quarta-feira, 30 de maio de 2018

o constante nocaute


- qual a sua opinião sobre a greve dos caminhoneiros?

- greve é sempre algo bom.

- bom por quê?

- porque tem trabalhador que parece com a gente e está tão lascado quanto.

- mais lá tem patrão.

- ué aqui no mercadinho da esquina também tem e ele não pode fazer greve?

- mas é diferente.

- estamos falando do mesmo nível de patrão.

- nada a ver.

- por quê?

- patrão não faz greve, faz locaute e é contra a lei.

- nocaute?

- não fia é locaute.

- sei.

- não acredita? assisti a esses vídeos aqui.


uns minutos depois.


- assistiu?

- sim.

- e aí?

- a opinião não mudou.

- como assim???

- não viu os caras.

- é eu vi, são bem diversos.

- ainda está sem TV.

- sim.

- é terrível ficar sem TV, a gente não sabe o que se passa no mundo.

- pois é. Mas ainda tem a internet.

- não é a mesma coisa.

- talvez não. Pra uns a TV é melhor, só diz o que gente não quer ver.

- os caminhoneiros querem o caos e o governo só fechou acordo com patrão.

- li algumas coisas sobre, mas os caminhoneiros autônomos não aceitaram.

- sim. Mas vai gerar o caos, já pensou todo mercado sem produtos. Eles estão pedindo intervenção militar não dá para acreditar nisso?

- a maioria desconhece a ditadura civil militar. Não apoio a intervenção militar no RJ e não será para o país que vou apoiar , mas tem que compreender que nenhum movimento será uma unanimidade politizada. Outra tem caminhoneiro contra a globo e que viveu a ditadura, também quem se posicione contra os reacionários e político como bolsonada.

- não. Isso vai ser o caos.

- já está o caos, olha os preços das coisas, reforma trabalhista, lula preso.

- mas greve com patrão não está certo.

- tem autônomos e precarizados no meio.

- vou explicar. Greve tem pautas que contempla a todos. Então essa não pode ser legítima.

- entendo. Quando os professores fazem greve para vetar a reforma da previdência referente apenas ao servidor municipal isso contempla a todos?

- de certa forma sim.

- por quê?

- ué professor precarizado piora o ensino público.

- e o caminhoneiro autônomo que passa noites sem dormir e corre risco de causar a própria morte e vários acidentes? E o petroleiro que fica nas estações correndo risco de vida, o agente operacional que está sujeito a todo tipo de situação e acidentes, e as domésticas, os pedreiros e mestres de obras que gastam a vida no trabalho árduo e milhares de trabalhadores que deixam de comprar o básico para se alimentar para pagar mais caro nos combustíveis -  do ônibus inclusive com aumento das passagens, no gás de cozinha, na conta de luz eteceteras.

- é. pensando assim é muito generalista. mais ainda são coisas distintas?

- o que?

- ainda é locaute porque faz uso do direito de greve para benefício próprio.

- sim.

- mais ainda tem o nocaute.

- nunca ouvi dizer.

- nocaute é quando os patrões de patrões de todos os patrões torna-se um burguês e com manipulação faz esforços políticos e usa recursos públicos para mudar a política de preços do que eu, vc, o caminhoneiro, o petroleiro e  todos milhares de trabalhadores pagam, inclusive gás de cozinha, combustíveis etc.

- é mais ainda é locaute.

- vai fazer o que mais tarde ou amanhã?

- nada. vou ficar em casa e aproveitar a emenda de feriado,  abastecer no posto pra ter uma reserva, ir ao supermercado, descansar e assistir TV.

terça-feira, 22 de maio de 2018

A mancha

Eu comecei a terminar de ser criança no dia em que vi a mancha. 
A mancha em formato de lua, atrás da orelha esquerda do Jordão. 

O amigo Jordão. 

O Jordão que sempre estava, 
mas nunca ficava, 
jamais se demorava. 
O Jordão que me olhava, mas nunca me via, 
o olhar fugidio de quem queria mas não podia. 
Jordão, o amigo eterno de minha mãe. 

Amigo, vejam só, o amigo de minha mãe. 

Naquele dia, 
ao se despedir como sempre, 
ele se virou como nunca.
E foi assim que eu vi.

