Um conto escrito coletivamente por:
- Lucas Guedes
- Paulo Pilha
- Marcela Prado
- Cleyton Cabral
- Caio Coletti
- Carol Campregher
- Luiz Carlos Filho
- Híndira Barros
- Augusto César de Alencar
- Iara De Dupont
- Iara De Dupont
- Fernando Bonfim
- Thaiane Moregola
- Camila Rufine
- Rodrigo Artur
- Tatiana Lazzarotto
- Eduardo Santinon
- Marlon Vila Nova
- Márcio Luis
- Felipe Lários
- Camila Marin
- Adriano Vicentini
- Barbara Mançanares
- Luana V
- João Gomes
***
I
Desde o momento em que decidi morar
nesta casa, algumas coisas estranhas começaram a acontecer. Na verdade eu sabia
que o fato de ter abandonado uma vida cheia de oportunidades no centro de SP
para viver isolado num lugar distante e inóspito, traria mudanças em minha
forma de me relacionar com o mundo. Deixei um amor, o único que achei ser
verdadeiro (e ainda acho), um emprego ridículo, mas que me pagava muito bem e
toda a fantasia de quem se deslumbra com uma cidade como aquela. Não, não me
arrependo. Pelo contrário, acordo e durmo tranquilo, como se tivesse a certeza,
pela primeira vez, de ter tomado a atitude correta.
Acontece que há exatos 7 dias, a casa
não é a mesma. Primeiro apareceu uma carta de baralho rasgada embaixo de um
prato de comida, na hora do almoço. 7 de paus. Depois as luzes que apagam e
acendem por vontade própria. Sem contar as formas de animais que aparecem nas
sombras como se fossem desenhos em nuvens. Talvez seja o fato de estar sozinho
e de beber whisky enquanto deixo meu corpo ser invadido por substâncias
ilícitas, as quais tanto gosto. Talvez sejam alucinações. O que importa é que
não tenho medo de nada que acontece aqui, mas confesso que estou um tanto
inseguro com essa situação.
Mas hoje de manhã, a campanhia tocou
pela primeira vez em três longos meses. E em apenas um dia, minha vida se
transformou completamente.
Pra sempre.
II
Saí correndo em direção à porta, mas quando abri,
não havia ninguém. Fui para a rua, olhei em volta e dei uma volta pela casa.
Não havia mesmo ninguém por perto. Eu só queria entender como a pessoa que
tocou a campainha conseguiu ir embora tão rápido. Voltei para casa pensando nas
luzes que acendiam e apagavam sozinhas, na carta de 7 paus e no frango que eu
iria preparar para o almoço.
Foi então que eu vi o tal embrulho.
Era isso. A pessoa misteriosa veio até aqui, deixou o embrulho, tocou a
campainha e foi embora sem deixar pistas. Abri o embrulho com muito cuidado e
vi um casaco azul com capus e fechecler. Nas costas do casaco havia uma imagem
com a cara do Paul McCartney sorrindo. Sim, ele era o meu músico predileto.
Examinei um pouco mais o casaco e notei que, pelo tamanho, era feminino.
Examinei pela terceira vez o casaco e comecei a tremer de medo. Eu não tinha
mais dúvidas. Aquele casaco era da minha ex-namorada, o grande amor da minha
vida que eu havia deixado em São Paulo. Numa das poucas brigas que tivemos, ela
foi embora correndo da minha casa e me deixou falando com as paredes. Fiquei
com raiva e joguei pela janela o seu casaco. Dois dias depois da confusão,
quando fizemos as pazes, ela pediu o casaco de volta, mas eu disse que havia
jogado pela janela num momento de raiva. Ela apenas disse "não tem
problema meu amor, o que importa é que está tudo bem agora".
Com certeza era o mesmo casaco. A
única diferença era a imagem do Paul McCartney, que alguém inseriu depois. Mas
quem tinha feito aquilo? Quem tinha achado o casaco? Quem tocou a campainha?
III
Passei o resto do dia sentado na sala
com o casaco na mão e olhando para porta esperando que a campainha tocasse
outra vez, mas ela não tocou. Não fazia sentido. Nada fazia sentido. Ou
seria eu que não raciocinava direito? Não, eu não estava bêbado. Não ainda.
Fiquei lembrando da Ramona. Seria ela? Não, claro que não. Mudou pra Alemanha,
Holanda, Rússia, sei lá, algum lugar frio. Mandou um cartão postal. Na
frente uma paisagem com neve, no verso dizia o quanto me odiava. Não li duas
vezes. Piquei em pedaços e joguei pela janela. A mesma janela pela qual joguei
o casaco. Fiquei lembrando de nós dois bebendo fanta com vodka, tang com vodka,
qualquer porcaria líquida com vodka. Jovens, bobos e duros. Agora ela
deve estar tomando algo caro com algum velho rico de bigodes na frente de uma
lareira. Mas eu não tinha como reclamar, eu fui embora antes.
Fiquei com vontade de tomar uma merda
dessas qualquer. Cuba Libre. Existe Cuba
Libre ainda? Hi fi? Resolvi descer até o bar mais próximo e pedir hi fi, alguns
deles, por saudosismo. O garçom já vinha trazendo o whisky de sempre quando
informei a mudança. Claro que ele riu da minha cara. Meu fígado também, deve
ter achado muito engraçado , ele e o meu estômago, mais a minha cabeça, uma
grande chacota acontecendo no meu corpo. Vodka sempre me fez mal assim ou
eu que fiquei velho? A cabeça girando, a ex girando, o casaco girando e a carta
girando, girando, girando, o sete de paus. Abaixei a cabeça na mesa do
bar. Não sei quanto tempo fiquei ali, de cabeça abaixada, mas quando a levantei
não tinha mais nenhum cliente. Só os funcionários e o barulho da TV mal
sintonizada.
Reuni toda a experiência adquirida em
situações como essa e me levantei com a destreza suficiente para ir até o caixa
pagar a fatura. Estava tirando a carteira do bolso quando, para minha surpresa,
fui informado que já estava tudo pago. Mas quem? Será que eu estava tão digno
de piedade assim? Uma ruiva, disseram.
- Ruiva? Mas eu não conheço nenhuma
ruiva.
- Mas ela sabia seu nome. E deixou
essa chave, ó.
IV
Fudeu. Só pode
ser a chave do inferno. Eu desço, dou boa noite aos capetas e esquento o pau
murcho do frio na lâmina de fogo. Lareira do cão. Saí do bar com a porra da
chave na mão e uma leve dor de cabeça. Será que colocaram algo na minha bebida?
Que caralho eu vou fazer com esta chave? Andou os três quarteirões com passos
simétricos: cinco em cada bloco de calçada, sem pisar na linha. Parou na frente
do edifício verde e examinou a chave mais uma vez. Media entre uma chave de
porta e uma chave de diário adolescente. Colocou-a no bolso do jeans e sentiu
um papel entre os dedos. Era um bilhete com uma mensagem em caixa alta: TU TE
TORNAS ETERNAMENTE RESPONSÁVEL POR AQUILO QUE CATIVAS. Soltou uma gargalhada no
saguão do edifício e pensou: eu só posso ter pisado em macumba. Entrou no
apartamento, sentou na privada e acendeu um Malboro Light. Todos os azulejos do
banheiro eram sete de paus.
