segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Metafísica

Há metafísica bastante em não pensar em nada, de fato.


Quando estava no colégio, estudando Fernando Pessoa, passamos por Alberto Caeiro - leitura obrigatória para o vestibular. Um professor que fazia teatro interpretou os escritos pra gente, e foi assim que aprendi a ler poesia. 


Quinze anos depois, aqui estou eu pensando em Caeiro. O caso é que adorava os poemas dele, mas me incomodava o Metafísica* (ou seja lá qual for o nome que lhe é dado, o importante é me fazer entender). Achava-o bonito, porém incômodo. Como que alguém fecharia os olhos  e veria as coisas só como elas são? 


Estou de olhos abertos: hoje o céu está azul, está meio frio, começo de outono. Tem uma escada na minha frente, às vezes um esquilo aparece correndo por ela, carregando uma avelã. Não tenho aveleiras no meu jardim, mas sei que no parque ao lado tem. 


Fecho os olhos e penso como que alguém poderia descrever o outono fora do Brasil sem ficar perdido olhando o chão amarelo-ocre, resultado das folhas que caem das árvores, que descem brincando com o vento. 


Quem está ao sol e fecha os olhos, 

Começa a não saber o que é o Sol


Me doía aquilo, tentar não deixar minha imaginação correr e enfeitar com verbos e ações o que apenas é, que não tem motivo senão o da própria existência.

Mas hoje, quinze anos depois, pego pensando que talvez o certo fosse ele. Olho as notícias e fico com medo do amanhã. O dia seguinte, quem sabe dele? Quem pode me dar a tranquilidade que preciso? Como fingir que está tudo bem? Como não fingir também?


O que penso eu do Mundo?

Sei lá o que penso do Mundo!

Se eu adoecesse pensaria nisso.


E, então, quando abro os olhos o mundo continua ali: as árvores, o céu azul… elas são o que são e não precisam ter sentido íntimo nenhum. Apenas existem e isto é o suficiente. E talvez eu devesse aprender mais com as árvores e as nuvens e as folhas e os esquilos. Se eu fecho os olhos e tento ir além do que eu sou, do que consigo, o medo me corrói. A finitude assusta, e a inconstância também. O medo do amanhã se esgueira nos cantos da mente, enquanto faço o café.


Enfim, respiro, tento focar no agora, e tento olhar as coisas como elas são.


O único sentido íntimo das coisas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

 

Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

Sem dúvida que viria falar comigo

E entraria pela minha porta dentro

Dizendo-me, Aqui estou!

 

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos

De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,

Não compreende quem fala delas

Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

 

Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda a hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

 

Mas se Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

Porque, se ele se fez, para eu o ver,

Sol e luar e flores e árvores e montes,

Se ele me aparece como sendo árvores e montes

E luar e sol e flores,

É que ele quer que eu o conheça

Como árvores e montes e flores e luar e sol.

 

E por isso eu obedeço-lhe,

(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),

Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,

Como quem abre os olhos e vê,

E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,

E amo-o sem pensar nele,

E penso-o vendo e ouvindo,

E ando com ele a toda a hora.



*Você pode ler o poema completo clicando AQUI

sábado, 26 de setembro de 2020

Este não é um texto de filosofia.

Em “Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento (Aufklärung)?” de (5 de dezembro de 1783), o filósofo alemão Immanuel Kant aborda a relação entre razão e liberdade, entre várias outras questões, de acordo com quem o leia. Mas, não é objetivo, aqui, averiguar os desdobramentos filosóficos deste texto, que não são poucos, com destaque a um texto de Foucault em que ele comenta o desafio que o presente coloca à filosofia. Vou me deter na ideia e maioridade e menoridade que ele coloca no texto. Por isso, desculpem, uma pequena citação:


Esclarecimento <Aufklärung> é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio

entendimento, tal é o lema do esclarecimento <Aufklärung>.


