quarta-feira, 15 de julho de 2020

Ser negra no UK

No mês de junho, o mundo assistiu um triste caso de abuso, violência e racismo que gerou uma mega campanha nas redes socias: black lives matter. Saiba mais aqui: https://blacklivesmatter.com/ (site em inglês).

Infelizmente, o racismo ainda é muito presente no nosso dia a dia. Na maioria das vezes de maneira mais sútil e disfarçada, outras vezes de maneira mais grosseira e cruel.

Então, eu pensei em contar para vocês um pouco da minha percepção sobre o racismo no UK, com base no que observei durante os 12 meses que morei lá. 

Primeiro, percebi que em Manchester tem gente de todos os lugares do mundo, uma diversidade de grupos e raças enorme! Embora todos esses povos e raças convivam na mesma cidade, os grupos étnicos e raciais andam, vivem, moram bem segregados: europeus costumam andar com europeus, africanos com africanos, chineses com chineses, árabes com árabes e assim por diante. Inclusive os bairros são diferentes. Tem bairro de negro, bairro de árabe, bairro de inglês. Eu acredito que exista um componente sutil de racismo aí, mas o principal motivo para isso deve ser identificação cultural mesmo. Pelo menos essa foi a minha impressão.

Segundo, essa segregação de raças no UK faz com que algumas misturas sejam raras. Veja o meu caso, por exemplo. Eu sou uma mistura de várias coisas (nem sei bem quais) e, embora tenha a pele mais clara, tenho traços negros bem marcantes. Então, eu era muito diferente de tudo na Inglaterra porque lá você dificilmente encontra alguém de pele clara com traços negros. O negro costuma ter a pele bem escura, o branco costuma ser completamente branco, sem misturas. As pessoas lá me olhavam com curiosidade, querendo entender o que eu era, de onde eu era. Esse olhar curioso se assemelhava muito ao nosso olhar quando vemos um gringo andando no Brasil. Eu achava engraçado. Nunca me senti hostilizada em situações como essas.

Terceiro, os negros (a maioria africanos) que conheci no UK se ofendiam quando eu dizia que era negra. Para eles, eu não era negra de verdade, já que a minha pele é clara. Por outro lado, os brancos (geralmente europeus), diziam que eu era negra. 

Eu diria que ao longo de 12 meses, vivi algumas situações bem pontuais que de alguma forma se relacionaram com racismo:

1) Eu morava na casa de uma australiana e do filho dela de 5 anos. Eu fazia parte da rotina da casa, fazia as refeições com eles, conversava, saia junto e etc. Às vezes, eu ia buscar o menino da escola. Um dia, ele chegou da escola me chamando de Jackie Black. Eu estava de calça preta nesse dia e, sinceramente, eu realmente achei que ele estava se referindo à minha calça, não me ofendi. Entretanto, a minha host e mãe do menino, ficou muito constrangida, deu várias broncas no menino e disse que ele nunca mais poderia me chamar de "black". O comportamento dela me gerou mais desconforto do que o comportamento do menino em si. Mas depois conversamos e ficou tudo bem. Nunca mais fui chamada de black naquela casa.

2) Um dia eu estava num pub com um grupo enorme de pessoas e eu circulava entre todas elas, conversando sem parar. Em algum momento parei do lado de um menino negro do Zimbabue e começamos a conversar. Ele perguntou se eu tinha namorado, e depois que eu disse que não, ele perguntou o que eu tinha feito para que o meu namorado me deixasse. Detalhe, eu nunca mencionei que um suposto ex namorado tinha terminado comigo. Daí eu perguntei porque ele achava que eu tinha sido "deixada" e ele me disse que eu era "too open" (muito dada, a melhor tradução que pude encontrar). Nesse caso, acho que foi mais um sexismo do que um racismo. 

3) Outra vez num pub, um inglês me disse: sabia que você é a única negra nesse pub? Ele não foi hostil, mas tinha um tom enorme de racismo na fala dele. Isso foi dito depois que eu recusei uma bebida. 

4) O pior caso de racismo veio de uma mulher negra! Até hoje não acredito. Eu estava num treino de handebol com outro time (tipo um amistoso). No time adversário tinha um menina negra. Eu fiz um arremesso e perdi o gol. Essa menina negra do outro time comentou "she´s not black enough" (ela não é negra o suficiente), como se a cor da minha pele definisse a minha competência em jogar handebol. Para piorar, ela fez esse comentário ridículo para uma mulher branca! Enfim. No próximo arremesso, eu acertei. Daí voltei para ela e disse: não preciso ser negra.

E você, já passou por algum caso de racismo, sexismo, ou qualquer outra discriminação? Como você lidou com isso?

Abraços e até a próxima.


8 comentários:

  1. Oi Jacque. Gostei muito de ler suas experiências, bem inusitadas. E sinto muito pelas situações desagradáveis que passou.
    Eu, as vezes, sofro alguns racismos por causa da descendência japonesa, mas nada que se compare. E, como mulher, já estou cansada dos machismos diárias. Na maioria das vezes, eu peito, escancaro, mas ás vezes prefiro evitar a fadiga, sabe como é -.-

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    1. ah, e meu cabelo, herdado do lado negro, e "incompatível" com os olhos puxados... nossa já fui tão zoada por causa do meu cabelo ("ruim, armado, tiri-tiri") que não tem como negar que é racismo.

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    2. Os machismos diários cansam mesmo!
      Acho que a sua descendência japonesa misturada com a descendência negra deixa explícito o tipo de beleza que só se vê quando se mistura. É para ser apreciado. =D

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    3. Brigada, querida! Assim como a sua 😍

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  2. Acho que todas essas misturas torna o Brasil tão especial! Infelizmente o mundo está repleto de preconceitos... cabelo, cor da pele, gênero, aparência, etc, etc, etc. Acho triste pois todos nós sofremos com algum tipo de preconceito diferente e, ainda assim, continuamos um sociedade tão preconceituosa.

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    1. Triste! Vivemos mesmo diversos tipos de preconceito. Mas aos poucos, vamos lutando contra isso e dando mais espaço para a diversidade.

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  3. Ótimo seu texto também, Jacque!!! Eu só passei a me reconhecer e me declarar negra depois de ter morado em Curitiba, em que as diferenciações étnicas são muito acentuadas. Fui percebendo aos poucos que o sobrenome informa sua descendência (como se isso fosse realmente possível) com mta importância. Enfim, vivi algumas situações por lá tb.

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