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domingo, 16 de maio de 2021

Pequenas mortes



trecho de livro de artista: tadeu renato

*

FÍGADO


Meu pai tem essa mania de andar pela casa rindo, deixando o chinelo no caminho e lembrando histórias que jura minha participação, mesmo eu dizendo que não sei quem são as pessoas que ele narra, muito menos os lugares. Ele ri, diz que eu não lembro porque bebi um pouco e estou falando feito um bobo. Ri das nossas rimas, temos o mesmo nome. Ele e essa mania de fingir que não sabe que está morto. Ou estou meio bêbado e inventado uma história em que ele é que não reconhece as pessoas, os fatos, os espaços?  Vamos tirar uma foto para mostrar aos meus irmãos que você ainda está faminto, querendo aquele churrasco que prometemos quando você melhorasse. Meu pai ri da mania que eu tinha de ficar abrindo e fechando a porta só para ouvir o canto enferrujado das dobradiças e depois ri dos próprios gemidos que seu fígado o fazia disparar de hora em hora, alarme dolente que não deixava a esposa descansar. Nunca entendi o humor do meu pai.

                                           *                                      

RIM

 

Essa casa não é minha, como não foram minhas mãos que plantaram essa goiaba (explodindo de madura) que agora aspiro tentando tornar real seu sabor que não posso mais provar. Essa cama não é a mesma que tive por anos: precisei trocar depois da operação. Não é meu esse fígado filtrando meu tempo e já não são minhas as pedras malcheirosas que foram britadas pelo rim. Da mesma forma não são meus  esses grampos que costuravam o novo órgão até que ele se acostumasse com seu novo espaço. Guardei essas presas e as pedras em vidros que antes continham as ervas para banho. Espiei por muito tempo essas réstias que meu corpo expeliu, busquei seus formatos, os granulados das pedras prestes à se dissolverem em pó, o aço inoxidável que fez ponto em minha pele e ainda brilhando. Feita de terra, cismo, sou terra de onde brotam minérios. Dar à luz a plantas também seria um desejo, se eu pudesse, assim meus vasos não teriam secado enquanto estive internada.

Ainda sou interna de um corpo cansado, mantido de pé por 720 comprimidos mensais e muita água. Alcalina, disse a médica. Enfatizou: ALCALINA. Nascemos alcalinos e, velhas, somos cada vez mais ácidas. Preciso ser criança outra vez? Preciso morrer para isso? Pequenas mortes são o suficiente? Preciso voltar à água.

É de ondas esse sono que não me pertence, é resultado da medicação, acordo e durmo com a mesma displicência, seja noite ou dia. Um sono de peixe que dorme sem parecer. Imagens que não reconheço, lembranças que não tenho. Não são meus esses sonhos. São do rim que me habita. Acordo com um convicto desejo de despejar minhas pedras e grampos cirúrgicos no vaso da orquídea que perde a força. Peço licença para que ela me ensine a me acostumar com a morte.

 *

COLUNA

 

Tem que disseram quinze dias, cata suas coisas e deixa o barraco. Antes eu voava por cima das vielas e depois dançava com a chama das velas que acendem sempre na esquina. Agora não consigo mais, que minha coluna dói, fica me obrigando a rastejar e não tem jeito que me faça levantar a cabeça. Fosse por mim, arrancava essa cobra das minhas costas e usava para laçar meu filho e não soltar. Ele vai entrar por aquela porta mais uma vez, como tem feito toda noite, vai dizer meu nome, sorrir sua molecagem e querer se apagar, mas minha serpente vai segurar ele aqui: sai mais não, menino, lá fora é perigoso.

Tem que nem é de muito o que preciso colocar em caixa, a maior parte ficou na enchente dos dias e o resto eu poderia contar por anos à fio, sem parar para deitar, sem parar nas contas das dores, sem dar tempo pros remédios. Falaria até acabar o ar e ainda teria o que dizer do que tenho comigo, mas não gosto disso, de ficar olhando dentro do poço sujo: se está lá embaixo, a gente só traz pra cima em casa de incêndio ou sede sem fim. Já me basta ouvir meu filho entrando em casa toda note, chamando mãe com aquele sorriso debochado e não querendo esperar uma janta. Engole algo, menino, eu engulo comprimidos enormes e você não consegue nem engolir esse sangue todo saindo pela boca?