Aqui, Kant identifica a maioridade como o uso livre da razão e mais, vê nesta autonomia, um ato de coragem; como é ousado pensar por contra própria e se libertar da tutoria de autoridades do pensamento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma boa parte de homens e mulheres continuam menores. Ah… “É tão cômodo ser menor”, ele vai dizer (sem esse suspiro). Kant aplica isso à trajetória histórica da humanidade, cuja saída da menoridade seria a época das luzes, escolarmente conhecido como iluminismo. 


Podemos, de modo igualmente livre, pensar essa questão da maioridade com relação a nossas trajetórias individuais e, geralmente, trabalho isso com meus alunos de ensino médio nas aulas de filosofia, de modo muito frutífero, diga-se de passagem. Várias e provocativas questões surgem dessa definição, tais como: quando saímos da adolescência (menoridade)? Estamos saindo cada vez mais tarde da adolescência? É verdade que mulheres amadurecem antes que os homens? Ou ainda, características que apenas imputamos apenas a adolescentes como insegurança, inconsequência, carência afetiva ou ainda a perspectiva que o universo gira ao nosso redor, desaparecem automaticamente quando entramos na vida adulta, leia-se, “maioridade”?

Em um mundo em que vivemos a adolescência como um outro pecado original - do qual buscamos nos desvencilhar de modo ainda mais agudo do que aquele que o primeiro pecado, realmente, original (segundo o judaico-cristianismo, hein?) - a questão se mostra muito pertinente. Se tomamos a definição de Kant, isto é, a maioridade como a autonomia do uso da razão, algumas perguntas podem se mostrar inescapáveis, como: quando atingimos a maioridade? E suas variáveis: a covardia e o conforto que marcam a menoridade são características apenas da adolescência? O quão confortável estamos na nossa menoridade, que se mostra tão natural e desejável, ao aceitarmos as respostas do instagram/youtubers, livros de autoajuda, cursos aleatórios e frase motivacionais/coaching? Só os adolescente fazem isso?


Este não é um texto de filosofia, mesmo que pareça tão socrático com todas as suas perguntas. Tampouco, nele, leitoras e leitores encontrarão respostas para sequer, para uma delas. Como se diz hoje em dia, “postei e saí correndo”. 


Contudo, vou deixar uma pista, que não surgiu dos textos filosóficos. Eu a encontrei em um livro de Mauro Benedetti, autor uruguaio, chamado “a trégua”, no qual seu protagonista afirma (com o perdão de outra citação):


Que eu me sinta, até hoje, ingênuo e imaturo (isto é, só com os defeitos da juventude e quase nenhuma de suas virtudes) não significa que tenha o direito de exibir essa ingenuidade e essa imaturidade. 


Talvez a adolescência seja, como qualquer outro momento da vida, um momento de vícios e virtudes, o que coloca para nós, o desafio de amadurecer mantendo suas virtudes e deixando para trás, os seus defeitos. Mas, mesmo aí, todo o cuidado é pouco, pois, como diz Calvin, parceiro de Haroldo e personagem de quadrinho de Bill Waterson: a infância é muito curta, a maturidade é para sempre


Sapere Aude!


quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Narrativa do silêncio

Tem momentos em que a inspiração para escrever flui livremente, fica até difícil acalmar as ideias e organizar as palavras. Em outros, parece haver um vazio, como uma nuvem silenciosa que fica parada sobre a cabeça sem nem trovejar e nem dar espaço para o sol aparecer. Tive várias ideias sobre o que escrever este mês. Foram insights nascidos a partir de documentários geniais que assisti, de livros emancipadores que li, fotos antigas de família que resgatei, retratadas em uma época que eu não era nem uma previsão de futuro. Fiz planos de pesquisar e escrever sobre a Guerra de Canudos e Antônio Conselheiro... peguei e guardei “Os Sertões” por três vezes, sem passar das primeiras páginas, e no caldo destes estímulos procurei a certidão de casamentos dos meus avós maternos dos quais percebo hoje, sempre me ocupei pouco.