V
Saiu do
banheiro sem lavar as mãos, de calças arriadas, tropeçando em si mesmo. Desabou
no sofá. Anos depois, não se lembraria quanto tempo ficou lá, babando, olhando
pro nada e lembrando da Ramona. Dos cabelos pretos cacheados, dos olhos
castanhos quase sempre semicerrados em expressão de suspeita, do corpo farto
acomodado nos sobretudos chiques que ela amava. Uma mistura de detetive
britânica vitoriana e prostituta da esquina, ele sempre pensara. Combinação
bem-arranjada aquela.
Olhou
pra janela. A janela pela qual ele tinha jogado o casaco, o postal picado em
pedaços e o relacionamento de anos em uma das primeiras, e também a última,
briga que eles tiveram. Nem se lembrava mais do motivo. Levantou-se, caminhou
até a janela e, num ímpeto de bêbado, meio berrou e meio cantou:
-
RAMONAAA!! SE EU PUDESSE EU TE TRARIA DE VOLTA…
- Acho
que isso não será possível – uma voz meio rouca lhe respondeu, com português
arranhado de sotaque russo.
Ele se
virou, espantado. A sua frente, envolvida em um roupão de seda tão branco
quanto a sua pele marcada por sardas, uma mulher ruiva tentava controlar a
risada. É claro: ele ainda estava com as calças arriadas.
VI
Enquanto ajeitava minhas calças, olhei para a moça ruiva,
tentando lembrar de onde a conhecia.
-Não se lembra de mim? E disse meu nome.
-Carla, Claúdia, Carmem, Carmem!
Carmem era uma amiga da Ramona, da época em que estavamos juntos
e saiamos em casais. Depois que Ramona e eu desmanchamos
entre brigas e ela começou a sair com outros rapazes, eu parei de sair com os
casais, virei uma peça, metade, totalmente inútil para barzinhos e viagens
onde um casal é pré-requisito.
Carmem estava diferente, deixou o ruivo natural, anos atras tingia de
loiro, estava mais magra, bem mais magra agora.
-O que faz aqui? perguntei.
-Estou saindo com o seu vizinho, do 37, às vezes durmo aqui.
-Você que tem me seguido?
-Não!
-E o sete de paus?
-Do que você está falando?
Depois do interrogatório
indelicado, chamei Carmem para entrar, para conversarmos melhor. Queria,
perguntar logo da bebida, da chave, da jaqueta, da Ramona, se ela sabia de mais
alguma dessas coisas. Mas não queria espantá-la, e antes precisava
amacia-la com aquele blá-blá-blá, de por onde andou, como está, como
anda o pessoal que saíamos antes, e todo aquele texto padrão que minha
ansiedade ao vê-la atropelou.
Ela espiou o 37, provavelmente para verificar se seu novo caso
ainda dormia. Depois ainda sorrindo, me deu um abraço, e entrou no meu apartamento sentou no sofá, e colocou os pés
descalços na mesa de centro.
VII
Sentei no sofá de frente para ela e tentei
pronunciar a primeira palavra... mas não saía nada. Cena patética. Cena, no
mínimo, pueril. Ou coisa de adolescente. Eu doido para perguntar sobre a
Ramona, sobre o bar, porém não conseguia desenvolver a introdução da conversa.
De repente, olhei para Carmem. Ela parecia mais madura, mais mulher. Muito
diferente daquela amiga da Ramona sem sal, sem graça que eu a conheci. Ai que
patético! Eu o cara bom de papo, não conseguindo começar uma conversa. Bem,
consegui quebrar esses milésimos de segundos (para mim pareceram uma
eternidade) perguntando se ela queria beber algo. Ela diz que sim. Prefere um
xícara de café bem quente. Ufa, vou sair um pouco daqui. Minutos depois volto
da cozinha com o café. Entrego-lhe a xícara, mas esqueço o açúcar. Volto à
cozinha apressado. De repente, no retorno para a sala, vejo Carmem em frente da
janela, a luz do sol dá um novo brilho ao seu cabelo ruivo natural, a fumaça do
café fazia uma imagem de filme noir ou de arte. Fico perplexo com a cena. E
quando Carmem arruma o cabelo, vejo na sua nuca... (Fudeu, será que estou me
apaixonando pela Carmem?!? Pronto, nem bebi nada ainda. Isso não deveria estar
acontecendo. Mas ela está linda, radiante, atraente! Não entendo nada. Acorda!
Muda o pensamento.) ... vejo na sua nuca uma tatuagem: o 7 de paus!
VIII
- Carmem, não estou entendendo mais tudo isso. Foi você quem deixou o
pacote na minha casa com a blusa?
- Do que você está falando?
- Ah! Não é possível... Acho melhor eu ir embora... E que tatuagem é
essa?
- Ué, sempre a tive. Sete, meu número da sorte. Sempre fui atraída por
esse número. Mas, você não lembra. Eu e Ramona... Você não lembra porque nunca
se interessou, não é mesmo...
- Ah... Lembro daquelas superstições da Ramona... Sim, vocês
compartilhavam de toda aquela história, certo? De números e pessoas que são
"conectadas". Nunca entendi essa história mesmo, quanta viagem!
Inclusive, essa foi a razão da nossa pior briga. Engraçado lembrar disso agora,
depois de tanto tempo...
Dirigi meu olhar à mesinha de centro, onde havia um maço e
fósforo. Enquanto acendia o cigarro e olhava a vista da janela, recordei
silenciosamente da briga à qual me referia. Não exatamente da briga, mas de um
detalhe: nós gritávamos, cada um o que vinha à cabeça, até que Ramona começou a
chorar e a luz piscou, piscou do mesmo modo como vem piscando a de minha casa
nesses últimos dias. Que coincidência curiosa... Mas, por que me recordo disso
agora? Lembro que, na ocasião faltou luz e depois, fiquei sabendo que fora um
apagão que havia afetado toda cidade. Eu e Ramona ficamos em casa, à luz de
velas e decidimos que íamos jogar cartas, porque nenhum dos dois conseguiria
dormir depois daquela discussão, tampouco sair com a escuridão que fazia. Íamos
jogar cartas, mas desistimos, pois notamos que faltavam os sete de paus...
Estou começando a enteder essa situação.
- Carmem, por que você anda atrás de mim? Que loucura é essa na qual
você e Ramona querem me envolver outra vez? E a Risa? Aposto que ela também
está envolvida nisso...
Voltei meu olhar para Carmem, que já estava estirada no sofá, dormindo
profundamente. Resolvi, então, dormir também, mas antes tranquei a porta e
guardei a chave em meu bolso. Eu não deixaria Carmem ir embora sem antes me
botar a par do que se passava.