Tem que gritar desse jeito de arrebentar a porta a pontapé? Tem que ser polícia atirando sem piscar, abrindo buraco em você e nos seus amigos? Não consigo mais voar, prefiro entrar nos buracos do seu peito e ficar lá, escondida três semanas até que me esqueçam, até que eu durma quentinha aqui, entre os bichos de pelúcia que é só o que a mão pode tocar dos meus guardados. E quando a pílula explode dentro do meu estômago é que você entra sonhando meu sonho e parece tão bem, tão meu, tão teimoso que me dá vontade de te juntar todo, só que você sempre se parte e vai. E é por isso que não sei mais como se dorme bem.

 

- "Pequenas mortes" é como algumas culturas ameríndias se referem ao sono/sonhos.

 Essas prosas (contos?) são parte de um projeto que venho desenvolvendo a partir da escuta e reelaboração poética de sonhos alheios. 

 

domingo, 6 de dezembro de 2020

Onde vivem as decisões? Parte2

(você pode ler a primeira parte dessa história neste link: parte1, mas se tiver preguiça, pode começar por aqui também!)


Romeu entrou na cozinha e começou a contar mentalmente quantas latinhas de cerveja tinha entornado na noite, não era possível serem tantas, tampouco havia misturado com destilados. Então, não estava bêbado, seu subconsciente dançava ciranda, alegre, mas não estava tão afetado para criar miragens.


Mesmo assim, se aproximou pé ante pé da mesa da cozinha, ficou um tempo parado, olhando incrédulo: o irmão mais velho dormia sobre o desenho da filha, o lápis ainda  na mão, repousando.

 

O sino da igreja badalou seis da manhã, ele forçou a vista, entortou bem o corpo em uma posição idílica e leu aos sussurros: 

pode ser bom

- enfrentar as incertezas

- aprender a lidar com situações como essa

- escutar minhas vontades  

pode ser ruim 

- me expor demais 

- seguir o que os outros pensam 

- me iludir” 


Romeu deu um sorriso terno por sobre os ombros de Donato. Por um momento pensou em sacudi-lo e conversar; mas queria enganar a quem? Donato lá falava o que pensava!? Quis escrever uma mensagem, mas o irmão podia se sentir invadido. 


Chegou ao quarto com as pernas trançando, imaginando a filha brigando com o tio pelo roubo do desenho. E adormeceu pensando: quando mesmo a pequena voltava da casa da mãe… que saudade! 


Quando o sino badalou as oito horas, Mirna resolveu que era hora de cutucar Donato. Ela estava acordada a trinta minutos, já tinha lido a lista, já tinha comprado o pão e a água do café começava a ferver. 


Que menino! Sentiu pena do filho, pensou que talvez o cheiro do café coado pudesse ser um despertador melhor. Arrumou a mesa envolta dele, esticou a toalha, colocou os pães no prato, tirou a manteiga da geladeira e trouxe duas xícaras pequeninas. Sabia que Romeu, só se levantaria pro almoço, seriam eles dois, ela e Donato, naquela manhã.


Ela tinha conselhos a dar, poderia falar com algumas pessoas que considerava importantes para serem ouvidas nestes casos de indecisão, marcar umas conversas para filho. Mas primeiro o café, despejou a água quente e abanou a fumaça com a pontinha dos dedos na direção de Donato.


CONTINUA em 06/01/2021.

Parte final.


terça-feira, 27 de outubro de 2020

A presença


A mulher estava assustada. Não conhecia as razões, mas no seu íntimo sabia que algo a perseguia. Ela só queria estar em paz, então ignorava a situação. Passava os dias realizando as tarefas diárias sem nunca deixar de sentir a presença invisível.

