segunda-feira, 22 de novembro de 2021
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sábado, 20 de novembro de 2021
Máscaras, vacinas e ansiedade
Depois de mais de um ano e meio, cobrir o nariz e a boca é quase tão corriqueiro quanto calçar um par de sapatos. Mesmo com o controle da Covid-19, sair na rua sem máscara é quase como sair descalço. Causa estranhamento, sensação de fazer algo errado, e ao chegar em casa vem o alívio de descobrir o rosto e sentir o ar fresco inundando os pulmões ao mesmo tempo que refresca o rosto, úmido pela respiração represada.
Em um país que chegou a registrar mais de quatro mil mortes por dia, é um alívio reduzir a média diária para pouco mais de duzentas. Por outro lado, a ansiedade acumulada no período de quarentena faz aflição disparar diante do retorno à vida, que nunca foi exatamente normal.
Uma coisa é passar rápido pelo mercado, pegar o mínimo necessário e correr de volta para casa, outra, bem diferente, é voltar a encarar uma reunião presencial, cara-a-cara com pessoas de máscara abaixo do nariz, ou frouxas o suficiente para enxergarmos a respiração fluindo, quase livremente, pelos vãos laterais.
Só de imaginar os potenciais vírus coronados voando livres pelo ambiente, a respiração acelera, a máscara umedece, os óculos embaçam e a tranquilidade de ter uma média de mortes em torno de duzentas se transforma na realidade de mais de duzentas pessoas mortas em um único dia, por uma única causa.
Como o inconsciente vaga livremente pelos riscos de contaminação, resta um refúgio racional. O Átila Iamarino confirmou que a situação está melhor e que as vacinas são eficientes. Ele até cortou o cabelo. Se o Átila falou, está falado e ponto final. Mas ele também disse que nenhuma vacina é 100% eficaz e que, apesar de controlada, a pandemia ainda exige atenção. Lá se vai a racionalidade.
Se por um lado a pandemia é uma tragédia, potencializada quando somada à tragédia política brasileira, por outro é admirável que em menos de um ano o mundo já tinha vacinas eficazes contra o vírus. Curioso mesmo é que toda essa eficiência da medicina ainda não tenha desenvolvido um remedinho para a ansiedade. É vida que segue – de máscara.
quinta-feira, 18 de novembro de 2021
PARAFUSOS
terça-feira, 16 de novembro de 2021
Máquina de escrever
Foto: Tadeu Renato |
Há aqueles
dias em que as mãos querem transformar experiências em palavras grafadas em
tela e papel, mas é apenas um impulso muscular. As palavras, elas mesmas, não
desejam surgir à toa, preferem a permanência do silêncio. É compreensível esse
distanciamento de ruídos e manchas, a música interna escolhe se dar em afetos
tácitos com um cachorro vivo do que escrever qualquer coisa que seja. Há também
os instantes em que as palavras de dentro apenas querem visita e escutar
história alheia.
Estavam
conversando muito alto, não se viam desde antes do natal e o grupo estava
saudoso das trocas. Eram 11 senhoras que se reuniam no salão de uma ONG para
compartilhar seus cansaços. Eu estava ali como orientador de uma oficina de
escrita e memória, encontro que de antemão teve rota alterada ao constatar que
a maioria delas não sabia ler nem escrever. Assim, o espaço se tornou um
momento de escuta, eu conduzindo disparadores para que puxassem do limbo da
memória narrativas pessoais de horas passadas. Gostava imensamente de ouvir
experiências tão diversas, imaginar aquelas pessoas habitando outro tempo e
espaço, outras formatações de seus corpos. Com o tempo aprendi a notar a
maneira como cada qual contava algo, os gestos, as entonações, o titubear
diante de acontecimentos traumáticos, mas nunca desistindo de continuar. Entre
elas, havia uma idosa que discorria pouco, com uma entonação diretiva que lhe
dava um aspecto de constante irritação, embora as frases que dizia contrariavam
a melodia da fala. Um dia uma colega de grupo perguntou sobre seu problema de
nervos que a fazia tamborilar os dedos nas próprias pernas. Dona Olinda, a
senhora das mãos dançarinas, explicou que era um vício antigo, resto de enredo
profissional. As senhoras foram guardando seus sons: não era sempre que surgia
a oportunidade de saber algo mais sobre a taciturna Olinda, que começou após um
pigarro:
-
Quando moça, mãe achou por demais importante e bonito que eu aprendesse
datilografia. Lá fui decorar aqueles botões todos. Dava uma aflição medonha,
porque aquilo lembrava minha bisavó. Ela morava com a gente, era muito magrinha
e tinha muita dor nas costas. Me pedia o tempo todo pra apertar os lados dela.
As teclas da máquina de escrever eram iguais as costelas da minha bisa, até o
estralo era igual.
As
senhoras riram da inusitada comparação, porém a Olinda rascunhou um sorriso com
os dentes cerrados e continuou:
-
Sabe que eu era a mais ligeira do curso? Queria tanto acabar depressa com
aqueles tapas, aquele barulho de máquina gemendo, que acelerava e terminava
tudo num baque, nem me dava com as horas. De assim foi que acabei escrivã num escritório.
Era lugar de fiscal de terra, gente que ia ver se tinha alguém que ainda vivia
feito escravo. E tinha, viu? Ui, como tinha.
Uma
jovem entrou no salão trazendo café e biscoitos, fazendo com que as ouvintes
dispersassem e seguissem com suas conversas sobre um desastre que estava em
todos os noticiários por aquela época. Ficamos eu e dona Diva, uma que estava
em seu primeiro encontro e ainda não tinha intimidade para boas conversas fiadas.
Continuamos observando a datilógrafa, que mantinha em suspenso a respiração de
um evento que não havia terminado. Ela entendeu nossa curiosidade e seguiu:
-
Problema foi que os dedos deram de me enganar. Toda vez que alguém me ditava um
relatório, algo em mim virava nuvem e não sei o que me dava, os dedos
disparavam e eu nem percebia o que estava fazendo. Quando relia o texto, não
tinha escrito o que passaram: tinha criado uma história, cheia de palavras que
não conheço, com pessoas que não existem, situações que não foram as que o
fiscal contou. Cheguei até a ir numa psiquiatra, mas ela disse que não tinha nada
de errado, aparentemente. Com o tempo foi piorando. Minhas mãos não obedeciam
mais ao que eu escutava, elas queriam batucar outras vidas, escrever fábulas e
umas estranhezas que nunca entendi.
Dona
Olinda coçou a parte de trás da orelha, suspirou alto e se levantou para pegar um
copo de água. Voltou seu testemunho antes que o corpo se acomodasse na cadeira:
-
Comecei a ter um medo tão grande da máquina de escrever. Era a mesma inquietação
que eu sentia quando ia no terreiro de uma minha tia. Ficava tonta, o coração
acelerava, o corpo se deixava levar pelo ritmo das teclas. Olha, não vou dizer
que nunca fui de mentir, que mentirinhas estão no ar que a gente bota pra fora
e nem repara. Mas assim, de mentir aos metros, de propósito, nunca me inclinei pra
isso. Então precisei largar o serviço de datilógrafa e fui ser guarda de
trânsito. As mãos só tinham que se ocupar em dizer: pare.
A
mesma jovem que trouxera os biscoitos proferiu o fim do encontro. Uma van esperava
para deixar as senhoras em suas casas. Dona Olinda se despediu repetindo o sorriso
trancado e saiu, engatando uma conversa lacônica com uma colega. Dona Diva se
levantou com um pouco de dificuldade e antes que se deslocasse rumo à porta,
sentenciou:
-
Acho que é tudo invenção.