“Minha [mãe] era paulista, meu [avô] baiano”, de Juazeiro. Nunca soube muito sobre ele, sei que era lavrador e descendente de espanhóis. Para além disso, o pouco que sei começa já na sua história conjunta com a minha avó, nascida em São Simão, interior de São Paulo, uma mulher negra, filha de uma geração de filhos de escravos. A certidão de casamento “refere e dá fé”, que a união civil se deu em 22 de outubro de 1938. Lembro de ouvi-la dizer algumas vezes, como se não se importasse muito, o preconceito implícito que pairava sobre seu casamento com um “homem branco de olhos claros”. De qualquer modo, não sei muito mais além disso, como por exemplo, como se conheceram, as dificuldades que enfrentaram, embora saiba que não foram poucas, pois eram muito simples, moraram por muito tempo em fazendas das quais meu avô tomava conta, tanto em São Paulo quanto no Paraná, e nas quais minha avó trabalhava nas colheitas. Pelo que sei, foram muito felizes e minha avó sempre expressou grande saudade da convivência dos dois, já que ele morreu em 04 de janeiro de 1965 quando já moravam no núcleo urbano, em Guarulhos, onde eu nasci. Ainda que os filhos - com exceção de minha mãe que era criança - já fossem adultos, minha avó criou netos e bisnetos, lavando roupa para fora. Escrever? Apenas o seu nome, e em uma grafia muito precária.

Olhar para essa história me fez pensar na ausência da narrativa escrita, do quanto perdemos de nossas origens em razão da morte daqueles que as poderiam tão bem relatar, mas que não puderam a escrever antes, como um registro histórico. Minha avó morreu já em 2009, com 98 anos, quando morávamos em Curitiba e, embora tenha vivido muitos anos ao seu lado, ela não falava muito do seu passado. Hoje penso isso a partir do silenciamento da mulher, sobretudo a mulher negra e pobre, como era o seu caso. Uma das lembranças mais claras que tenho, é que ela sempre falou muito baixo, pra dentro, dizendo como se não quisesse dizer, guardando tudo para si, e o que sempre pareceu um traço de personalidade, hoje pra mim soa mais como a internalização de uma compreensão do papel da mulher que foi construída ao longo de uma trajetória em que sua voz não era solicitada, pelo contrário, era silenciada.

Foi silenciada pelo pai, que como ela contava, era rígido e não a deixou frequentar a escola; silenciada pela obrigação de criar os irmãos quando sua mãe faleceu; silenciada pelo julgamento por se casar com um homem branco; silenciada inclusive na foto que ilustra este texto, expresso na tentativa de embranquecer sua pele negra retinta; silenciada quando não possuía meios de subsistir na metrópole a não ser lavando roupas em meio às frequentes crises de asma; silenciada em conjunto com uma massa urbana pobre que habitava os cortiços; silenciada pelas violências sofridas por filhos e netos; silenciada por não perceber que poderia sim, reclamar, ainda que uma vez ou outra.

