quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Narrativa do silêncio

Tem momentos em que a inspiração para escrever flui livremente, fica até difícil acalmar as ideias e organizar as palavras. Em outros, parece haver um vazio, como uma nuvem silenciosa que fica parada sobre a cabeça sem nem trovejar e nem dar espaço para o sol aparecer. Tive várias ideias sobre o que escrever este mês. Foram insights nascidos a partir de documentários geniais que assisti, de livros emancipadores que li, fotos antigas de família que resgatei, retratadas em uma época que eu não era nem uma previsão de futuro. Fiz planos de pesquisar e escrever sobre a Guerra de Canudos e Antônio Conselheiro... peguei e guardei “Os Sertões” por três vezes, sem passar das primeiras páginas, e no caldo destes estímulos procurei a certidão de casamentos dos meus avós maternos dos quais percebo hoje, sempre me ocupei pouco.

“Minha [mãe] era paulista, meu [avô] baiano”, de Juazeiro. Nunca soube muito sobre ele, sei que era lavrador e descendente de espanhóis. Para além disso, o pouco que sei começa já na sua história conjunta com a minha avó, nascida em São Simão, interior de São Paulo, uma mulher negra, filha de uma geração de filhos de escravos. A certidão de casamento “refere e dá fé”, que a união civil se deu em 22 de outubro de 1938. Lembro de ouvi-la dizer algumas vezes, como se não se importasse muito, o preconceito implícito que pairava sobre seu casamento com um “homem branco de olhos claros”. De qualquer modo, não sei muito mais além disso, como por exemplo, como se conheceram, as dificuldades que enfrentaram, embora saiba que não foram poucas, pois eram muito simples, moraram por muito tempo em fazendas das quais meu avô tomava conta, tanto em São Paulo quanto no Paraná, e nas quais minha avó trabalhava nas colheitas. Pelo que sei, foram muito felizes e minha avó sempre expressou grande saudade da convivência dos dois, já que ele morreu em 04 de janeiro de 1965 quando já moravam no núcleo urbano, em Guarulhos, onde eu nasci. Ainda que os filhos - com exceção de minha mãe que era criança - já fossem adultos, minha avó criou netos e bisnetos, lavando roupa para fora. Escrever? Apenas o seu nome, e em uma grafia muito precária.

Olhar para essa história me fez pensar na ausência da narrativa escrita, do quanto perdemos de nossas origens em razão da morte daqueles que as poderiam tão bem relatar, mas que não puderam a escrever antes, como um registro histórico. Minha avó morreu já em 2009, com 98 anos, quando morávamos em Curitiba e, embora tenha vivido muitos anos ao seu lado, ela não falava muito do seu passado. Hoje penso isso a partir do silenciamento da mulher, sobretudo a mulher negra e pobre, como era o seu caso. Uma das lembranças mais claras que tenho, é que ela sempre falou muito baixo, pra dentro, dizendo como se não quisesse dizer, guardando tudo para si, e o que sempre pareceu um traço de personalidade, hoje pra mim soa mais como a internalização de uma compreensão do papel da mulher que foi construída ao longo de uma trajetória em que sua voz não era solicitada, pelo contrário, era silenciada.

Foi silenciada pelo pai, que como ela contava, era rígido e não a deixou frequentar a escola; silenciada pela obrigação de criar os irmãos quando sua mãe faleceu; silenciada pelo julgamento por se casar com um homem branco; silenciada inclusive na foto que ilustra este texto, expresso na tentativa de embranquecer sua pele negra retinta; silenciada quando não possuía meios de subsistir na metrópole a não ser lavando roupas em meio às frequentes crises de asma; silenciada em conjunto com uma massa urbana pobre que habitava os cortiços; silenciada pelas violências sofridas por filhos e netos; silenciada por não perceber que poderia sim, reclamar, ainda que uma vez ou outra.

Muito provavelmente esse não seria o resumo que ela faria de sua vida, é unicamente a minha percepção, conformada em um contexto completamente diferente daquele em que ela viveu, em uma tentativa de encontrar uma narrativa que dê conta dessas vidas que hoje se confundem a tantas outras situadas historicamente e que só fazem sentido quando olhadas por esta perspectiva. Recontar (muito mal, reconheço) essa história me ocorreu quando assisti um documentário sobre Clementina de Jesus, “lida” como o “elo perdido entre a cultura brasileira e as raízes africanas”. Vejo muito de minha avó ali, suas histórias sobre as músicas cantadas nas fazendas, o costume do cachimbo partilhado na varanda, o “bater” as roupas no rio, o lenço na cabeça como proteção e respeito, entre uma gama de outros ritos, linguagens, costumes e modos de vida que foram se apagando no decorrer do tempo-história e que somente ela poderia narrar fidedignamente. Mas ouvindo Clementina falar, bem como as falas sobre Clementina, tive vontade de integrar a essa história afro-brasileira (que tem se tornado um dos achados mais bonitos da minha vida) a história da minha avó, e embora não tenhamos o privilégio de ouvi-la falar ainda hoje, talvez possa ser registrada através do meu olhar, de quem deseja que sua vida não seja apagada, na tentativa de oferecer, finalmente, direito à sua fala e toda potência que ela traz para os dias atuais, em que continuamos assistindo a mesma trajetória se impôr para muitas mulheres negras e pobres, cotidianamente silenciadas.

2 comentários:

  1. Fernanda, você tem a capacidade de trazer para uma narrativa uma mistura rara de força e sensibilidade. Ler seu texto me despertou a vontade de saber mais sobre a história da sua vó, e da minha vó, e de tantas outras mulheres, silenciadas há tanto tempo.

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    1. Obrigada, Carol! Vc sabe que é minha grande incentivadora pra essa nova fase, né?!

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