Agora
os relógios podem parar seus ponteiros, essas lâminas fatiando pouco a pouco os
futuros esquecimentos. Números, parem suas mudanças calculadas. A Terra piscando
dias e noites não pode mais nos enganar. Anuncio a quem quiser: estamos vivendo
um refrão. Pronto, podemos parar de fingir que não percebemos que, em algum
lugar, o calendário engasgou e estamos presos no mesmo dia. Há dias. Não, não
há dias, apenas um único dia contínuo. Eu sei, você sabe: estamos morando em uma
data que tem se repetido. E se você insiste em não ver que a vida gaguejou,
tire pelas notícias. A qualquer momento policiais atacam a população negra pelo
mundo afora. A qualquer momento membros do governo dizem alguma bobagem capaz
de levar as pessoas a morte. A qualquer momento o fim do mundo é notícia
fresca.
Estamos
presos há tanto tempo (não se deixe hipnotizar pela linguagem, essa sereia) no
mesmo dia, que já deixamos de escutar a voz de quem avisa Os absurdos
cotidianos são imagens tão passageiras quanto um meme, uma sirene, uma
propaganda subliminar. Baudelaire, na Paris do século XIX, já avisava que a
paixão por uma passante era intensa na duração de alguns metros, até a moça
dobrar a esquina. A novidade engolindo o novo, criando a fantasia de que os
minutos avançam. E mais à frente Chico Buarque viu a mesma passante espelhadas
nas vitrines. Mais uma demonstração de que estamos nos repetindo.
Talvez
você esteja pensando que estou entediado com a quarentena e não note as
transformações. As vejo, claro: sei de nascimentos e mortes, de amores que
explodem e se apagam feito estrelas. Porém, ainda assim, garanto que é um único
e interminável dia que copia a si. E não falo de eterno retorno. Não falo da
cobra mordendo o próprio rabo. Esse dia não retorna com pequenas metamorfoses
nem nos convida ao aprendizado do que já foi. É EXATAMENTE o mesmo dia. Se
ainda não te convenci, dou mais exemplos: nos últimos três meses (que só
parecem três meses) já vi a atriz Ruth de Souza morrer, no mínimo, cinco vezes.
Naná Vasconcelos também. E Umberto Eco, idem. Todos mortos com seus respectivos
admiradores lamentando a perda mais e mais e mais uma vez. Até meu aniversário tem
durado o que convencionamos chamar uma semana, com congratulações afetivas
recorrentes. Agradeço, mas sei bem que todos nós estamos aniversariando a
qualquer instante.
Esse
mito de Sísifo pode ser fruto do mundo capitalista e seu quintal: a Modernidade.
Walter Benjamin deu a dica: um tempo vazio de experiências. Um tempo vazio de
experiências. Um tempo vazio de experiências. De tão vazio, ribombando
infinitamente. Aliás, ribombar é palavra tão antiga que agora retorna porque sabe
que ainda é época dela. Sabe que essa espécie de feriado sem comemoração é um perene
presente. Um presente sem nenhuma surpresa.
Se
o ofício do cronista é lidar com o dia a dia, como fica quando Cronos está sem
fome e a horta das horas virou gramado? É como dizia Clarice Lispector ou qualquer
mensagem recorrente das redes sociais: a história se repete como farsa. Depois
como tragédia. E, finalmente, como GIF.
Intenso
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