E quando vi a mancha, em forma de lua, atrás da orelha esquerda, senti súbito minha mão saltando célere pra trás de minha própria orelha esquerda, pousando sobre a minha própria mancha em forma de lua, que eu achava 

- oh, céus, eu achava - 

que era só eu no mundo quem tinha. 

domingo, 20 de maio de 2018

¿Quién eres?

Oi, eu sou a Dolores. Pediram pra me apresentar. Mas logo eu, que não tenho nada pra falar? Sou Dolores, que era para ser Maria das Dores, mas minha mãe achou um nome triste e acabou mudando para Dolores.

Tenho 50 anos. O que eu vivi mesmo foi os últimos dez, depois que eu me livrei daquele traste. Quando eu vejo mocinha nova se engraçando por aí dá até um aperto. Eu casei com 22, vestido branco, véu, grinalda, meu irmãozinho todo arrumadinho pra levar as alianças até o altar. Depois um belo churrasco pra vizinhança toda!

Bonito, né? Nessa época o traste ainda valia alguma coisa. Daí já veio falando em mudar para São Paulo, que ia ser melhor, que a gente ia ganhar dinheiro e melhorar de vida. Eu fiquei contrariada, mas já estava esperando meu filho mais velho. Achei que ia ser melhor pro menino.

Chegando aqui alugamos um quartinho, ele arrumava uns bicos de pedreiro e a vida foi engrenando. Logo meu menino nasceu e pra ajudar nas despesas eu comecei a pegar uns servicinhos. Fazia faxina, manicure, vendia Avon, pegava umas encomendas de doce, salgado… Tudo coisa que eu já fazia desde menina, mas agora até me pagavam.

O problema é que quando o dinheirinho começou a entrar o traste começou a ficar preguiçoso. Eu tinha que cuidar da casa, trabalhar e cuidar do menino, que logo ganhou um irmãozinho. Quando o traste arrumava uns bicos chegava em casa e se jogava no sofá. Dizia que o serviço era pesado. E o meu serviço, era o que?

Eu criei meus filhos com rédea curta. De tranqueira já bastava o pai, que quando não estava na frente da televisão estava no bar. Ainda me convenceu a engravidar de novo, pra tentar uma menininha. O bom é que pelo menos daí nasceu minha caçula, que também criei bem pertinho de mim, porque a meninada da vizinhança era louca para se perder na vida. Nela eu nunca bati, mas vontade às vezes não falta, pra ver se entra alguma coisa naquela cabeça dura!

Como o tempo passa! De repente eu já estava com 30 anos. Queria ter 30 anos com a cabeça que eu tenho hoje. Naquela época eu estava cansada. Trabalhando que nem uma doida, criando 3 filhos e sustentando aquele vagabundo que ainda ficava se engraçando com a garçonete do bar.

Não vou falar mal do pastor da igreja que eu ia. Muitas vezes ele era a única pessoa que eu tinha pra desabafar. Mas foi ele que fez minha cabeça pra continuar casada, que homem é assim mesmo, que ia rezar pra ficar tudo bem. Eu fui deixando tudo como estava, pensando que as crianças não podiam crescer sem pai. Era melhor não ter pai do que ter aquele traste dentro de casa. Mas agora já passou.

A gente acha que a vida é pra sempre e quando vê já está velha. Tomei um susto quando meu mais moço disse que ia casar. Logo foi o mais velho e um pouquinho mais tarde minha caçula apareceu com o namorado em casa pedindo a mão dela. Até chorei, vê se pode! Minha menininha!

Ficou um vazio tão grande em casa. Só eu e aquele traste, que não tinha mais com quem implicar e depois de velho deu de me tratar mal. Era só o que faltava! Pois não tinha nada mais pra me segurar naquela casa. Fiz minha mala, peguei meu dinheirinho que eu juntei com tanto suor e fui embora. 

Acredita que o traste arrumou um escândalo na porta de casa? Me chamando de louca, de irresponsável, até de vagabunda! E o pastor que não pense que eu não sei de que lado ele ficou. Fofoca corre rapidinho e eu nunca mais fui naquela igreja.

Não vou dizer que foi fácil. Não foi, não. Mas o que é fácil nessa vida, me diz? Só sei que já faz 10 anos que eu estou vivendo minha vida! Como o tempo passa! Queria ter 30 anos com a cabeça que eu tenho hoje. Continuei fazendo meu servicinho aqui e alí, só que agora sem as crianças e sem aquele traste pinguço pra sustentar.