IX
Me levantei do sofá e minha vista
estava turva, enxergava vultos dos objetos ao me redor e Carmem ali estava
ainda dormindo. Aproveitei pra ver de perto o Sete de sua nuca. Não entendo
porque, mas ali estava uma chave tatuada. A mesma que eu encontrara dias atrás.
Voltei meus olhos para a porta. A
chave de meu bolso havia sumido e a porta exibia uma luminusidade extremamente
forte. O brilho, embora intenso, me chamava. Sentia-me como um inseto
enfeitiçado pela luz de uma lamparina.
Segui até lá. Vozes repetiam frases
de uma palavra só: "Blusa.", "Carta.",
"Baralho.", "Sete", "Energia".
ERA ISSO!!! Feitiço!... Só pode ser!
Não há outra explicação!
Entrei pela luz, crente que havia
encontrado a resposta, mas caí. Caí de forma infindável! Era longa e eu não
podia evitar. Parecia que o impacto estava por vir, mas com aquela luz eu não
conseguia saber. Tudo passava por mim como se fosse a velocidade da luz.
Bati!
Acordei ofegante, sem ar e suado.
Meus olhos arregalados olhou para a porta que continuava cerrada. Retirei a
chave que eu havia guardado e procurei por Carmem que ali estava, sentada,
ofegante, sem ar e suada.
X
Não sei quanto tempo fiquei olhando para
Carmem. Senti minha mente queimando, meu corpo doendo. Lembrei de minha avó, me
dizendo aos cinco anos para não abrir a porta para ninguém.
Agora estava no chão, pensando, como vim
parar aqui de novo ?
Há três meses quando fiz minhas malas jurei que
nunca mais passaria por isso. Eu seria uma pessoa normal, dessas que compram
pão pelas manhãs e falam com os vizinhos. Separei meu passado em sacos pretos
de lixo e joguei fora, gritando que nunca mais ficaria nas mãos de alguém,
muito menos de Carmem.
E Ramona prometeu me ajudar a refazer a vida.
Mas ela sempre vinha com umas conversas místicas, dizendo que era só uma
questão de se concentrar nas energias positivas e carregar os
cristais. A última vez que a vi me perguntou :
-Sabe o que significa uma carta de 7 paus?
Não quis escutar, disse a ela que não me
interessavam esses assuntos, mas Ramona insistia em dizer que minha casa tinha
um portal, uma espécie de passagem para outros mundos. Ela contava sobre
os muitos portais que existem no mundo e as vezes as pessoas sem
saber abrem a porta .Então perguntei :
-Como se abre a porta ?
Ela logo respondeu:
-Não tem um modo específico, a vezes a presença
da pessoa na casa agita essa energia, tem gente que faz cerimônias, ou brinca
com o copo, sabe aquele lance de fazer perguntas esperando o copo se mexer?
Isso abre o portal e senão fechar logo você vira uma visita indesejada na sua
própia casa, eles te colocam para fora.
Agora já deu. Foi de longe a coisa mais besta
que escutei. Casas tem problemas de encanamento, de eletricidade, de mofo, mas
dizer que tinha um portal era absurdo.Mesmo assim deixei Ramona e Carmem
encherem a casa de velas, incensos e amigos estranhos.
Por que estou lembrando disso enquanto minha vida
está por um fio? Carmem achou que eu estava dormindo e se aproximou do meu
pescoço .Tentei virar,mas não deu tempo.Mesmo de olhos fechados senti seu olhar
fulminante quando viu minha pequena, quase invisível, corrente de ouro com um
pentagrama.
Devia ter escutado a explicação da Ramona sobre
a carta de 7 paus. Poderia ser minha única oportunidade de sair daqui. Mas
Carmem viu o pentagrama. É, ela tem razão, não adianta fugir, estou novamente
em suas mãos.
XI
Com a cabeça a mil, sentiu-se exatamente numa
história de Lewis Carroll. Era uma Alice perturbada; descobrindo portais, com a
vida em queda livre. Num mundo das maravilhas ao contrário, também tinha sua
pequena chave ao final da queda e nenhuma pergunta respondida. Ao invés da
rainha de copas tinha um sete de paus que lhe cortava a mente.
Antes de concluir meu último pensamento, levei a mão no pescoço para
segurar o pentagrama.Ele não estava lá. Foi em vão. A vida pareceu em
vão.
A voz de Carmem propagou numa atmosfera sem gravidade atrás de mim. O
poster na parede, que era uma cópia barata dos Girassóis, com as pontas gastas
e dobradas derreteu e escorreu pela parede em um amarelo purulento. Van Gogh
virou Dali.
Tudo na sala foi se misturando em cores gelatinosas em efeito slow
motion. O copo de suco despencou da minha mão e o líquido laranja dançou como
num balé do Bolshoi.
A única coisa que fui capaz de sentir foi o líquido gelado no meu rosto
dormente.
Horas mais tarde, amarrado numa cadeira, eu me lembraria de Carmem
falando em voz alta e tremulante que o caminho para sair daqui dependia muito
do lugar para onde eu queria ir.
XII
Vi na mesinha de centro o resto de um chá que
Carmem havia preparado para nós. Quando perguntei a ela o que havia na bebida,
ela apenas me perguntou se eu conhecia a espécie de cogumelo Psylocybe
mexicana. E gargalhou, dançando no meio da sala e cantando "All My
Loving" do Paul. O efeito havia passado pra mim, mas não pra ela que
estava completamente fora de si. Quando voltei a atenção para mim mesmo não
estava amarrado, apenas pressionava um pulso contra o outro com os braços
voltados para trás, o quadro estava intacto, e o copo com suco continuava
marcando a estante da sala.
O roupão de Carmem estava se abrindo, e dentro dele se exibia um corpo
tão esplendido quanto o que eu lembrava que era o de Ramona. Por algum tempo
fiquei hipnotizado com o modo que ela cantava e dançava. Mas logo cai em mim e
me levantei, envolvendo Carmem pela cintura, a sentei no sofá e implorava para
que se acalmasse. O efeito não devia ser muito longo, então eu fiquei ali,
parado esperando que Carmem voltasse a ser ela mesma e pudesse me explicar tudo
aquilo.
Eu queria dizer a ela que já sabia para onde eu queria ir. E que na
verdade eu só queria me livrar de toda esse feitiço, essa história sem pé nem
cabeça, esse apartamento estranho.
Meu celular, que estava no bolso da minha blusa, vibrou alertando que
uma mensagem havia chegado. Quando eu olhei o visor não pude acreditar. Depois
de três meses de total silêncio e logo quando todas essas coisas estão
acontecendo, Ramona decide dar o ar da graça ...
