sábado, 12 de maio de 2018

O pacote inteiro

Cresci em uma casa de ateus, mas apaixonados por arte sacra. Tinha um altar, várias imagens e quadros. Sempre tinha na minha direção o olhar doce de alguma estátua de Virgem ou Santa, até no meu quarto.
Eu não sabia o significado, mas como cresci com isso sempre gostei dessas imagens.

Um dia caminhava pelo centro quando vi uma estátua maravilhosa, não sei qual era, mas talvez fosse a Virgem da Consolação, lembro dos vários anjos de cerâmica ao redor dela. Era uma estátua grande, talvez sobrevivente de alguma igreja e o preço não era alto, menos de mil reais. 

Paquerei essa estátua durante meses, pensava que um dia compraria e a levaria para casa, até que um dia caminhando por ali caiu uma chuva pesada, a rua era uma ladeira e a água corria na calçada como se fosse um rio. O dono do antiquário me viu tentando escapar da água e me disse para entrar na sua loja, onde estava a estátua. Sentei na sala que tinha ali e fiquei um bom tempo conversando com ele, comentei minha vontade de levar a estátua da Virgem, e ele me perguntou se eu era católica. Disse que era batizada, mas não fui educada na igreja, pelo contrário, eu nem sabia o nome da estátua que queria. Ele me disse que era a Nossa Senhora da Consolação.

Ah, eu acertei! 

Voltei a comentar meu interesse nela e ele respondeu:

-Vai levar o pacote todo?

É, quando puder, eu levo.

-Ela tem um bom tempo aqui e já foi devolvida umas quatro vezes, vai e volta, mas eu aviso que não devolvo o dinheiro.

E por que devolvem ela?

-Porque é o pacote inteiro.

Mas o que é o pacote inteiro?

-É uma estátua antiga, quase cem anos. A igreja foi demolida e alguém a comprou, depois veio parar aqui. Não é uma peça de decoração, é uma peça de devoção e isso carrega muitas coisas, você pode imaginar quantas pessoas, durante cem anos, ajoelharam e pediram misericórdia? Algo deve ter ficado ali, na estátua, e as pessoas levam sabendo disso, mas depois reclamam.

Mas reclamam do quê?

-Ah, elas dizem que depois que levaram a estátua escutaram vozes na casa, pessoas chorando, rezando, enfim, como se estivessem em uma igreja, sabe aquele silêncio de igreja, mas que você escuta um zum-zum de gente rezando? É isso.

A estátua vem com fantasmas?

-Não sei se são fantasmas, cada um dá uma explicação, dizem que é energia, um pouco das pessoas que tanto pediram ajuda a estátua, podem ser almas que se apegaram tanto que não soltam mais. Arte sacra é assim, às vezes nas mãos de ateus e às vezes nas mãos de devotos, mas antes disso era objetos de devoção de muitas pessoas. E o que essas estátuas devem escutar? Quantas pessoas ajoelham e contam suas tragédias? Tudo vai ficando no ar, ao redor da estátua.

E aqui não aparecem fantasmas?

-Nunca vi. E só fico aqui durante o dia, é muito barulho externo, não escuto nada nem vi nada estranho, mas talvez durante a noite seja possível escutar algo.

E seria melhor se ela fosse levada à casa de algum católico, alguém que seja devoto?

-Já tentei, mas ela foi devolvida. Esteve em quatro casas, três eram de apaixonados por arte sacra e um era devoto dela, mas acabou devolvendo porque disse que apareceram sombras e ele rezou, rezou, e não foram embora, então trouxe a estátua de volta.
Sempre digo isso, é uma estátua, mas leva o zum-zum de uma igreja, de tantas missas, tantos pedidos, tantas orações. 

Minha avó dizia a mesma coisa, guardava suas imagens de santos e santas e não dava para ninguém, mas sempre dizia que gostaria que ficassem em  família, infelizmente, por esses azares da vida, foram cair nas mãos de uma neta indiferente, que para está altura já deve ter jogado tudo no lixo, apesar dos apelos das tias. 

No desespero almas grudam no que conhecem e a Nossa Senhora da Consolação é uma figura acolhedora, deve arrastar um sem fim de devotos.

Fiquei olhando para a estátua e desisti de comprar. O dono tinha razão, é um pacote inteiro, não é uma peça de decoração, carrega todas essas energias da qual foi objeto toda sua vida. E não se pode culpar ninguém, também já me vi ajoelhada pedindo algo a uma Santa, também joguei um pouco de minha energia no ar que a envolvia.

E de repente o dono me disse:

-Tem horas que não quero vender, acho que ela ficou bem aqui, sossegada, talvez estava cansada de tantos pedidos, e parece que gosta daqui, ninguém a incomoda aqui.

Olhei de novo e dei razão a ele, realmente ela parecia ter um ar tranquilo, sereno, ali no meio da sala, em um antiquário no centro.

Seres humanos perturbam tudo ao seu redor, desde a natureza até os santos, todos precisamos folga dessa humanidade neurótica.

Objetos, estátuas, imagens, tudo se contamina com a presença humana, com suas descargas energéticas desequilibradas, seus impulsos histéricos.

A estátua em si é maravilhosa, mas vem com essa energia humana, esses gritos abafados, paciência.

De vez em quando eu passo na mesma rua, vou lá dar uma olhada e digo a Nossa Senhora da Consolação, você é maravilhosa, uma das mais lindas que já vi e vou embora.

Queria ela na minha casa, mas sem todas essas pessoas que ela carrega ou esses restos de energia. 

E conheço bem o coração humano, sei que é uma energia pesada porque poucas pessoas ajoelham e agradecem o milagre, o que elas fazem é se desesperar e pedir as coisas, mas na hora de receber nem lembram a que santo pediram. Sei de todas as correntes de dor e angústia que o ser humano carrega e tenta jogar em cima dos outros.

É uma linda estátua, pena que esteja tão saturada com a energia humana, ela não merecia isso. Espero que encontre um pouco de paz naquele antiquário, longe do desespero humano.



Iara De Dupont

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