Muito provavelmente esse não seria o resumo que ela faria de sua vida, é unicamente a minha percepção, conformada em um contexto completamente diferente daquele em que ela viveu, em uma tentativa de encontrar uma narrativa que dê conta dessas vidas que hoje se confundem a tantas outras situadas historicamente e que só fazem sentido quando olhadas por esta perspectiva. Recontar (muito mal, reconheço) essa história me ocorreu quando assisti um documentário sobre Clementina de Jesus, “lida” como o “elo perdido entre a cultura brasileira e as raízes africanas”. Vejo muito de minha avó ali, suas histórias sobre as músicas cantadas nas fazendas, o costume do cachimbo partilhado na varanda, o “bater” as roupas no rio, o lenço na cabeça como proteção e respeito, entre uma gama de outros ritos, linguagens, costumes e modos de vida que foram se apagando no decorrer do tempo-história e que somente ela poderia narrar fidedignamente. Mas ouvindo Clementina falar, bem como as falas sobre Clementina, tive vontade de integrar a essa história afro-brasileira (que tem se tornado um dos achados mais bonitos da minha vida) a história da minha avó, e embora não tenhamos o privilégio de ouvi-la falar ainda hoje, talvez possa ser registrada através do meu olhar, de quem deseja que sua vida não seja apagada, na tentativa de oferecer, finalmente, direito à sua fala e toda potência que ela traz para os dias atuais, em que continuamos assistindo a mesma trajetória se impôr para muitas mulheres negras e pobres, cotidianamente silenciadas.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Do livro das definições - Cap. 37: As quatro estações

Verão: período do ano em que metade das pessoas reclama do calor e a outra metade reclama das pessoas que reclamam do calor.

Outono: período do ano em que metade das pessoas reclama das folhas secas no chão e a outra metade reclama das pessoas que reclamam das folhas secas no chão.

Inverno: período do ano em que metade das pessoas reclama do frio e a outra metade reclama das pessoas que reclamam do frio.

Primavera: período do ano em que metade das pessoas reclama das flores caídas no chão e a outra metade reclama das pessoas que reclamam das flores caídas no chão.



domingo, 20 de setembro de 2020

O conforto tem preço

Esperar pela entrega de um produto comprado pela internet é cruel. Da pizza mais simples ao celular último modelo, o maior zen budista mergulha na ansiedade enquanto a campainha não toca. Esse é um dos motivos de uma greve dos correios dar aflição.


Funcionários da maior empresa de entregas do país de braços cruzados soa absurdo. É tentadora a ideia de diversas empresas privadas disputando nossa preferência com irresistíveis combos de pronta entrega e baixo custo. O problema são os bastidores de nosso conforto.


No filme “Você não estava aqui” (Sorry We Missed You), do diretor britânico Ken Loach, vemos os desdobramentos de um trabalhador que ganha por entrega, sem vínculos empregatícios nem garantias trabalhistas. Se um filme do Reino Unido parece muito distante, podemos abrir a janela e olhar para os entregadores sem vínculos com as empresas daqui.


A empresa pública é uma forma do Estado prestar serviço à sociedade de forma eficiente. Se não é assim que funciona, é isso que devemos reivindicar. Empresas privadas existem para dar lucro, não para oferecer conforto.


A maneira de dar lucro é cortar gastos sem que o cliente perceba. Como empresas de entrega oferecem um serviço, não dá para cortar gastos reduzindo a qualidade do produto, a única forma de aumentar o lucro é explorando o entregador.


É perfeitamente compreensível a indignação causada pelo mau funcionamento de uma empresa pública, afinal é o dinheiro do contribuinte que está em jogo. Por isso as democracias devem ser valorizadas e exercidas. Assim o governo pode e deve ser cobrado pela gestão do que é público, para que faça os investimentos necessários e entregue os serviços devidos.


Empresas privadas de entrega sequer devem cumprir as leis trabalhistas, já que não empregam formalmente os trabalhadores. Por mais que tentem emplacar a ideia do entregador como um empreendedor de si mesmo, na prática vemos pessoas em jornadas extensas, ganhando o mínimo para sobreviver.


Se por um lado a corrupção e má gestão de empresas públicas são passíveis de punição, a falta de empatia com um trabalhador mal remunerado e com jornadas exaustivas é só falta de empatia mesmo.