XIII
Neste momento eu acordei. O barulho do celular, na verdade, era o meu
despertador, berrando que era hora de me levantar para a entrevista de emprego
agendada para aquela manhã. Mesmo assim, chequei o celular para ver se havia
alguma ligação da Ramona. Não tinha nenhuma ligação. Fiquei uns 5 minutos
deitado e paralisado, tentando deduzir o que era real e o que não era. Então,
subitamente me lembrei da Carmem, me levantei e corri para o sofá, mas não a
encontrei lá. A porta continuava fechada. A xícara de café estava sobre a mesa.
A chave continuava no meu bolso. Pensei em bater no apartamento 37, mas já
estava atrasado demais.
Enquanto caminhava rumo à minha entrevista, tive a sensação de que
alguém me seguia.
No começo, apressei o passo por uns segundos, mas logo desacelerei.
Cansado de tudo, parei, virei de costas para onde estava caminhando e comecei a
gritar para o nada:
- O que você quer? Apareça logo, caralho. Não tenho medo de você!
Fiquei ali parado uns 30 segundos, tentando flagrar alguém escondido nos
postes, arbustos e árvores, mas não vi nada. Quando voltei a me virar para a
direção que seguia antes, levei o maior susto. Tinha um cara parado, vestido de
preto com os braços cruzados e a maior cara de deboche. Sinistro pra caramba.
- Ué, ficou branco por quê? Você não acabou de dizer que não tinha medo?
O cara era mesmo um filho da puta.
- Foi o susto, porra. O quê você quer de mim? - Perguntei.
- Eu não tenho muito tempo. Então ouça bem o que vou dizer e guarde essa
atitude para outra hora.
O Cara estranho me puxou para um canto mais obscuro, atrás de um muro
semi destruído e continuou a falar muito rápido e desconexamente, quase como um
narrador de corrida de cavalos:
- A Ramona está em perigo e precisa da sua ajuda. Ela se envolveu com a
máfia Russa há algum tempo. Ela roubou deles uma peça que eu não posso te dizer
ainda o que é, para sua própria segurança. Eles estão loucos atrás dessa peça.
Só que se os caras colocarem a mão nela, o mundo pode acabar, tá ligado? A
Ramona tentou se comunicar através de sonhos com você. Uma parada que ela chama
de viagem astal. Mas ela desistiu porque você é um cabeça dura e para essas
coisas darem certo, é preciso estar apto. Por isso ela me incumbiu de te
alertar. Você precisa tirar a peça de lá.
Nesse instante, ele parou para tomar o primeiro ar. O cara devia mesmo
tentar a carreira de narrador. Tinha talento - e fôlego - pra coisa. Quando
abri a boca para perguntar onde estava tal peça, ele recomeçou a falar:
- Cuidado com a Carmem. Ela está com eles. Ela está te dopando faz um
tempo pra tentar arrancar qualquer informação sua. Você deve estar tendo
alucinações frequentemente, não está? Toda noite a Carmem entra na sua
casa e te aplica uma droga estranha e fica te monitorando com uns aparelhos
sinistros, que ficam guardadados durante o dia no apartamento 37.
- Então ela era real? Eu conversei com ela. - Eu disse, meio gaguejando.
- Você chegou a vê-la? - Disse ele, com os olhos arregalados
- Sim. - Respondi.
- Cara, se eles descobrirem que você nem sonha onde está essa peça e que
você viu a Carmem, você está morto. - Ele falou, muito despreocupadamente pro
meu gosto.
- Tá, eu tô fodido. Já Entendi. Mas o que é que eu tenho que fazer? -
Olhei pro meu relógio. Já estava uma hora atrasado para a entrevista.
Ele olhou para os dois lados e disse que tinha que ir. Antes de sair,
teceu um comentário que achei totalmente desnecessário:
- Se você não fosse um completo tapado, já teria entendido os sinais que
venho deixado no apartamento. Já que não é o caso, talvez se você voltar para a
casa e ouvir o melhor disco do seu cantor favorito, sua mente abra um
pouquinho.
Virou-me as costas e foi embora.
E eu, que já sabia que era um cara desempregado por mais algum tempo,
corri para a casa e fui reto na minha estante de vinis. Retirei o Ram (meu disco preferido do Paul), da
prateleira e quando fui pegar o disco, um papel caiu no chão. Era um mapa.
XIV
Antes de tentar interpretar o mapa tive a
preocupação de colocar para tocar a sétima música que é a que mais gosto. Com
Heart of The Country ao fundo, acendi o Marlboro Light, após a primeira
longa tragada, pude avaliar o mapa mais adequadamente e me surpreendi.
Porra! O que o mapa de Colônia del Sacramento
está fazendo aqui!?
Respirei, não deve ser nada demais, apenas veio
furtivamente uma lembrança de São Paulo, de quando eu tinha um emprego de
merda, mas que proporcionava viagens como esta e que eu tinha um amor.
Amor que com o tempo só me traz vergonha da
ingenuidade, o combustível para o clamor dessa mudança toda. Sabe e daí?
Fiquei pensando se realmente estou tão ruim
assim. Para ter certeza, um coloquei uma dose bem servida de whisky, com 2
pedras de gelo e nesse momento já estava tocando Long Haired Lady. Tudo estava
tão confuso e que já não me lembrava mais de ter ouvido Eat at Home.
Ramona? Não sei se realmente estou tão
preocupado assim? Carmem? Eu quero comê-la, não me importo quem seja ela, pouca
diferença faz se ela está com a Máfia Russa ou o PCC. Peça roubada...?
Após aquela golada vigorosa que somente os machos
dão num whisky, logo após pude ouvir ao fundo de tudo:
"Borboletas se equilibram no espaço
Um muro velho em minha face
Uma cadeira flutua num espiral.
Flores em minha camisa numa tarde do
bairro
E enquanto caminho pelas ruas da
cidade,
Lembro que uma sobremesa me espera em
casaaaa."
Perto do fim de minha consciência, pude observar
em terceira pessoa, cartas de 7 paus chovendo em minha sala, a Carmem entrando
com um pudim pela minha porta.
XV
As cartas chovendo em casa me lembrariam aquele quadro do Magritte, da
chuva de homenzinhos. Só mais uma peça surrealista na imensa desordem que havia
se transformado minha vida. Acordei com a cabeça doendo e demorei a abrir os
olhos. Parecia que tinha consumido todas as drogas do apartamento do João
Guilherme Estrella. Com os olhos semicerrados, deitado no sofá, deparei-me com
um prato de pudim em cima da mesa de centro, com um pedaço já comido.
Carmem apareceu com uma camisola muito fina, debaixo da qual se viam os
mamilos arrepiados. Desviei minha atenção daquilo e perguntei bruscamente:
- Eu comi esse pudim?
Ela pareceu se assustar com o tom agressivo.
- Calma, mocinho... Você está ainda mais estranho, né? Ontem só falava
de mapa, de quadro, de cartas chovendo.
- Fui eu que comi o pudim, porra?
- Foi.