A vida é esse negócio que quando a gente vê já passou. Eu fiquei tanto tempo ouvindo conselho errado e quando tomei coragem de fazer o que eu queria é que eu comecei a aproveitar a vida. E hoje se alguém quiser me criticar pode começar pagando as minhas contas.

Mas é isso. Pediram pra me apresentar. Meu nome é Dolores, mas eu não tenho nada pra falar, não.

sábado, 12 de maio de 2018

O pacote inteiro

Cresci em uma casa de ateus, mas apaixonados por arte sacra. Tinha um altar, várias imagens e quadros. Sempre tinha na minha direção o olhar doce de alguma estátua de Virgem ou Santa, até no meu quarto.
Eu não sabia o significado, mas como cresci com isso sempre gostei dessas imagens.

Um dia caminhava pelo centro quando vi uma estátua maravilhosa, não sei qual era, mas talvez fosse a Virgem da Consolação, lembro dos vários anjos de cerâmica ao redor dela. Era uma estátua grande, talvez sobrevivente de alguma igreja e o preço não era alto, menos de mil reais. 

Paquerei essa estátua durante meses, pensava que um dia compraria e a levaria para casa, até que um dia caminhando por ali caiu uma chuva pesada, a rua era uma ladeira e a água corria na calçada como se fosse um rio. O dono do antiquário me viu tentando escapar da água e me disse para entrar na sua loja, onde estava a estátua. Sentei na sala que tinha ali e fiquei um bom tempo conversando com ele, comentei minha vontade de levar a estátua da Virgem, e ele me perguntou se eu era católica. Disse que era batizada, mas não fui educada na igreja, pelo contrário, eu nem sabia o nome da estátua que queria. Ele me disse que era a Nossa Senhora da Consolação.

Ah, eu acertei! 

Voltei a comentar meu interesse nela e ele respondeu:

-Vai levar o pacote todo?

É, quando puder, eu levo.

-Ela tem um bom tempo aqui e já foi devolvida umas quatro vezes, vai e volta, mas eu aviso que não devolvo o dinheiro.

E por que devolvem ela?

-Porque é o pacote inteiro.

Mas o que é o pacote inteiro?

-É uma estátua antiga, quase cem anos. A igreja foi demolida e alguém a comprou, depois veio parar aqui. Não é uma peça de decoração, é uma peça de devoção e isso carrega muitas coisas, você pode imaginar quantas pessoas, durante cem anos, ajoelharam e pediram misericórdia? Algo deve ter ficado ali, na estátua, e as pessoas levam sabendo disso, mas depois reclamam.

Mas reclamam do quê?

-Ah, elas dizem que depois que levaram a estátua escutaram vozes na casa, pessoas chorando, rezando, enfim, como se estivessem em uma igreja, sabe aquele silêncio de igreja, mas que você escuta um zum-zum de gente rezando? É isso.

A estátua vem com fantasmas?

-Não sei se são fantasmas, cada um dá uma explicação, dizem que é energia, um pouco das pessoas que tanto pediram ajuda a estátua, podem ser almas que se apegaram tanto que não soltam mais. Arte sacra é assim, às vezes nas mãos de ateus e às vezes nas mãos de devotos, mas antes disso era objetos de devoção de muitas pessoas. E o que essas estátuas devem escutar? Quantas pessoas ajoelham e contam suas tragédias? Tudo vai ficando no ar, ao redor da estátua.

E aqui não aparecem fantasmas?

-Nunca vi. E só fico aqui durante o dia, é muito barulho externo, não escuto nada nem vi nada estranho, mas talvez durante a noite seja possível escutar algo.

E seria melhor se ela fosse levada à casa de algum católico, alguém que seja devoto?

-Já tentei, mas ela foi devolvida. Esteve em quatro casas, três eram de apaixonados por arte sacra e um era devoto dela, mas acabou devolvendo porque disse que apareceram sombras e ele rezou, rezou, e não foram embora, então trouxe a estátua de volta.
Sempre digo isso, é uma estátua, mas leva o zum-zum de uma igreja, de tantas missas, tantos pedidos, tantas orações. 

