quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Por onde anda

Romuald Hazoumé
Romuald Hazoumé
 

    Acaso um nome brota entre a pilha de louça suja que separo sobre a pia. Logo afogo a lembrança entre as bolhas de sabão, mas o nome se subleva e faz crescer sua voz de dentro do copo: fale de mim. Deixo para outro momento, quem sabe entre uma aula e a entrega de um trabalho. Ali, límpido no prato vazio, o nome mais uma vez se repete e se reflete: fale de mim. Era Sebastião? Era José? Almir? Que seja Almir, por agora, esse sujeito cheirando à álcool e que insiste em me abraçar enquanto fala. Escuto porque sou de escutar e porque não posso sair de onde estou, espero alguém.

    Estava ali na porta do teatro, peça terminada, mãos cheias de cenários, figurinos, uma garrafa. Muito calor, não é? Sim, aceno com a cabeça. Vou te contar. Não conte, nada, Sérgio (era Sérgio), agora não posso parar para anotar, tem o quintal a ser limpo e ainda quero ver um episódio daquela série. Mas Luís (ou era Luís?) não quer esperar, quer dizer: vim parar aqui por conta do trabalho. Eu também, afirmo. Eu sou lá de São Paulo, do extremo sul, perto da represa, conhece a represa? Onde prendem a água toda, conhece? É lá, na beira, sempre na beira. Aí o sujeito me contratou pra fazer um serviço de pedreiro e eu vim, comecei lá o trabalho, mas aí cheguei meio virado um dia e não gostei que o sujeito se engraçou comigo. Gosto dessas intimidades, não.

    Seu rosto pausou longo tempo no meu, o braço tocando com força meus ombros. Você é daqui? Não, também sou de São Paulo, mas já morei aqui. Eu não sou de São Paulo, eu sou da Paraíba.

    Chega, não quero repetir agora tudo o que me falou Pedro naquela tarde, nem quero pensar mais se esse era mesmo o nome dele. Não agora. Preciso terminar um projeto ainda hoje, estão me cobrando: fale de mim. Então fala, como era na Paraíba? Era eu e mãe e meus irmãos. Eu só de criança. Eu e mãe de grude, bebendo da mesma água, dormindo de mesmo quarto, tossindo no mesmo ritmo. Mesmo de olhos fechados, Alexandre apertou os músculos do rosto para conter o choro, que represou a água e deixou escapar apenas um longo suspiro: minha mãe morreu porque tossia muito e fui morar com minha tia. Um cachorro grande e feliz passou cheirando a perna de Armando, no que foi retribuído com afagos e voz fina. O rabo do bicho se agitava tão rápido quanto as emoções do narrador, que voltava a suspirar: eu não sei escrever direito, não deu tempo e eu não gostava da escola. Se eu soubesse, sabe?, se eu fosse assim um poeta, um escritor, eu ia escrever um livro contando da minha vida.

    Enquanto lembro das mãos calejadas dele, tão diferentes das minhas que agora lavam as máscaras de pano, uma mulher está no carro, prestes a dar a luz; neste momento uma senhora se despede da amiga na porta da igreja, deus lhe proteja. Neste momento, a futura avó, afobada, percebe um inseto que entrou pela janela de vidro. A senhora da igreja se lembra de avisar à amiga que não se esqueça da mudança de local da próxima reunião. Enquanto afogo uma máscara azul no balde com água sanitária, a motorista e futura mãe de uma mãe, sacode o braço para espantar o inseto, sem perceber que uma senhora de saia longa começa a atravessar a rua na diagonal. Nesse momento a filha grita o parto, o carro se aproxima, a senhora olha o céu e a amiga a chama de volta, mostrando a carteira esquecida: não é hoje que vou embora, se diverte a senhora, sem ver o carro que passa na rua. Não entendo de destino, em acontecimentos prévios programados. Probabilidades: uma série de acontecimentos aleatórios que levam ou não a um ponto qualquer. Eu aqui pendurando roupas no varal, ele lá naquele domingo me contando que queria algo escrito sobre si. Quais as chances?

    Nenhuma, imagina, nenhuma vez a tia me deixou ficar no mesmo quarto, comer no mesmo cômodo dos primos: você bebia da mesma caneca que sua mãe doente. E naquele dia – e agora o suspiro pesava tanto que escorria – eu descobri o preconceito, sabe? Eu achei que ia morrer. Faz tempo, muito tempo. Anos. Ou foi ano passado que ele me contou? Por quê demorei tanto para escrever algo sobre isso? Se você – qual a probabilidade? – se você fosse um escritor (me espiava com dureza) bem que podia escrever sobre minha história. Dizer que fui embora de lá assim que pude, que vim pra São Paulo trabalhar, que casei, que a mulher saiu na mesma corrente que o álcool entrou, que cai tantas vezes e tantas acordei no corredor do pronto-socorro e nunca, nunca falei pro povo de lá. Quando ligo, digo que tá tudo bem, as crianças tão crescidas, o trabalho é duro, mas não falta. Não falo da desgraça, que não vou dar gosto pra nenhum filhodaputa pensar que eu fui feito pra morrer.

    Desligo o computador depois de ver o número de mortos pelo vírus hoje. Os olhos cansados de telas, o calor atravessando a noite. Onde estará Wellington? Geraldo? Plínio? O que aconteceu depois que encontrou apoio do centro de acolhida? Não falei que era escritor, não me ofereci para fazer um livro sobre sua vida. Não sei por onde anda e me envergonho de não lembrar seu nome. Ainda pretendo recuperar com mais paciência sua história, mas deixo já essas pistas de que, um dia, dadas todas as possibilidades, nos encontramos e você pediu para juntar as letras que compusessem uma prova gráfica de sua existência.


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