Ao exercer o direito de greve os trabalhadores dos correios lutam por garantias constitucionais, às quais todos deveriam ter acesso. Para um país mais justo a luta deveria ser para que todos tenham direitos; demandas que extrapolam o desejo de receber mercadorias em casa, com conforto e alienação.

sábado, 19 de setembro de 2020

Vergonha

Professor não pode ter vergonha de passar vergonha.
Depois de passar várias vergonhas (propositais ou não) chego a essa conclusão. Segue a prova:


Essa "bela" obra de arte surgiu do meme 'em uma escala de 1 a 9, como você está hoje?' (ou algo assim). Existem várias versões disponíveis internet afora e, sinceramente, eu não sei quem começou e também não fui pesquisar. Fato é que eu me divirto e pensei em usar com meus alunos.

Anyway, o objetivo aqui não é falar da atividade, mas sim, da minha COMPLETA falta de vergonha em divulgar isso para os alunos. Eu não pensei duas vezes em tirar várias fotos minhas fazendo careta!

Estava achando minhas aulas remotas muito chatas, estáticas. Sentia que estava falhando ao criar um ambiente em que eles quisessem estar presentes e, após alguns cursos que fiz recentemente, tive algumas ideias que decidi colocar em prática. Essa atividade é fruto dessas ideias. Mas para funcionar eu não poderia hesitar, não poderia me envergonhar.

A vida nos coloca em posição de destaque muitas vezes e, dependendo da sua profissão, isso vai acontecer com maior ou menor frequência. Sendo a teacher, sou sempre o centro das atenções. Seja explicando alguma coisa, passando atividades ou até mesmo fora da escola. Os alunos brotam!

Não pensei direito em como finalizar esse texto mas acho que a minha foto é autoexplicativa. Além das coisas óbvias ser professor é não ter vergonha de passar vergonha 😜

E me fala, numa escala de Sunday a Saturday Teacher Fernanda's Face, como você está se sentindo hoje?



Meus outros textos:
Julho: Estreando 
Agosto: Inspiração




sexta-feira, 18 de setembro de 2020

as flores do horizonte

São Paulo, sexta-feira, 18 de setembro de 2020.

- as flores do horizonte - Cristina Santos - post 5 - Blog das 30 pessoas - 


Oi! Espero que estejam bem. Vamos para o conto/cena ou cena/conto de hoje.


título: as flores do horizonte

   (Dois seres caminham por uma estrada de terra: sem fim, sem árvores, sem.)

PERSONAGEM 1: O céu está sem nuvens e não azul. Sem pássaros.

PERSONAGEM 2: O sol está tão forte. Não vamos conseguir.

   (Personagem 1 para. Personagem 2 continua a caminhada.)

PERSONAGEM 1: Olha para o horizonte.

PERSONAGEM 2 (assustado): Mas o que é aquilo?

(Personagem 2 dá alguns passos para trás e fica do lado do personagem 1. Flores de asas multicores, com alimentos em suas pétalas, transmutam-se em chuva/pão. Personagem 1 e Personagem 2 riem, olham-se, choram, olham-se e transformam-se em vida que segue. Fim.)


Escrevi essa cena em julho de 2020 na oficina on-line: Dramaturgias do Sonho. 
E por hoje é só, pessoal. Sintam-se abraçadas e abraçados. Sorriam. Cuidem-se. E até o próximo post.
Beijos
Cristina Santos


"Que é a vida? Um frenesi.
 Que é a vida? Uma ilusão,
 uma sombra, uma ficção;
 o maior bem é tristonho,
 porque toda vida é sonho,
 e os sonhos, sonhos são."

- Pedro Calderón de la Barca - final da fala do personagem Segismundo na segunda jornada - texto de teatro: A vida é sonho - 

 

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Consuelo

Ao menor sinal de valorização, desvalorize-se. Por muito tempo agi sob essa tabuleta. Achava até que eu era mais aceita. Alguém me elogiava, pronto. Era só eu sair pela tangente com um comentário autodepreciativo.

Quase fechando esse dois mil e vinte de meu Deus, tanta pauta de empoderamento, as influencers todas falando que a gente tem que se amar. E eu revidando conquista com fracassos.