Enquanto o dia estava claro, a presença era mais escassa. Surgia de vez em quando atrás da mulher enquanto lavava louças, na janela do quarto, ao abrir a geladeira. Quando a noite surgia, porém, a presença se intensificava e se percebia com mais frequência. E para dormir? Se a mulher fechava os olhos e virava o corpo para a direita, a presença tocava seu ombro esquerdo, se o corpo estava para a esquerda, era seu ombro direito que era tocado como se uma criança que não consegue dormir chamasse a atenção da mãe. Por esse motivo, a mulher só se deitava quando estava realmente exausta e mesmo com a perturbação, dormia.

Apesar de sentir a presença claramente, a ponto de poder indicar o seu local exato, até aquele dia ela nunca tinha sido vista. Era um final de tarde iluminado quando a mulher foi ao banheiro. Ela estava quase fechando a porta quando sentiu aquele golpe na barriga, aquele que parece chacoalhar seus órgãos internos, um choque elétrico percorreu seu corpo ao ver a figura. Aterrorizada a mulher viu a si mesma do outro lado da janela. Não como um espelho. Era um corpo com vida própria, irreconhecível, indomável, que não lhe pertencia. Um corpo que zombava da figura pálida da mulher que o olhava atônita.

domingo, 6 de setembro de 2020

Onde vivem as decisões? Parte1

Donato passou a língua na ponta dos lábios, o gosto áspero de lápis mastigado fazia com que pensasse em pegar a terceira cerveja, mas o sino na igreja badalava quatro da manhã. 

Era tarde! Ou era cedo? 

Colocou os cotovelos sobre a mesa, apoiou a cabeça nas mãos e debruçou o corpo para frente, assim os olhos ficaram bem próximos da folha sulfite, apenas três linhas preenchidas em cada coluna e as cores fortes do giz de cera da sobrinha que após alguns rabiscos desistira do desenho e abandonara a folha no chão. 

Onde vivem as decisões? 

Ele não sabia. Pegou a folha do chão quando pisou em cima dela ao sair do quarto, ainda era uma da manhã, não tinha encarado o acontecimento como uma insônia, só deitou e não conseguindo dormir levantou, caminhou pela casa, foi no banheiro, e depois resolveu abrir a primeira latinha, sentou na mesa e colocou a folha na sua frente. 

Foi depois de uma hora que entendeu que não conseguiria voltar a dormir, as vozes das pessoas habitavam a sua cabeça, era como se a namorada argumentasse por cima do contra argumento do irmão que respondia a explicação do pai que era contra o apoio da irmã que distinguia da visão do tio. Então decidiu usar a folha, com o desenho inacabado da sobrinha, para fazer a tal lista de prós e contras. 

Donato não gostava de decidir, gostava da decisão, entende? Gostava de ser um homem de poucos palavras, de pronunciar o sim ou o não seco, sem os rodeios que fazem a língua secar ou ficar com gosto de lápis mordido. 

Pegou a terceira cerveja no congelador, em breve o irmão mais novo chegaria da madrugada na rua, bêbado e feliz, ou a mãe acordaria agitada pensando no café da manhã da família, e ele de cuecas sentado na mesa da cozinha, uma lata de cerveja na mão e uma folha desenhada com sua patética lista de "pode ser bom" e "pode ser ruim".  Não gostava de decidir. 

As vezes pensava mesmo que decidia, sentia aquele calor no peito da certeza, mas até conseguir fazer sair pela boca, era obrigado a engolir a seco outro pedido de consideração de algum fator importante que alguém lhe trazia. 