Lembrei na hora do cara estranho. Tinha sido enganado mais uma
vez por essa ruiva desgraçada. Ela devia ter me dopado e me monitorado, ou
algo parecido, sei lá qual era a pira. Enquanto ela voltava para a cozinha,
peguei o mapa junto ao disco e examinei-o. No verso, em letras bastante miúdas,
estava escrito: Noite trágica. Puxei na memória que diabos isso tinha a ver com
Colônia del Sacramento e me lembrei das palavras do guia: “depois de fundada
pelos portugueses, Colônia foi palco de uma luta pela terra que envolveu também
índios e espanhóis, conhecida como Noite Trágica". Procurei na internet. O
episódio aconteceu na noite do dia 7 de agosto.
Mais um sete.
Quando Carmem voltou da cozinha, com uma bandeja, encontrou-me resoluto.
- Vou para o Uruguai.
- Eu também - ela respondeu de súbito.
- E seu caso, do 37?
- Ele me espera.
Eu não sei por que decidi ir. Andava sem um puto, mas senti que a
pequena cidadezinha no Uruguai poderia solucionar muitas das minhas dúvidas.
Mexeria na poupança da guitarra.
Saindo de casa com as malas, evitava falar com Carmem. Por um lado não
queria que ela me acompanhasse, mas ao mesmo tempo não conseguia repeli-la.
Poderia estar me fodendo permitindo que ela viajasse comigo, mas também não
queria me afastar dela. Dobramos a esquina e algo atraiu minha atenção. Uma
cigana, gorda, cheia de panos, estava próxima do muro para onde o cara estranho
me puxou na manhã anterior.
- Carmem, vem!
Corri atrás da cigana. Quando chegamos, eu e Carmem, esbaforidos junto
da velha, quis perguntar-lhe o significado do 7 de paus, mas tive uma ideia
melhor.
- Leia as cartas para a gente.
- A gente? – respondeu ela assustada.
- Sim, para mim e minha amiga – falei, pegando Carmem pelo braço.
- Que amiga, meu filho? Você está sozinho.
XVI
Sudoreico, taquicárdico e confuso, dei dois passos pra trás espalmando a
mão que confirmava o vazio, as palavras da gorda e a não existência de
Carmem.
- Take easy meu garoto! Disse a cigana sorridente.
Jorge Ben, Paul, Chico Science, São Paulo, pudim, Uruguai, Carmem que
vem, Carmem que vai, 7 de paus, porra, nem chamando o síndico...
- Nesses tempos de descrença, quem me cumprimenta já leva um tiquinho do
amanhã, oxalá quem suplica por dois sendo um! Senta.
Sentei. Porque não obedeceria? Me dê motivo!, sádico síndico.
- Já jogou cartas?
- Só truco.
- Ah tá...
Após embaralhar o carteado, o deixou na calçada e puxou pra si a
primeira do topo, seus olhos me fitaram com horror por cima da carta encoberta
por sua mão esquerda, e antes que eu perguntasse a soltou, a peçonhenta carta,
um 7 com uma cobra escrota.
- Deixa eu te dizer, a serpente é uma carta alerta. Indica fraude,
trapaça, mentira e ameaças. Como anda tua vida garoto?
Pensei em desabafar tudo num vómito único, mas mudei de ideia ao
imaginar o que seria de mim depois de desandar a narrar essa história desconexa
num choro gesticulante, a gorda ia me internar, era muita coisa, até pra uma
cigana. Então resumi.
- Um pouco tumultuada. Senhora, tenho visto/sonhado(?) muito o 7 de
paus, tem ligação com a asquerosa aí?
- Eita pau!
- Eita o quê???
- Tu tá de ida pra onde garoto?
- Uruguai. E o 7? E esse eita pau? E os paus do 7? Pelo amor de Deus
minha senhora!!!
- Calma garoto, calma. O 7 de paus revela desafios, a chance de no meio
da crise você externar o melhor de você. Vai pro Uruguai.
- Vou?
- Vai. A mala já tá feita não tá? Igual esse balaio sem retorno. Busca
tuas respostas, certas coisas a gente não sabe dizer, só sente, elas chegam em
nós. Assim, a vida é mesmo assim.
Consenti com a cabeça colocando as alças da mochila nas costas. Cheio de
medo e desejo. Medo do Lulu, de revisitar as ruazinhas esverdejantes de
Colônia, rememorar aquela primavera feliz, o beijo da Ramona, o gole na Patrícia.
Fui, vulnerável irracional sem nenhum senso e apenas uma direção:
Santíssimo Sancramento.
XVII
Vai saber porque o nome Santíssimo Sacramento de
repente não saía da minha cabeça. O moço da rodoviária disse que só tinha uma
Colônia do Sacramento em Uruguai.
- Pode ser, então. - E fui.
Assim que cheguei na cidade, sem ter noção de que caminho seguir,
andando pelas ruas tentando entender o que eu fazia ali, dei de cara com uma
igreja enorme. Eu nunca fui muito ligado em igrejas, sempre achei meio
misterioso demais. Aquela, em particular, chamou a atenção. Entrei. O nome da
igreja - descobri logo - é Santíssimo Sacramento, e a essa hora o meu coração
já estava na boca.
Não tinha ninguém na igreja exceto uma senhora limpando o chão do altar.
Fui me aproximando olhando em volta os detalhes daquela igreja pensando em como
a arquitetura era mais minimalista antigamente quando a senhora soltou um
grito. Me olhando fixamente, as mãos tremendo, ela deixou cair a vassoura e
parecia em pânico ao me ver.
Eu não sabia se devia sair correndo ou ajudar a velha. Me aproximei.
Estava dentro de uma igreja afinal. Ela me abraçou com tanta força que
suspeitei que estivesse tentando me sufocar. Eu não costumo ser tão neurótico
mas tenho motivos justificáveis pra suspeitar do que eu quiser ultimamente.
Quando conseguiu se recompor, a velha se retirou e voltou com uma foto minha
nas mãos e um endereço.
- Ela sempre falava de você. - Disse.
O endereço me levou ao que achei ser o destino final de Ramona. Lá
estava a foto dela em uma lápide simples. A foto rodeada por trevos simétricos.
Sete deles. Embaixo, sem nenhum dizer, constavam apenas a data de nascimento, a
de falecimento, e o nome Carmen Diaz.
XVIII
A essa altura, eu já não estava entendendo mais
nada.
Como assim, Carmen Diaz, sendo que a foto era da Ramona?
E a data... O maldito número 7 estava de volta. O nascimento marcava 13
de julho de 1.975.
A morte, 7 de outubro de 2.003.
Conheci muito bem Ramona. Nem tinha como não conhecê-la, afinal, foi o
grande amor da minha vida.
É verdade. Brigávamos demais. Mas qual casal não briga?
Ali sentado, em frente à lápide, comecei a falar baixinho, como se a
pessoa que ali estivesse pudesse me ouvir:
- O quê é tudo isso? No quê você se meteu, Ramona? Onde você foi parar?
E a Carmen... Realmente... Está aqui?
Levantei.
A senhora, que limpava a igreja, havia dito "ela sempre falava de
você". Talvez a velha soubesse de algo.
