quinta-feira, 16 de julho de 2020

Estado de Pausa

Composição com o céu do relógio, e da floresta por Rene Magritte ...


    Agora os relógios podem parar seus ponteiros, essas lâminas fatiando pouco a pouco os futuros esquecimentos. Números, parem suas mudanças calculadas. A Terra piscando dias e noites não pode mais nos enganar. Anuncio a quem quiser: estamos vivendo um refrão. Pronto, podemos parar de fingir que não percebemos que, em algum lugar, o calendário engasgou e estamos presos no mesmo dia. Há dias. Não, não há dias, apenas um único dia contínuo. Eu sei, você sabe: estamos morando em uma data que tem se repetido. E se você insiste em não ver que a vida gaguejou, tire pelas notícias. A qualquer momento policiais atacam a população negra pelo mundo afora. A qualquer momento membros do governo dizem alguma bobagem capaz de levar as pessoas a morte. A qualquer momento o fim do mundo é notícia fresca.
     Estamos presos há tanto tempo (não se deixe hipnotizar pela linguagem, essa sereia) no mesmo dia, que já deixamos de escutar a voz de quem avisa Os absurdos cotidianos são imagens tão passageiras quanto um meme, uma sirene, uma propaganda subliminar. Baudelaire, na Paris do século XIX, já avisava que a paixão por uma passante era intensa na duração de alguns metros, até a moça dobrar a esquina. A novidade engolindo o novo, criando a fantasia de que os minutos avançam. E mais à frente Chico Buarque viu a mesma passante espelhadas nas vitrines. Mais uma demonstração de que estamos nos repetindo.
    Talvez você esteja pensando que estou entediado com a quarentena e não note as transformações. As vejo, claro: sei de nascimentos e mortes, de amores que explodem e se apagam feito estrelas. Porém, ainda assim, garanto que é um único e interminável dia que copia a si. E não falo de eterno retorno. Não falo da cobra mordendo o próprio rabo. Esse dia não retorna com pequenas metamorfoses nem nos convida ao aprendizado do que já foi. É EXATAMENTE o mesmo dia. Se ainda não te convenci, dou mais exemplos: nos últimos três meses (que só parecem três meses) já vi a atriz Ruth de Souza morrer, no mínimo, cinco vezes. Naná Vasconcelos também. E Umberto Eco, idem. Todos mortos com seus respectivos admiradores lamentando a perda mais e mais e mais uma vez. Até meu aniversário tem durado o que convencionamos chamar uma semana, com congratulações afetivas recorrentes. Agradeço, mas sei bem que todos nós estamos aniversariando a qualquer instante.
    Esse mito de Sísifo pode ser fruto do mundo capitalista e seu quintal: a Modernidade. Walter Benjamin deu a dica: um tempo vazio de experiências. Um tempo vazio de experiências. Um tempo vazio de experiências. De tão vazio, ribombando infinitamente. Aliás, ribombar é palavra tão antiga que agora retorna porque sabe que ainda é época dela. Sabe que essa espécie de feriado sem comemoração é um perene presente. Um presente sem nenhuma surpresa.
    Se o ofício do cronista é lidar com o dia a dia, como fica quando Cronos está sem fome e a horta das horas virou gramado? É como dizia Clarice Lispector ou qualquer mensagem recorrente das redes sociais: a história se repete como farsa. Depois como tragédia. E, finalmente, como GIF.

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