CONTINUA em 06/11/2020.


segunda-feira, 22 de julho de 2019

Saideira

E o bar será sua segunda casa, seu “Bar, doce lar” como seus amigos dirão – os que ainda restarem, se é que restará algum, já que o Divórcio não costuma tolerar concorrentes. E quando você estiver no bar, tarde da noite, só mais dois ou três velhos palitando dentes ou cantarolando boleros, quando as portas já estiverem baixadas e o dono bigodudo começar a te olhar de modo insinuante, como quem diz ou fode ou sai de cima, o Divórcio sentará ao seu lado e pedirá uma cerveja e encherá o seu copo e o dele. Gentil como ele só, encherá o seu primeiro. Entre uma bebericada e outra, Ele lhe dirá coisas, lhe aconselhará a ficar o máximo tempo possível naquele bar, porque absolutamente qualquer outro lugar do mundo (e o Divórcio até deixará escapar um pouco de saliva ao lhe lembrar disso) será melhor do que aquele seu quarto alugado, de paredes mal pintadas, mobiliado apenas com aquela sua patética cama-box de solteiro, do guarda-roupa meio mofado de duas portas e de uma reprodução já meio amarelada de um dos quadros mais amarelados de Van Gogh. E você virará aquele copo e o próximo e pedirá outra garrafa (porque o Divórcio lhe ensinará muitas e impensáveis coisas, entre elas beber, mas beber mesmo, quantas garrafas for preciso, e sem fazer aquela sua tradicional cara de bebê tomando remédio) e beberá até a companhia do Divórcio lhe parecer aceitável, tolerável, por que não dizer desejável? Mas você precisará tomar cuidado, bastante cuidado, porque depois da sétima ou oitava garrafa, é bem capaz de você não conseguir mais enxergar os contornos do Divórcio e achar que Ele nem existe mais. Depois da sétima ou oitava garrafa, será você quem vai cantarolar o bolero e pedirá uma garrafa para cada um dos velhos, beijará na boca o dono bigodudo do bar e chorará em seus ombros assim que ouvir as primeiras notas do tema de abertura do filme noir que nesse momento vai começar (na TV que nunca é desligada, logo acima da geladeira de refrigerantes), lhe lembrando que é noite, que você está num bar sujo e que ninguém, absolutamente ninguém, te espera em casa.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Dossiê Marco - Operação saideira

DO DIÁRIO DE MARCO, 15 DE JULHO DE 2013
Todas as escolhas que já fiz na vida combinam perfeitamente bem com cerveja. E com maconha também, é verdade, mas vou me ater à cerveja. Se eu fosse boêmio ou minimamente conseguisse tomar álcool sem ter a sensação de que estou tomando um remédio, e veja bem, não qualquer remédio, mas um remédio amargo, desses que a gente só toma quando é estritamente necessário, eu ia achar isso muito bom, realmente muito vantajoso. Mas não. Absolutamente não é assim. Eu preciso confessar, e minha crescente covardia só me permite fazê-lo aqui, que é absolutamente penoso para mim engolir um copo de cerveja e, se o faço – e sim, o faço – é apenas porque quero ser sociável, quero ter amigos, ser aceito num desses grupos de valdevinos que escolhi pra mim.

DA AGENDA DO CELULAR DE MARCO, SEMANA DE 14 A 20 DE JULHO DE 2013
  • dom_14:
14:00 – Encontro com o grupo de teatro (levar as coisas do Chico)
17:00 – Niver do Tuco no Bar da Ieda
  • qua_17:
21:00 – Futebol na TV (comprar comida)
  • qui_18:
19:00 – Oficina de escrita criativa (fazer o exercício do Caetano)
21:00 – Leitura de poemas no Bar do Tim
  • sáb_20:
11:00 – Oficina de escrita criativa
14:00 – Sarau
21:00 – Niver da Cecilia no Bar da Glória