Foi chão até que eu aprendesse a não revidar com autodepreciação o que vinha como mensagem de amor. Assim, em voz alta. Porque aqui dentro ainda me martelava. Aff, cê tá louca, amiga. A voz fala baixinho, mas é insistente. 

Há duas semanas eu ganhei uma menção honrosa. Minha pesquisa de mestrado, super reconhecida. E eu, super convencida. Que arrasei? Não, é porque não tinha ninguém melhor, né? Eu sei. Amanhã vou avaliar um trabalho de conclusão de curso de graduação. Que lindo, confiaram em mim. Talvez as outras opções não estivessem disponíveis, né? Certeza.

Parece pesadelo, mas é só minha quarta-feira. As desculpas são cada vez mais sofisticadas. Do porquê não mereci. Provo com rigores científicos de que não sou capaz, foi só um descuido. E isso quase me basta.

Mas aí me apareceu Consuelo. 

Consuelo é a voz que batizei na minha consciência que veio para achincalhar todo o setor das desculpas.esfarrapadas.criadas.para.diminuir.a.mim.mesma. Ela é uma matrona de fogo nas ventas, saia rodada e o tom de voz mais alto das Américas. Consuelo grita, ninguém se mexe. Ela sempre vem quando o setor trabalha demais. Ela também interfere no departamento acho.que.não.ficou.tão.bom.assim.

Consuelo põe ordem, na voz ou no pisar das tamancas. Não foi sorte, mulher. Ela fala. Consuelo afirma, a cabeça assenta. Ai de você dizer que é porque tinha gente menos qualificada. Ou que calhou de irem com a sua cara. Consuelo só aceita que você diga que trabalhou e se empenhou. Aí ela vai embora, barriga cheia, satisfeita.

Foi ela que pediu para eu fechar de vez esses departamentos e escrever mais. Escreva, mulher. 

Quem sou eu para discordar.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Por onde anda

Romuald Hazoumé
Romuald Hazoumé
 

    Acaso um nome brota entre a pilha de louça suja que separo sobre a pia. Logo afogo a lembrança entre as bolhas de sabão, mas o nome se subleva e faz crescer sua voz de dentro do copo: fale de mim. Deixo para outro momento, quem sabe entre uma aula e a entrega de um trabalho. Ali, límpido no prato vazio, o nome mais uma vez se repete e se reflete: fale de mim. Era Sebastião? Era José? Almir? Que seja Almir, por agora, esse sujeito cheirando à álcool e que insiste em me abraçar enquanto fala. Escuto porque sou de escutar e porque não posso sair de onde estou, espero alguém.

    Estava ali na porta do teatro, peça terminada, mãos cheias de cenários, figurinos, uma garrafa. Muito calor, não é? Sim, aceno com a cabeça. Vou te contar. Não conte, nada, Sérgio (era Sérgio), agora não posso parar para anotar, tem o quintal a ser limpo e ainda quero ver um episódio daquela série. Mas Luís (ou era Luís?) não quer esperar, quer dizer: vim parar aqui por conta do trabalho. Eu também, afirmo. Eu sou lá de São Paulo, do extremo sul, perto da represa, conhece a represa? Onde prendem a água toda, conhece? É lá, na beira, sempre na beira. Aí o sujeito me contratou pra fazer um serviço de pedreiro e eu vim, comecei lá o trabalho, mas aí cheguei meio virado um dia e não gostei que o sujeito se engraçou comigo. Gosto dessas intimidades, não.

    Seu rosto pausou longo tempo no meu, o braço tocando com força meus ombros. Você é daqui? Não, também sou de São Paulo, mas já morei aqui. Eu não sou de São Paulo, eu sou da Paraíba.