Colônia del Sacramento era uma cidadezinha muito pacata, daquelas que
lembram filmes de faroeste.
O vento zunia naquela tarde. Alguns vira-latas passeavam tranquilamente
pelas ruas empoeiradas e sem asfalto. Vez ou outra, uma charrete cortava
a via. E no controle do veículo de tração animal, senhores idosos meneavam com
a cabeça, num cumprimento típico das pessoas do interior!
Avistei mais uma vez a igreja do Santíssimo Sacramento.
E lá estava a senhora que havia me abraçado tão forte, fazendo-me pensar
que queria que eu passasse dessa para a melhor!
- Senhora, por favor, eu poderia conversar contigo um pouquinho?
Ou ela se fingiu de surda, ou sua idade avançada fez com que realmente
não me escutasse.
- Senhora...
Nisso, desviei meu olhar para um homem que parecia espreitar, esquina
acima.
No momento, não dei muita atenção. Mas... Foi aí que...
Que diabos! O homem era o mesmo que havia conversado comigo, alertando
sobre o quê havia acontecido à Ramona e sobre a Carmen, que dizia ele, estava
envolvida em tudo aquilo até o pescoço!
Minhas pernas bambearam. O suor começou a derramar... Meu fôlego parecia
diminuir...
- Não... Não... Mas o quê... - gemia eu.
- Vamos sair daqui.
Uma voz rouca, mas forte, cortou os meus pensamentos. E uma mão
franzina, mas com uma força fora do comum agarrou o meu braço. Era a velha,
transfigurada num ser mais forte do que realmente aparentava.
Não discordei. Acompanhei-a até o interior da igreja. Ofereceu-me um
copo de água (pelo menos era o que parecia).
De imediato, pensei em não beber nada que viesse de mais ninguém. Carmen
vinha me dopando durante muito tempo, segundo a figura misteriosa que acabara
de rever, na esquina, e parecia querer não ser visto.
- Filho...
- Oi?
A velha me chamava de volta à realidade.
- Sei o que você tem passado. Meu nome é Estella. A Carmen me falou
sobre você. Achou que você viria a tempo de...
Ela parou e pareceu firmar a vista no horizonte.
- A tempo de quê, minha senhora?
- A tempo de evitar que ela fosse pra onde você a encontrou.
Então era verdade... Carmen estava morta. Mas o que fazia a foto de
Ramona numa lápide que tinha um outro nome?
- Senhora, você tem de me explicar o que está havendo... Coisas muito
estranhas tem acontecido comigo nos últimos tempos... Essa Carmen, era amiga de
minha ex-namorada...
Nisso, a velha tocou os próprios lábios com o dedo
indicador, e disse, quase que num sussurro:
- Aqui não posso falar. É perigoso. Tome. Aqui está
o meu endereço. Vá até lá, mas depois da meia-noite.
Não chegue antes. Quando chegar, bata quatro vezes
na porta. Não abrirei. Insista com mais cinco batidas, e a porta lhe será
aberta. Lá explicarei à você aquilo que eu puder explicar.
Minha cabeça doía. Seria resultado do que havia bebido?
Mas era apenas água. Resolvi acreditar que poderia ser o cansaço da viagem.
Perguntei à Estella se havia um lugar naquela
cidadezinha no qual eu pudesse me alojar, durante um tempo. Pelo menos até a
noite daquele dia.
Disse que havia a "Pensão de San Jose",
que ficava mais ao centro.
- Tome muito cuidado. Perceba os detalhes. Não confie em ninguém...
Ok. Se a velha queria me assustar, conseguiu.
Agradeci pelo que ela havia me dito, e fui em direção à porta.
Saí, e olhei na direção onde havia visto o vulto que pensei ter
reconhecido. Ninguém estava lá.
O sol já ameaçava se pôr. Eram cinco e meia da tarde. Fui caminhando
naquela cidade que lembrava o faroeste.
Não havia como errar a pensão da qual Estella me falara.
No centro do bairro, havia um casarão, com a placa anunciando:
"Pensão de San Jose".
E pra lá caminhei.
XIX
Pobre San Jose!
Depois de dedicar uma vida inteira ao
ofício da carpintaria, de ter aceitado - como um santo homem que era - o papo
que Maria lhe contara acerca da concepção do Menino Jesus, era daquela forma
que os uruguaios lhe homenageavam! Dando o seu nome a uma espelunca caindo aos
pedaços e que estava mais para manjedoura do que para pensão. Mas era para lá
que eu me dirigia e era lá que eu ficaria até darem as doze badaladas...aguardando
- quem sabe? - a visita de um anjo Gabriel que me guiasse, que desse uma luz
para aquela merda toda que tinha se tornado minha vida depois daquela maldita
"visita".
Tan! Tan! Tan! - bati sem muita força
na porta da espelunca com medo de quebrá-la. Veio me atender uma velha (Outra.
Com quantas velhas se faz o meu destino?) com cara de avó afetuosa.
- ¿Qué quieres, mi hijo?
- Apenas um quarto. Só por esta noite
- na altura do campeonato, não ia forçar o portunhol.
A velha me guiou por um pequeno
corredor até a sua mesa, onde estavam a papelada da pensão, um tricô inacabado
e um porta-retratos. Uma linda menina sorrindo numa foto que o tempo já tinha
amarelado.
- Quem é a menina? - Perguntei para
puxar assunto, enquanto entregava meus documentos.
- Es mi hija
Joana. Pero es conocida por Risa, porque tiene una linda sonrisa.
A velha continuou a falar, mas eu já
não ouvia mais nada. Havia me esquecido completamente de Risa, aquela megera
que eu e Ramona conhecemos da última vez em que estivemos em Colônia del
Sacramento. Da vez em que trouxemos Carmen conosco. Saíamos com ela e o
seu namorado japonês por uma ou duas vezes, mas passamos a evitá-la. Ramona não
ia com a cara de Risa, achava que ela só fazia comentários inconvenientes, se
metia onde não era chamada e (o pior) "me comia com os olhos". O fato
é que desde que deixamos Sacramento nunca mais mantivemos contato com Risa.
Carmem, no entanto, tornara-se sua melhor amiga.
- Realmente muito bonita sua filha e
tudo o que a senhora me disse sobre ela - disse eu, disfarçando o meu nervoso e
o fato de não ter ouvido quase nada do que ela falara - e onde ela está agora?
Ela também trabalha aqui?
A velha se transfigurou e lágrimas
brotaram de seus olhos cansados e afetuosos. Foi com muito esforço que ainda
conseguiu dizer:
- Mi hija no
está aquí. Mi pobre Risa está en una prisión muy lejos de nuestra ciudad porque
quitó la vida de una mujer...
Não consegui dizer nada. Não ia fazer
aquela pobre senhora sofrer com mais perguntas. Apenas lhe dei um abraço e
prometi pra mim mesmo que iria descobrir a razão de tudo aquilo.