DO DIÁRIO DE MARCO, 18 DE JULHO DE 2013
Acho que começo a perceber alguns padrões nos hábitos de meus amigos. Digo de meus amigos, mas talvez isso possa se estender a qualquer tomador de cerveja. Quando alguém te convida para assistir a uma partida de futebol, porque sim, esta pessoa é sua amiga e sabe que você gosta de futebol, na verdade esta pessoa está te convidando para tomar cerveja e para fumar maconha – mas vou me ater à cerveja, acho que já disse isso antes. Quando você chegar ao local combinado, todos estarão paramentados, é verdade, com a camisa de seus times de coração e você ficará empolgado com isso. Valeu a pena ter deixado o conforto de seu sofá para ver o jogo com pessoas tão animadas, com verdadeiros torcedores. Mas quando estiver chegando a hora do jogo e você ficar ansioso com a proximidade da peleja – afinal, você ingenuamente pensa que está ali para ver a uma partida de futebol – os torcedores já estarão tão animados consigo mesmos e com todos os preparativos que envolvem a partida, que provavelmente se esquecerão de ligar a tevê. Você, que gosta de futebol e que está ali para ver futebol e que até já tinha se programado todo para ver a partida no conforto de seu lar, provavelmente se sentirá constrangido em atrapalhar toda aquela alegria, em ser o único preocupado com uma coisa tão menos importante como uma partida de futebol. Provavelmente encherá seu copo e se unirá a turba de torcedores elevados, que não precisam de uma partida para torcer. Negará até a morte que você não está imensamente feliz com toda aquela patuscada, mas ficará atento a cada mínimo sinal de fogos que venha do vizinho – e como você ficaria feliz em ser amigo do vizinho nessas horas. É verdade que tudo pode ocorrer de uma forma um pouco menos drástica. Sempre pode haver um tio que se lembrará de ligar a tevê. Mas você pode ter certeza de que ela será uma tevê de tubo, de catorze polegadas, cheia de chuviscos – minorados talvez pelo chumaço de bom bril xuxado em cada haste de uma antena piramidal – e que provavelmente ficará lá esquecida em algum canto, longe o suficiente para que seu constrangimento e seu incorrigível senso de sociabilidade permita que você se aproxime.

DA GRAVAÇÃO CLANDESTINA FEITA PELA DRA. MILENA VERÍSSIMO, EM OCASIÃO DE CONSULTA PSICOLÓGICA PRESTADA A MARCO EM 14 DE AGOSTO DE 2013
Eu juro que já tentei de tudo, doutora, mas a verdade é que não consigo me envolver com outro tipo de gente, com gente mais Fanta Uva, se é que a senhora me entende. Me chame de preconceituoso, doutora, mas ou você bebe Fanta Uva ou você é legal. Eu sou uma completa aberração. Alguma coisa certamente deu errado em algum ponto de minha formação. Eu bebo Fanta Uva E sou legal. Ao menos é assim que eu me vejo. Jamais, doutora. Ninguém jamais pode saber que eu faço isso e espero que a senhora mantenha essa informação no mais absoluto sigilo. Estou certo que o fará. Se não posso confiar numa doutora, em quem poderei confiar, não é mesmo? Faço tudo escondido, na calada da noite, bem longe dos meus amigos. E que delícia que é botar aquele treco roxo na boca, a sensação inebriante daquelas bolinhas descendo goela a baixo. A senhora toma Fanta Uva, doutora? Bom, não importa, mas estou certo de que não toma. Logo se nota de que a senhora é uma pessoa agradável. Esses dias li uma reportagem alertando para o risco de se ter câncer ao se consumir Fanta Uva. O cara que disse isso só pode ser do tipo que toma Fanta Uva, gente chata pra caralho. Eu nunca consegui me envolver com esse tipo de gente. Veja bem, na escola eu até tentei e era confortável. A gente se reunia e podia tomar nossa Fanta Uva a vontade, sem ter que esconder isso de ninguém, mas e depois, doutora? Depois era cada um pra sua casa antes das oito. Não haviam as gargalhadas espalhafatosas, as promessas de amizade eterna, as conversas desinteressadas entrando pela madrugada. Nada, doutora, nada disso combina com Fanta Uva. Tudo isso combina com aquela bebida amarga que eu me esforço tanto para tomar. Não se pode ter tudo, não é mesmo, doutora? Ou será que pode, doutora? Algum desses livros aí atrás da senhora diz que pode, doutora? Eu preciso de ajuda, poxa!

