Os sapatos que antes ocupavam as
prateleiras na despensa agora repousavam em qualquer pequeno espaço do quarto;
as roupas sujas amontoavam-se escondidas atrás do móvel grande, enquanto as
xícaras, copos e panelas na cozinha precisavam ser procurados dia a dia diante
da necessidade do uso, já que poderiam estar em qualquer lugar. Há algum tempo
a casa andava sem ordem. Era preciso lembrar do tempo, do espaço, do ontem, do
anteontem e do banho de agora.
Passava apressada de um lado pro
outro, tentando organizar o que fosse possível antes de ir trabalhar,
recapitulando as obrigações diárias, o artigo a ser concluído, as datas das
próximas reuniões, as compras a serem feitas no mercado, a próxima consulta
médica da minha mãe, a torneira que precisava ser consertada, a cama velha que
implorava ser trocada... ressentida pelo tempo que eu não tinha. Enquanto
andava de um lado para o outro da casa, preocupada com o atraso, o ônibus que
passaria dali a 20 minutos - que, caso perdido, imputaria a pena de esperar por
outro mais ou menos uns 50 minutos - fechei, pelo menos por cinco vezes, a
porta do armário-depósito que ficava embaixo da escada “Preciso trocar essa
fechadura”. Dei alguns passos e a porta abriu novamente.
Instantaneamente parei na
intenção de voltar para fechá-la de novo, mas permaneci imóvel. O tempo, a
casa, as memórias, o passado, o presente e futuro de repente fundiram-se em uma
grade névoa escura e densa que parecia pairar sobre a minha cabeça e me dei
conta de que era meu aniversário. Voltei alguns passos ainda de costas em
direção ao armário e a porta estava ali, entreaberta, como se debochasse da
minha falta de atenção, do meu desleixo, do meu cansaço. Quis fechá-la, juro
que quis, mas subitamente a abri e percebi que havia esquecido completamente do
que tinha lá dentro.
Num primeiro momento só avistei caixas,
entulhos, coisas quebradas que estavam amontoadas há anos esperando conserto,
poeira, fios e cabos elétricos que eu já não fazia a menor ideia de onde eram.
Mas ali, escondidos atrás de tudo aquilo, estavam meus cadernos antigos em que
eu escrevia minhas histórias, os trabalhos da escola que ela havia guardado com
tanto carinho, o vestido e sapatinhos do meu batizado que “depois que eu morrer
você pode dar um fim”, os bonés antigos do meu pai, os álbuns de fotografia...
enfim, estava tudo ali ainda, imóvel diante de um tempo que passa sem trégua,
carregando tudo, mesmo quando você implora que ainda tem muita coisa boa pra
tirar daquele momento. Ele não tem freio. No armário ainda estavam guardados
todos os sentimentos acumulados (e ali compactados) de uma vida toda, de um
passado que ainda era mais aconchegante e amoroso. E eu os conhecia todos,
acompanhavam-me dia a dia diante da tarefa de continuar, de projetar e alcançar
sonhos para na sequência desfazê-los em razão da urgência da vida; acompanhavam-me
na solidão, no cuidado crescente para com a minha mãe (os papeis estavam
invertendo-se), do medo de não conseguir, do cansaço da repetição dos menores
detalhes. Mas ali, guardados no armário, estes sentimentos pareciam sorrir enquanto
diziam que não precisavam doer, e que tudo bem que hoje ainda ferissem, amanhã e
talvez depois de amanhã, mas que eles só precisavam de mim para serem
ressignificados.
Olhei com pesar e tentei acolher
todos eles em meus braços; por um momento tive gana de abrir todas aquelas
caixas, desentulhar, desembaralhar, separar o que estava quebrado, procurar
todos os velhos cartões de aniversários e sorrir pelos 35 anos de idade que se
aproximavam, encontrar a força das mulheres da minha família que ultrapassaram
tantos e tantos limites para ressoar em mim, trazer o ímpeto de reinventar
sonhos, sorrir para o mundo, mas... tão instintivamente quanto parei para abrir
a porta daquele armário, lembrei-me que o ônibus passaria dali a “uns 10
minutos, acho” e saí apressada, não sem antes beijá-la carinhosamente e
perguntar o que ela queria para o jantar enquanto assistia sua autossatisfação por
encontrar “amor” na revista de caça-palavras.