terça-feira, 16 de novembro de 2021

Máquina de escrever

Foto: Tadeu Renato


Há aqueles dias em que as mãos querem transformar experiências em palavras grafadas em tela e papel, mas é apenas um impulso muscular. As palavras, elas mesmas, não desejam surgir à toa, preferem a permanência do silêncio. É compreensível esse distanciamento de ruídos e manchas, a música interna escolhe se dar em afetos tácitos com um cachorro vivo do que escrever qualquer coisa que seja. Há também os instantes em que as palavras de dentro apenas querem visita e escutar história alheia.

Estavam conversando muito alto, não se viam desde antes do natal e o grupo estava saudoso das trocas. Eram 11 senhoras que se reuniam no salão de uma ONG para compartilhar seus cansaços. Eu estava ali como orientador de uma oficina de escrita e memória, encontro que de antemão teve rota alterada ao constatar que a maioria delas não sabia ler nem escrever. Assim, o espaço se tornou um momento de escuta, eu conduzindo disparadores para que puxassem do limbo da memória narrativas pessoais de horas passadas. Gostava imensamente de ouvir experiências tão diversas, imaginar aquelas pessoas habitando outro tempo e espaço, outras formatações de seus corpos. Com o tempo aprendi a notar a maneira como cada qual contava algo, os gestos, as entonações, o titubear diante de acontecimentos traumáticos, mas nunca desistindo de continuar. Entre elas, havia uma idosa que discorria pouco, com uma entonação diretiva que lhe dava um aspecto de constante irritação, embora as frases que dizia contrariavam a melodia da fala. Um dia uma colega de grupo perguntou sobre seu problema de nervos que a fazia tamborilar os dedos nas próprias pernas. Dona Olinda, a senhora das mãos dançarinas, explicou que era um vício antigo, resto de enredo profissional. As senhoras foram guardando seus sons: não era sempre que surgia a oportunidade de saber algo mais sobre a taciturna Olinda, que começou após um pigarro:

    - Quando moça, mãe achou por demais importante e bonito que eu aprendesse datilografia. Lá fui decorar aqueles botões todos. Dava uma aflição medonha, porque aquilo lembrava minha bisavó. Ela morava com a gente, era muito magrinha e tinha muita dor nas costas. Me pedia o tempo todo pra apertar os lados dela. As teclas da máquina de escrever eram iguais as costelas da minha bisa, até o estralo era igual.

        As senhoras riram da inusitada comparação, porém a Olinda rascunhou um sorriso com os dentes cerrados e continuou:

     - Sabe que eu era a mais ligeira do curso? Queria tanto acabar depressa com aqueles tapas, aquele barulho de máquina gemendo, que acelerava e terminava tudo num baque, nem me dava com as horas. De assim foi que acabei escrivã num escritório. Era lugar de fiscal de terra, gente que ia ver se tinha alguém que ainda vivia feito escravo. E tinha, viu? Ui, como tinha.

           Uma jovem entrou no salão trazendo café e biscoitos, fazendo com que as ouvintes dispersassem e seguissem com suas conversas sobre um desastre que estava em todos os noticiários por aquela época. Ficamos eu e dona Diva, uma que estava em seu primeiro encontro e ainda não tinha intimidade para boas conversas fiadas. Continuamos observando a datilógrafa, que mantinha em suspenso a respiração de um evento que não havia terminado. Ela entendeu nossa curiosidade e seguiu:

             - Problema foi que os dedos deram de me enganar. Toda vez que alguém me ditava um relatório, algo em mim virava nuvem e não sei o que me dava, os dedos disparavam e eu nem percebia o que estava fazendo. Quando relia o texto, não tinha escrito o que passaram: tinha criado uma história, cheia de palavras que não conheço, com pessoas que não existem, situações que não foram as que o fiscal contou. Cheguei até a ir numa psiquiatra, mas ela disse que não tinha nada de errado, aparentemente. Com o tempo foi piorando. Minhas mãos não obedeciam mais ao que eu escutava, elas queriam batucar outras vidas, escrever fábulas e umas estranhezas que nunca entendi.

             Dona Olinda coçou a parte de trás da orelha, suspirou alto e se levantou para pegar um copo de água. Voltou seu testemunho antes que o corpo se acomodasse na cadeira:

       - Comecei a ter um medo tão grande da máquina de escrever. Era a mesma inquietação que eu sentia quando ia no terreiro de uma minha tia. Ficava tonta, o coração acelerava, o corpo se deixava levar pelo ritmo das teclas. Olha, não vou dizer que nunca fui de mentir, que mentirinhas estão no ar que a gente bota pra fora e nem repara. Mas assim, de mentir aos metros, de propósito, nunca me inclinei pra isso. Então precisei largar o serviço de datilógrafa e fui ser guarda de trânsito. As mãos só tinham que se ocupar em dizer: pare.

            A mesma jovem que trouxera os biscoitos proferiu o fim do encontro. Uma van esperava para deixar as senhoras em suas casas. Dona Olinda se despediu repetindo o sorriso trancado e saiu, engatando uma conversa lacônica com uma colega. Dona Diva se levantou com um pouco de dificuldade e antes que se deslocasse rumo à porta, sentenciou:

                - Acho que é tudo invenção.


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