LISTA DE COMPRAS ENCONTRADA NA POCHETE DE MARCO EM 12 DE SETEMBRO DE 2013
  • 3 pães
  • 100 gramas de mortadela
  • pipoca para microondas (bacon, se não tiver, provolone)
  • 1 pote de Nutella
  • macarrão
  • Toddynho (a embalagem com 3 da promoção)
  • 2 litros de Fanta Uva
  • 1 caixa de bom bom (daquela que vem com o Sensação)
  • papel higiênico (pacote com 8)

DO DIÁRIO DE MARCO, 23 DE SETEMBRO DE 2013
Voltemos aos padrões de comportamento. Acho que estou ficando perito nisso, um antropólogo dos botequins. Mas nem é preciso tanto para perceber que um copo de cerveja sempre precisa estar cheio, copos vazios ou meio vazios (neste mundo não há copos meio cheios) são considerados verdadeiros disparates, um desrespeito ao grupo. É dever de todos ficar atento para que nenhum copo na roda esteja vazio. Ao menor sinal de escassez deve-se imediatamente pegar a garrafa mais próxima e proceder pelo preenchimento de todos os copos do grupo. Encher apenas o próprio copo e devolver a garrafa à mesa é a pior infâmia que se pode cometer. Negar que alguém complete seu copo vazio, a segunda pior. Amizades antigas terminam por coisas assim. Por isso, e admito que sou bastante ingênuo por só perceber isso agora, uma estratégia óbvia para não ter que beber doses insuportáveis de cerveja é manter o máximo de tempo possível o copo cheio. Nada de bancar o boêmio e descer tudo de uma vez. Não. Isso só fará com que alguma alma pretensiosamente caridosa encha meu copo imediatamente e eu tenha mais uma sessão de tortura pela frente (veja bem, ninguém faz isso com qualquer outra coisa. Ninguém vê seu pão na chapa pela metade e pede ao chapeiro pra já ir descendo outro pra você. Absolutamente, não. Isso só funciona com cerveja e com outras dessas coisas amargas). Então, devo bebericar aos poucos e até mesmo fingir uns goles. Ser o cara que serve a cerveja nos copos também me rende muitos pontos e ajuda a disfarçar minha artimanha.

DO DIÁRIO DE MARCO, 24 DE SETEMBRO DE 2013
Começo a me arrepender do que escrevi ontem (será que é isso que chamam de ressaca moral?). Ser o único sóbrio num antro de ébrios (e dissimular isso, santo Deus) não seria, no mínimo, desonesto?

DO DIÁRIO DE MARCO, 01 DE OUTUBRO DE 2013
Preciso parar com essa história de tomar suco em público. Ontem quase aconteceu o pior. A Simone almoçava na padaria e quase me pegou com a boca no canudo. Ia ser uma lástima.  Cobri a cena bem em tempo com o Jornal do Metrô.

DO DIÁRIO DE MARCO, 05 DE OUTUBRO DE 2013
Acho que ontem passei dos limites. Jogar cerveja fora escondido é um pouco demais. Até mesmo pra mim.

DA GRAVAÇÃO CLANDESTINA FEITA PELA DRA. MILENA VERÍSSIMO, EM OCASIÃO DE CONSULTA PSICOLÓGICA PRESTADA A MARCO EM 07 DE OUTUBRO DE 2013
Chega uma hora nessa vida, doutora, que temos que tomar uma decisão, temos que mostrar, afinal, quem somos, pra que viemos, o que queremos nesse mundo. A senhora pediu e aqui estou eu, finalmente resoluto, por mais difícil e improvável que esta decisão seja, mas decido agora o que já não posso mais tardar: vou começar a beber! Pois posso repetir, caso a senhora não tenha entendido, caso o nervoso tenha embargado minha voz: vou começar a beber! Não, não desse modo vergonhoso como bebo hoje, quero ser um bebedor de verdade, como meus amigos, sim, quero ser como eles! Não, não acho que me diminuo com isso. Longe disso. Se escolhi segui-los, preciso do pacote todo. Não há como ser boêmio sem a boemia. Me entrego. Rirei com eles das piadas ébrias e dançarei nu se preciso for, só não quero mais manter-me sóbrio. Será que consigo, doutora? Estou delirando?

