sublime,
portanto, não seriam apenas lugares bonitos. Mas aqueles que através de sua
grandeza e força nos lembram que a vida humana não é medida de todas as coisas.
É um sentimento muito poderoso porque traz conexão com uma realidade maior,
que pode ser entendida em termos religiosos ou não, que nos possibilita ver
além de nós mesmos. Talvez ao ser confrontado com a própria fragilidade seja
curiosamente uma fonte de energia para lidar com os obstáculos mundanos,
afinal, nada pode ser tão importante diante de tamanha força que existe antes
de nascermos e continuará existindo depois de nossa extinção.
- Arte que abre os olhos
Uma paisagem pode se tornar mais atraente depois de a
conhecermos pelo olhar de algum artista. De Botton compartilha sua própria
experiência de visitar Proença mediado pela obra de Van Gogh. Ele foi guiado
pelas cores, pela vegetação, pelos locais registrados pelo pintor.
- Eternizar a beleza
Ao nos deparamos com a beleza
temos o ímpeto de tomarmos posse dela. Podemos manifestar esse desejo através
da compra de souvenirs, deixar uma marca física, fotografar... Tive o
desprazer de presenciar uma manifestação desse desejo no Festival das
Cerejeiras, em São Paulo (SP). Durante poucos dias, as cerejeiras florescem proporcionando
um lindo espetáculo de beleza para a cidade, mas o desejo de posse fez com que
o público arrancasse galhos numa tentativa de levar para casa o
que viu. Acontece que a delicadeza das flores fazia com que elas se despedaçassem
ainda no parque: nem a “beleza” foi possuída pelas pessoas, nem pôde continuar existindo, já que foi parcialmente destruída.
John Ruskin acreditava que somente
nos apossamos da beleza quando nos tornamos consciente dos fatores
(psicológicos e visuais) que nos fazem admirar algo. Ele defendia que atingimos
essa consciência através da arte, escrita ou desenho. O desenho revelaria nossa
cegueira anterior ante a verdadeira aparência das coisas. Aprender a ver e a transmitir
nossas impressões da beleza seria uma maneira precisa na análise do que vimos e
sentimos. De modo que ter essa clareza no permitiria possuir a beleza,
eternizando-a na nossa memória.
- Hábito
Devido a nossa enorme capacidade
de adaptação, nos habituamos a olhar para nosso redor sem atenção a beleza, sentimento
de assombro ou gratidão. O hábito é o oposto de um estado de espírito de
viajante. Ele dificulta cultivar humildade, pois o que é interessante ou não já
parece pré- definido.
Viagem ao redor do meu quarto escrito por Xavier de Maistre (1790)
é um chamado a acender esse estado de espírito de viajante. Ele brinca com os limites
do próprio quarto para mostrar como podemos descobrir novas coisas se olharmos
atentamente mesmo para paisagens familiares. Não precisamos necessariamente
viajar para longe para realizar boas descobertas.