Minha avó dizia a mesma coisa, guardava suas imagens de santos e santas e não dava para ninguém, mas sempre dizia que gostaria que ficassem em  família, infelizmente, por esses azares da vida, foram cair nas mãos de uma neta indiferente, que para está altura já deve ter jogado tudo no lixo, apesar dos apelos das tias. 

No desespero almas grudam no que conhecem e a Nossa Senhora da Consolação é uma figura acolhedora, deve arrastar um sem fim de devotos.

Fiquei olhando para a estátua e desisti de comprar. O dono tinha razão, é um pacote inteiro, não é uma peça de decoração, carrega todas essas energias da qual foi objeto toda sua vida. E não se pode culpar ninguém, também já me vi ajoelhada pedindo algo a uma Santa, também joguei um pouco de minha energia no ar que a envolvia.

E de repente o dono me disse:

-Tem horas que não quero vender, acho que ela ficou bem aqui, sossegada, talvez estava cansada de tantos pedidos, e parece que gosta daqui, ninguém a incomoda aqui.

Olhei de novo e dei razão a ele, realmente ela parecia ter um ar tranquilo, sereno, ali no meio da sala, em um antiquário no centro.

Seres humanos perturbam tudo ao seu redor, desde a natureza até os santos, todos precisamos folga dessa humanidade neurótica.

Objetos, estátuas, imagens, tudo se contamina com a presença humana, com suas descargas energéticas desequilibradas, seus impulsos histéricos.

A estátua em si é maravilhosa, mas vem com essa energia humana, esses gritos abafados, paciência.

De vez em quando eu passo na mesma rua, vou lá dar uma olhada e digo a Nossa Senhora da Consolação, você é maravilhosa, uma das mais lindas que já vi e vou embora.

Queria ela na minha casa, mas sem todas essas pessoas que ela carrega ou esses restos de energia. 

E conheço bem o coração humano, sei que é uma energia pesada porque poucas pessoas ajoelham e agradecem o milagre, o que elas fazem é se desesperar e pedir as coisas, mas na hora de receber nem lembram a que santo pediram. Sei de todas as correntes de dor e angústia que o ser humano carrega e tenta jogar em cima dos outros.

É uma linda estátua, pena que esteja tão saturada com a energia humana, ela não merecia isso. Espero que encontre um pouco de paz naquele antiquário, longe do desespero humano.



Iara De Dupont

terça-feira, 8 de maio de 2018

A Cilada de exceção e a falsa superação

  Todo mundo já ouviu algumas histórias de superação, jornal, facebook, e-mail, pessoalmente, amigo do amigo...

Tem aquele lá, que tinha tudo para dar errado na vida, a história começa com enxurrada de desgraça, nasceu sem pernas e mãos, a mãe abandonou, o pai morreu, andava 20 km a pé pra chegar à escola, trabalhava e cuidava de dez irmãos, a casa pegou fogo, perdeu tudo. Mas a gente escuta sabendo que no final a reviravolta vem, e o seu esforço será recompensado.
  A moral é tentar te levantar, serve de chacoalhão e te diz que por pior que você esteja, tem como vencer e se ele conseguiu, com um pouco de esforço, você também pode.
É, a gente pode, mas não é com pouco esforço não, é com muito, e com sorte também, por que tem coisas que todo esforço e vontade do mundo não bastam.

 Essas histórias sempre me irritam porque são a história na minoria, de um em um milhão, elas vem sem o número de candidatos por vaga. Não contadas, existem mil histórias de quem deu errado, mesmo tentando, mesmo fazendo quase o impossível.

  Essas histórias criam ilusões que podem levar gente pro abismo, por que falhar nem sempre é culpa nossa, tem gente demais no mundo, tem sorte, tem berço, tem coisa de mais em jogo, não existe justiça cósmica e o universo está se lixando pra você.
  
Arrisque, tente, mas por favor, saiba suas chances e não compre um bilhete de loteria com certeza que vai vencer.
  Saiba a história da maioria, da grande maioria, os finais podem ser tristes, mas são reais e nada te fará mais forte do que boas doses de realidade.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

poe-ser

queria fazer poesia
como quem fere
rasga
a efêmera matéria
trazendo à superfície
o sangue
e a foice
as vísceras
e vértices
do que constitui
as gentes.