DO DIÁRIO DE MARCO, 12 DE OUTUBRO DE 2013
O orgulho transborda em mim. Ontem consegui tomar dois copos cheios. Sigamos. Um dia de cada vez.

DO DIÁRIO DE MARCO, 19 DE OUTUBRO DE 2013
Dois copos de novo. Sem avanços. Sem retrocessos. Um pequeno progresso, na verdade: emiti dois comentários minimamente razoáveis e convincentes sobre a superioridade das cervejas artesanais em relação às industrializadas. Obtive olhares respeitosos. Pesquisei na internet.

DA GRAVAÇÃO CLANDESTINA FEITA PELA DRA. MILENA VERÍSSIMO, EM OCASIÃO DE CONSULTA PSICOLÓGICA PRESTADA A MARCO EM 23 DE OUTUBRO DE 2013
Tenho me esforçado muito, doutora. Acho que não tenho motivos para envergonhá-la. Esses nossos encontros têm sido realmente decisivos. Confesso que no começo achava tudo isso uma grande perda de tempo, quase uma charlatanice. Desculpe, doutora, se não confiei na senhora, mas acho que aqui posso falar a verdade, não posso? Bom, deixa pra lá. Mas o fato é que depois que passei a encarar a cerveja não mais como uma simples bebida, como algo que servisse apenas para me matar a sede, mas como a chave de um portal que me transportasse para um outro estado de espírito, como uma poção mágica que me desse acesso ao lado mais obscuro das pessoas que quero perto de mim, ah, doutora, quando passei a ter essa perspectiva das coisas, tudo ficou bem mais fácil. Afinal, poções mágicas não precisam ser docinhas, não é mesmo, doutora? Pelo contrário, se quero passar para uma outra dimensão, para um outro estágio de existência, tenho que ser submetido a um rito de passagem e ritos de passagem precisam ser bastante dolorosos, não é mesmo, doutora? Diga que sim, doutora! Por favor! Diga alguma coisa doutora, veja bem, qualquer coisa, doutora! Eu não estou indo bem? Estou, não estou?

DO DIÁRIO DE MARCO, 02 DE NOVEMBRO DE 2013
Amanhã… ah, amanhã! Aniversário do Wagner no Isca Bar. Acho que chegou a hora de queimar umas etapas.

DO DIÁRIO DE MARCO, 03 DE NOVEMBRO DE 2013
É hoje!

DESCRIÇÃO DA CÂMERA DE SEGURANÇA DO ESTABELECIMENTO “ISCA BAR” NA NOITE DE 03 DE NOVEMBRO DE 2013, FEITA PELA PERITA DRA. CAROLINA DO VAL
O investigado chega ao estabelecimento de nome “Isca Bar” por volta das 20h45. Está sozinho. Traja camisa polo branca, calça jeans e pochete. Encontra duas pessoas numa das mesas da calçadas e as cumprimenta. Aparenta estar sóbrio e com perfeito controle de suas ações. O investigado se senta junto às duas pessoas. Ato contínuo, o garçom aparece com um copo americano e enche seu copo de cerveja. O investigado sorri com discrição ao garçom e quando este sai, propõe um brinde. Todos riem e bebem juntos. O investigado esvazia seu copo em duas grandes investidas. Um pouco antes das 21h mais duas pessoas se unem ao grupo. O garçom é solicitado novamente. Chegam mais garrafas à mesa. O copo do investigado é enchido mais uma vez. Risadas. Após três investidas, o copo do investigado fica vazio. A pessoa que chegou por último, uma mulher, imediatamente enche o copo do investigado. Ele diz algo e todos riem. Ele ri muito. Dá uma primeira investida no copo e começa a tamborilar os dedos na mesa. Parece inquieto. Um segundo gole. Alguém diz algo e o investigado bate com a palma da mão na mesa e ri alto. Desta vez, ninguém o acompanha no gesto. Por volta das 22h, mais alguém chega à mesa. O investigado completa o terceiro copo. Olha para os lados. Parece muito inquieto. Segue tamborilando os dedos e passa a também a bater a perna direita no chão. Com um gesto, chama o garçom e solicita mais garrafas. Emite um comentário. Aparentemente só ele ri. O garçom chega com as cervejas. O investigado pega uma das garrafas e começa a encher todos os copos da mesa, aparentemente proferindo comentários chistosos a cada um. Alguns lhe sorriem de volta. Alguns parecem se incomodar. Enche seu próprio copo, deixando cair boa parte do conteúdo no chão. O investigado passa a dançar de forma descompassada com o copo na mão. O investigado ri de modo espalhafatoso. Duas das pessoas mais próximas se afastam do investigado com olhares aparentemente assustados. O investigado tira a pochete e a atira na mesa. Segue dançando sozinho com o copo nas mãos. São 22h30 quando ele termina o quarto copo. Todos estão de pé. O quinto copo é enchido. Um gole. O investigado fica em silêncio. O investigado vomita. O investigado desmaia. São 23h12 quando chega a ambulância.