    Chega, não quero repetir agora tudo o que me falou Pedro naquela tarde, nem quero pensar mais se esse era mesmo o nome dele. Não agora. Preciso terminar um projeto ainda hoje, estão me cobrando: fale de mim. Então fala, como era na Paraíba? Era eu e mãe e meus irmãos. Eu só de criança. Eu e mãe de grude, bebendo da mesma água, dormindo de mesmo quarto, tossindo no mesmo ritmo. Mesmo de olhos fechados, Alexandre apertou os músculos do rosto para conter o choro, que represou a água e deixou escapar apenas um longo suspiro: minha mãe morreu porque tossia muito e fui morar com minha tia. Um cachorro grande e feliz passou cheirando a perna de Armando, no que foi retribuído com afagos e voz fina. O rabo do bicho se agitava tão rápido quanto as emoções do narrador, que voltava a suspirar: eu não sei escrever direito, não deu tempo e eu não gostava da escola. Se eu soubesse, sabe?, se eu fosse assim um poeta, um escritor, eu ia escrever um livro contando da minha vida.

    Enquanto lembro das mãos calejadas dele, tão diferentes das minhas que agora lavam as máscaras de pano, uma mulher está no carro, prestes a dar a luz; neste momento uma senhora se despede da amiga na porta da igreja, deus lhe proteja. Neste momento, a futura avó, afobada, percebe um inseto que entrou pela janela de vidro. A senhora da igreja se lembra de avisar à amiga que não se esqueça da mudança de local da próxima reunião. Enquanto afogo uma máscara azul no balde com água sanitária, a motorista e futura mãe de uma mãe, sacode o braço para espantar o inseto, sem perceber que uma senhora de saia longa começa a atravessar a rua na diagonal. Nesse momento a filha grita o parto, o carro se aproxima, a senhora olha o céu e a amiga a chama de volta, mostrando a carteira esquecida: não é hoje que vou embora, se diverte a senhora, sem ver o carro que passa na rua. Não entendo de destino, em acontecimentos prévios programados. Probabilidades: uma série de acontecimentos aleatórios que levam ou não a um ponto qualquer. Eu aqui pendurando roupas no varal, ele lá naquele domingo me contando que queria algo escrito sobre si. Quais as chances?

    Nenhuma, imagina, nenhuma vez a tia me deixou ficar no mesmo quarto, comer no mesmo cômodo dos primos: você bebia da mesma caneca que sua mãe doente. E naquele dia – e agora o suspiro pesava tanto que escorria – eu descobri o preconceito, sabe? Eu achei que ia morrer. Faz tempo, muito tempo. Anos. Ou foi ano passado que ele me contou? Por quê demorei tanto para escrever algo sobre isso? Se você – qual a probabilidade? – se você fosse um escritor (me espiava com dureza) bem que podia escrever sobre minha história. Dizer que fui embora de lá assim que pude, que vim pra São Paulo trabalhar, que casei, que a mulher saiu na mesma corrente que o álcool entrou, que cai tantas vezes e tantas acordei no corredor do pronto-socorro e nunca, nunca falei pro povo de lá. Quando ligo, digo que tá tudo bem, as crianças tão crescidas, o trabalho é duro, mas não falta. Não falo da desgraça, que não vou dar gosto pra nenhum filhodaputa pensar que eu fui feito pra morrer.

    Desligo o computador depois de ver o número de mortos pelo vírus hoje. Os olhos cansados de telas, o calor atravessando a noite. Onde estará Wellington? Geraldo? Plínio? O que aconteceu depois que encontrou apoio do centro de acolhida? Não falei que era escritor, não me ofereci para fazer um livro sobre sua vida. Não sei por onde anda e me envergonho de não lembrar seu nome. Ainda pretendo recuperar com mais paciência sua história, mas deixo já essas pistas de que, um dia, dadas todas as possibilidades, nos encontramos e você pediu para juntar as letras que compusessem uma prova gráfica de sua existência.


terça-feira, 15 de setembro de 2020

Chevening Application fase 1: redações

Caros leitores e caras leitoras,

Bem vindos/vindas de volta! 