Mas ainda faltavam seis longas horas
para meia-noite.
XX
Peguei os lençóis brancos e a toalha que a velha me
entregou e entrei no corredor procurando pelo quarto de número 7. Não consegui
esconder o sorriso quando vi o número gravado no chaveiro gasto.
O quarto 7 era o último do corredor. A porta rangeu quando abri e
mostrou um quarto pequeno e escuro. Precisava de um banho, mas estava cansado
demais para isso. Deitei no colchão fino e frio e logo adormeci.
Sonhei com a entrevista de emprego que não fiz, com as sobremesas que
recusei, com os amigos que perdi, com as compras que não paguei, os amores que
não tive. Foi um sono profundo e nem mesmo o despertador conseguiu me acordar
as 23:30.
Eram 7 horas da manhã quando um gato preto pulou sobre minhas costas e
me despertou. O sol já entrava no quarto e parecia gritar "ESTELLA".
Merda. Perdi o encontro com Estella.
Me vesti com pressa, me perguntando porque faço sempre tudo errado e
quase pisei no maldito gato quando fui abrir a porta do quarto e percebi que
ela estava trancada por fora.
XXI
- Aonde você pensa que vai?
Sinto todos os pelos do meu corpo arrepiarem ao
ouvir essa pergunta. Do lugar mais improvável possível.
- Te fiz uma pergunta.
- Você é um gato.
- E você não é de todo ruim. Mas uma coisa de cada vez.
- Você tá falando.
- E você não tá ouvindo. Presta atenção. Não é pra você sair daqui.
Seria mentira dizer que sentei na cama. O mais sincero é admitir que
minhas pernas viraram gelatina e eu de repente me vi sentado. Encarando o gato
preto.
- Putaquepariu.
- A tua. Escuta, te acordei pra conversar com você. Pra que essa mão?
Para! Me solta.
- Eu tô te sentindo. Você não é um sonho.
- Não. Eu sou seu pior pesadelo. hahaha. Desculpa. Faz tempo que não
tenho ninguém pra conversar.
- Putaquepariu.
- Ah, meu saco castrado...você é devagar, né? Olha, presa muita atenção.
Estella, Risa, Ramona, Carmem (ou é Carmen?), o cara estranho, a cigana...não
dá pra você confiar em nenhum deles.
- E é pra confiar em você?
As palavras saíram baixinho, como se eu não quisesse falar. Cacete, eu
não queria! Aquilo é um gato! E um gato preto. Que sorte.
- Só se você quiser. Afinal de contas, o que você veio fazer no Uruguai?
Duvido que tenha vindo encontrar a máfia russa.
- Não. Quero dizer, eu vim fugir dela. Aliás, vim atrás da igreja do
Santíssimo Sacramento. E agora a Carmem tá morta. Mas ela é a cara da Ramona.
- Ah, é. Esqueci da velha da igreja. "Aquela que não pode falar
nada porque não é seguro". Como é que deixam você sair sozinho na rua?
- Hein?
- Você é muito burro mesmo.
- Eu não vou ouvir desaforo de um gato.
- Cala tua boca que eu tenha mais experiência de vidas que você. Ouve o
que tô te falando. O que é que você veio buscar aqui?
- A...a verdade, eu acho.
- Sobre o quê?
- Sobre o que aconteceu com a Ramona.
- Lindo. Olha, a Ramona não tá mais com você. Faz uns anos já, lembra? E
precisou viajar pra outro país pra ouvir de um gato que não tem nada pra você
aqui.
- M...
- "Mas", nada. Pensa que eu não sei? Você fala de si mesmo na
terceira pessoa e narra as cenas na sua cabeça como se estivesse num filme
noir. Toma vergonha nessa cara!
- Eu só queria uma resposta.
- Para de perguntar pros outros. O que você quer fazer? Já parou pra
pensar nisso?
- Cara...eu só quero sair dessa confusão.Tô cansado. Muito cansado de
não saber o que fazer.
- Eu sei.
- Eu achava que tinha superado a falta que ela me faz. Quando o casaco
apareceu na minha porta....
Subitamente, parei de falar. O gato ficou me encarando com aquela cara
de quem sabia que eu tinha percebido uma coisa muito importante. A merda do
casaco ficou lá em casa e eu tô aqui, a um buzilhão de quilômetros. Sem a merda
do casaco. As palavras saíram sem demora.
- Eu sou um idiota mesmo.
- Ô se é.
Depois de zombar mais uma vez de mim, o gato deu uma última olhada pro
meu rosto, virou-se e foi até a janela. Assim que ele saiu, ouvi a porta sendo
destrancada. A seguir, ela finalmente se abriu.
XXII
Depois do gato falante, fiquei pensando que animal me esperava diante da
porta. Meio ressabiado, respirei fundo e dei alguns passos: era a senhora com
cara de vó falando em um castellano rápido que eu havia perdido o café da manhã
e que precisava fazer uma faxina no quarto, já que o horário do check-out tinha
passado há algumas horas. Contra a minha vontade, disse que não precisava de
faxina nenhuma e que ela me reservasse mais um dia por lá.
- Acepta tarjeta? – perguntei à senhora.
- No, solo en efectivo.
Porra! Já tinha me esquecido dessa mania
escrota de não aceitarem cartão em lugar algum. Peguei alguns pesos que me
restavam trocados na carteira e saí para comer alguma coisa. A senhora me fez
indicação de bons lugares para almoçar naquele horário. Agradeci. Mas meu
esforço de lembrar os nomes foi só para passar bem longe. Naquela altura do
campeonato, depois de Ramona, Carmen, Mafia Russa, Risa, gato falante, eu só
poderia contar comigo mesmo – não que isso valesse alguma coisa.
Segui a rua rumo à parte histórica da cidade, entrei em um restaurante e
pedi um chivito. Como aquele lanche era bom. Bons tempos, falei em voz alta sem
perceber. Depois, junto com a conta, a garçonete me entregou um bilhete.
- Merda! Será outro código? Será que esse chivito também estava bolado?
Não aguento mais essa loucura toda.
Quando fui ler a mensagem me deparei com um pedaço de uma música do
Belchior “No corcovado, quem abre os braços sou eu. Copacabana, essa semana, o
mar sou eu”. Tudo bem que dizem que ele tá sumido no Uruguay, mas daí me
mandarem um bilhetinho com música dele...Como ultimamente tudo tinha uma
mensagem escondida, resolvi quebrar minha cabeça pra descobrir o que no fundo
aquele bilhete dizia.
Conversando com alguns nativos em um portunhol escroto, aprendi que
muitos chamam o Rio do Prata de mar. Perguntei também se não havia nenhuma
estátua de Cristo por ali, já que eu me dizia muito religioso. Alguns senhores
que estavam jogando cartas falaram que não sabiam, mas que quando queriam
rezar, subiam no farol da cidade, porque olhar o “mar” lá de cima era como que
fazer uma oração.
