O que me
exalta nas fotografias é o roubo — aquele roubo abrupto, resguardador,
defensivo — às forças expansivas do tempo. Na primeira, o olhar de quem teme o caráter
inaugural de todas as coisas. Na primeira, eu nada sabia de ti. Será possível que a criança já tudo saiba?Você parando na estrada para que eu
pudesse descer e vomitar o café da manhã. Eis a única lembrança que tenho de ti.
Na segunda, a velhice prematura, o cansaço que só os jovens conseguem
ter. Porque, pensando, eu era velho, velho, os meus
anos acumulavam-se num tempo indeciso, e estavam cheios de coisas monstruosas. Na
terceira.... na terceira sim eu sabia de ti, na terceira, sim, tu estavas. Era
eu, mas também eras tu. Um certo olhar resignado. Os caminhos que trilhavam tua
face, já insinuando-se na minha. Os cabelos que inexistiam em tua cabeça principiando
a inexistir na minha. Na terceira, já era indisfarçável. Na primeira, um rosto plano,
sem mácula, um olhar de quem parece querer fugir, de quem ainda está por se
habituar, de quem não conhece todas as instalações, de quem ainda precisa da
hospitalidade de anfitriões. Na segunda, pareço buscar por um inimigo, a guarda
sempre levantada à espera de um combate. O mundo mal se apresentou e parece já
ter se exaurido. Cansaço. Na segunda eu sinto cansaço. Cansaço e raiva.
Tampouco havia tu na segunda. Apenas na terceira. No princípio, um ódio por
cada sinal da passagem do tempo. A decrepitude é para os outros. Mas só na
terceira tu estás. Só com os primeiros sinais de minha decrepitude é que tu apareces.
E é na decrepitude que me aproximo de ti. Tu, a quem eu já conheci decrépito. Tu
e tuas marcas difusas em minha vida. Tu que nunca quis, sempre temeu deixar qualquer
vestígio em minha vida, nunca pôde ter controle sobre as marcas que deixaria na
terceira, em cada poro de minha face. Em cada esgar, em cada sorriso. E justo na
terceira, a primeira em que tu não podes alcançar, em que teu tempo já não intersecciona
com o meu. As idades apoiam-se na sua própria memória. Teu
nome não está em meu registro geral. Teu rosto sim. Na terceira, tu estás, com
tuas marcas indeléveis, como a dar uma piscada cúmplice aos que ainda lembram
de ti. O quanto de ti definiu o lugar que ocupo no mundo? O autobiógrafo é a vítima do seu crime.
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Nota: Os trechos em vermelho são extraídos de "Apresentação do rosto", de Herberto Helder, romance que motivou o presente texto.
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