No último post, deixei um alerta sobre as inscrições Chevening, que abriram em 03/09/2020 e vão se encerrar em 03/11/2020. Também comentei brevemente sobre as etapas do processo seletivo e prometi voltar para contar minha experiência na etapa 1, focando na elaboração das redações sobre liderança, networking, escolha dos cursos e plano de carreira.

Pois bem. Aqui estou. Vou começar dizendo que não passei de primeira. Fui reprovada logo na triagem. Super frustrante! Já escrevi sobre isso nesse post aqui: Frustração e alegria. Mas, usei isso como aprendizado, melhorei bastante e fui com tudo na segunda tentativa, quando fui bem sucedida :)

Então, considerando as minhas experiências de fracasso e sucesso, o que melhorei de uma application para outra, separei algumas dicas para você. 

1) Tenha foco: saiba o que você quer, porquê você quer, como pretender concretizar. O Chevening procura jovens sonhadores, apaixonados, líderes, com energia e garra, e também com um plano de carreira em mente, sonhos de curto, médio e longo prazo. Na minha primeira tentativa eu não tinha foco algum. Eu estava na verdade tentando fugir de um ambiente que me deixava infeliz. Um exemplo do que eu fiz de errado: não justifiquei bem os cursos que escolhi porque nem eu mesma sabia o porquê das escolhas.

2) Dedique tempo: comece a sua inscrição com antencedência. Entre no site Chevening, se familiarize com os formulários. Invista tempo também procurando potenciais cursos e universidades no UK. Comece o quanto antes para fazer tudo isso com calma, atenção, sem pressa.  

3) Faça e refaça: escreva as suas redações e depois releia, reorganize, reescreva quantas vezes forem necessárias para deixá-las fortes e convincentes. Especialmente se você, assim como eu, tem dificuldade para escrever (ok, escrevo uma vez por mês no blog, mas não porque sou a escritora nata e sim porque quero melhorar minhas habilidades de comunicação escrita ^^).

4) Peça ajuda: procure por pessoas empolgadas e que já vivenciaram a experiência de um intercâmbio. Eu contei com a ajuda de um amigo indiano, que conheci nos Jogos Paralímpicos do Rio. Ele já tinha ganhado bolsa de mestrado em engenharia aeroespacial na Itália. Foi super querido e revisou meus textos, me deu dicas de como escrever melhor, além de me treinar para a entrevista. Se você não conhece uma pessoa assim, procure um Chevening Alumni, no Brasil ou fora. Todos, absolutamente todos, os alumni que eu conheço (e não são poucos) teriam o maior prazer de orientar um candidato. Deixe um comentário aqui no blog ou me chame no Twitter (@silvajacqueline) se quiser o apoio de um alumni, que poderei ser eu mesma (com prazer) ou algum dos meus colegas.

5) Convença a si mesmo: para mim essa foi a etapa mais importante. Eu não me via como líder. Eu não sabia que era boa em networking. Tiver que encontrar tudo isso em mim, convencer a mim mesma. Depois que me convenci, consegui elaborar textos objetivos e convincentes.

6) Keep it simple: ao escrever as suas redações, será necessário explicar como você atende os requisitos de liderança e networking. Na minha cabeça, eu teria que usar exemplos mirabolantes e complexos. Eu achava que eu tinha que ser tipo a Greta (aquela adolescente ativista das causas ambientais) ou a Marielle (dispensa explicações) para ser aprovada. Mas ao longo da jornada descobri que liderança e networking também estão nos detalhes e nas coisas simples.

No meu próximo post, ainda teremos 17 dias para o encerramento das inscrições. Caso até lá você ainda não tenha conseguido avançar, se inspirar e ter ideias, cola aqui de novo porque eu vou postar uma das minhas redações. O conteúdo vai te ajudar a ter exemplos bem legais sobre a dica 6.


Boa sorte e até a próxima.