Fui até o farol, subi aquela escada de caracol que me dava mais vertigem
que aquele maldito pudim e quando, enfim, cheguei ao topo, eis que vejo uma
mulher de costas com um moleton idêntico ao que eu havia encontrado a lejos do
Uruguay, bem lá no meu Brasil, de onde eu jamais deveria ter saído.
XXIII
Aquela visão do moleton pareceu durar
um dia inteiro (e não foi mesmo um dia inteiro?!). Lá do alto da torre gritei
furiosamente para a mulher. Quando ela se virou, o vento jogou o cabelo sobre o
seu rosto, encobrindo, mais uma vez, a verdade. Desci as escadas o mais rápido
que pude, mas não consegui alcançá-la. Algo me dizia que era a Risa, aquela
vadia maldita.
- ¡Carajo! ¡Puta madre!
¡Mierda! - Estava eu lá de frente para o Río de la Plata berrando
palavrões que soam tão bem em castellano. O que, afinal, significava tudo
isso? Sentei-me à margem do rio pensando na loucura que foi ter ido até
Colonia del Sacramento para tentar dar sentido a uma narrativa cheia de lacunas
e só encontrar elementos mais bizarros. Resolvi analisar friamente tudo
que se passou desde que apareceu aquela carta de baralho rasgada embaixo
do prato de comida. Todos os fatos pareciam teatralmente preparados e todas
aquelas pessoas estranhas pareciam encenar para me enlouquecer. Fui manipulado,
não há dúvida. Minha vida era uma ficção. E não era apenas uma pessoa
envolvida nisso tudo. Não era apenas a Risa ou a Carmen. Muita gente junta,
umas trinta pessoas, sei lá. Minha primeira decisão foi não aceitar mais
nenhuma bebida ou comida que me oferecessem. Eu jejuaria, assim, poderia
garantir a minha lucidez para analisar cada um dos fatos me aconteceram a fim
de encontrar a relação entre eles.
Voltei à pensão San Jose. Entrei
novamente no quarto, e estava lá o gato preto dormindo preguiçosamente sobre a
cama. Desta vez, estava calado, ao menos. Procurei meu caderno na mochila e
quando fui fazer algumas anotações, encontrei entre as folhas do caderno
um recorte da página 7 do Jornal da Tarde do dia 04 de julho, que não sei por
que estava ali. Desdobrei a página e e estava um anúncio circulado: "Marcelo
Antunes lava, passa, cozinha pra fora e traz a pessoa amada em três dias".No
topo da página do jornal estava escrito em letra de forma: "Não
sabe se descrever, mas gosta de escrever, não é?" e ao lado, uma
citação: "Eu gosto de gostar" Marcel Duchamp. É
muita charada para quem é uma piada como eu.
Última Parte
O gato continuo
calado na dele e eu passei mais alguns minutos tentando decifrar aquele enigma.
Distante de um socorro e de uma solução, pensei em voltar para o Brasil. Mas
seria isso o correto? Uma visita inesperada e adereços jogados no meu cenário
fizeram toda essa confusão e eu não me dei conta. Fiquei seguindo as rubricas
dessa peça sem direção. Muita loucura para um hospício só. Será que isso foi
alguma macumba que a Ramona fez? Não duvido nada, logo ela que se envolvia
tanto com essas coisas. Pensei, de antemão, já que não conseguia entender
aquilo tudo, em telefonar pra minha mãe para perguntar algumas coisas. Mas não,
não posso envolvê-la nisso. Tenho que ir até o fim, como um cego.
É noite e a pensão
San José é um local agradável de se passar, não posso mentir. Mas, com todos
esses problemas pra resolver, nem pude voltar a rever as redondezas. Estive
aqui ano passado na época que conseguia ainda manter uma relação estável com a
Ramona. Momentos inesquecíveis que de tão bons que ficaram tatuados no cérebro.
E agora tudo acontecendo como num filme pausado por uma amiga cagona e, no
aparecer do play na tela, a película avançada sem nada a se entender. Cenas
adiantadas, o motivo talvez tenha sido as dopagens. A pipoca talvez estivesse
com alguma coisa e eu não senti nada. Este está sendo um filme difícil. Não é
como aqueles que quando você para pra assistir, já dá pra acompanhar e se
emocionar com o final. Uma coisa é certa: isso que vem acontecendo comigo não é
um roteiro de merda, dá pra assistir, mas... Será que ele vai me passar alguma
moral? Será que terá os créditos? Eles talvez fossem um desfecho para essa
pegadinha,muito bem produzida pelo visto, que estão fazendo comigo.
Não tive medo de
nada desde o começo e espero não ter daqui pra frente. Penso em bater uma
punheta, mas a ocasião pede reflexão, e não gozo. Sou precoce e seria uma
jogada rápida... Mas não, tenho que refletir. Como alguns dizem: os poucos
neurônios do homem estão no pau. Não concordo. Todos os ponto erógenos até sim,
mas os neurônios não, pelo menos não agora. Estou com todos na cabeça,
lugar-comum e sem metáfora onde eles devem ficar. Estou preocupado com o meu
futuro e não me desapego do passado. Passam, como numa apresentação de slides
na minha frente, muitas imagens. Desconheço os próximos passos e resolvo não me
mexer muito para não encontrar mais nada. Está tudo muito bem até agora. Nada
melhor, como falaria a minha mãe se eu lhe telefonasse agora, como um dia após
o outro. Virá! Solução não sei... O gato se mexe.
- Ainda
acordado? - indaga o gato.
- Não consegui
dormir tentando resolver tudo isso. Você sabe de mais alguma coisa?
- Você deveria
enterrar suas necessidades. Cobrir com areia.
- Por que você está
dizendo isso? Vai, responde!
- Você não desconfiou
tanto de mim? Achava que eu não falava... Não teve imaginação para entrar no
meu mundo, mas acreditou em tudo isso que vem acontecendo com você. Eu tenho
experiência de vida, você não.
- Isso eu sei, mas
eu só queria entender isso tudo que tá acontecendo.
- Você acredita que
nós gatos temos sete vidas?
- Não.
- Então, o seu
problema é não ter problema.
- Só queria a
solução.
- A morte é a única
coisa para qual não há solução. Você tem que aprender a enterrar suas
necessidades e acreditar menos. Vives muito no passado e não vives. Você
reclamava de ter uma vida muito paradona e agora a cegonha lhe visitou. Trouxe
de presente muitos problemas... Ramona morreu e Carmem também e, como acho que
você deve saber, elas só tem direito a uma vida. Nada de reencarnação nessas
horas e se tiver é pra uma futura melhora no caráter delas. Nada é em vão.
- Então isso é tudo
mentira?
- Mentira diria que
não. Pense, como se fosse, a visita do Papai Noel onde o presente é uma lição
de vida. Mas isso não quer dizer que seja mentira. Foi uma visita, sim, mas
domiciliar de médicos, lhe alertando pra você entender que sua morte também
está próxima se você não parar pra viver sua vida sem visitar o passado.
(The end)