DO ATESTADO DE ÓBITO DE MARCO EMITIDO PELA MÉDICA LEGISTA DRA. THAIS ROCHA, EM 04 DE NOVEMBRO DE 2013
Coma alcoólico diagnosticado às 0h12. O falecido era solteiro e não deixa herdeiros.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Das pequenas metamorfoses

Ao ver uma partida de futebol, o que mais me encanta não é o momento do gol, mas o momento do replay, sobretudo aqueles em câmera lenta. Não é que eu goste de ver o tento por outro ângulo ou rememorar aquela jogada perfeita. Nada disso. O que me interessa está atrás do gol, entre as balizas e a arquibancada. O que realmente me emociona é ver o momento em que, ao receber a denúncia da torcida, o policial sisudo gira por um lapso a cabeça e, sem perceber, alarga por um nanosegundo a fissura compreendida entre os lábios, ante a rede estufada às suas costas, um quase nada antes de girar a cabeça de volta à torcida e tornar a ser um policial sisudo. 

terça-feira, 22 de maio de 2018

A mancha

Eu comecei a terminar de ser criança no dia em que vi a mancha. 
A mancha em formato de lua, atrás da orelha esquerda do Jordão. 

O amigo Jordão. 

O Jordão que sempre estava, 
mas nunca ficava, 
jamais se demorava. 
O Jordão que me olhava, mas nunca me via, 
o olhar fugidio de quem queria mas não podia. 
Jordão, o amigo eterno de minha mãe. 

Amigo, vejam só, o amigo de minha mãe. 

Naquele dia, 
ao se despedir como sempre, 
ele se virou como nunca.
E foi assim que eu vi.

E quando vi a mancha, em forma de lua, atrás da orelha esquerda, senti súbito minha mão saltando célere pra trás de minha própria orelha esquerda, pousando sobre a minha própria mancha em forma de lua, que eu achava 

- oh, céus, eu achava - 

que era só eu no mundo quem tinha. 

domingo, 22 de abril de 2018

Continho de merda


Maria vivia na merda, mas era bem quentinho. 

Fazia tempo que Maria vivia lá. Nem se lembrava o quanto. Um dia foi parar ali e por ali ficou. E dali jamais queria sair. Encolhidinha, sossegada, no seu canto. Havia o cheiro, sim, Maria admitia que havia. Aquele cheiro úmido e meio amargo que toda bosta tem. Mas era tão quentinho e confortável aquele canto meio melado de bosta em que Maria vivia, que ela nem dava bola para aquele cheiro. Às vezes dizia que até gostava, que aquilo era um aroma inspirador, era o preço afinal que se pagava por ter um cantinho tão confortável no meio daquela bosta toda, daquela merda tão fresquinha que alguém (ou algum) certa vez deixou por ali e Maria logo tomou para si. Alojou-se por medo de que não fosse encontrar algo melhor, ao menos não tão cedo. Medo não, por pura perspicácia, senso de oportunidade. E Maria era esperta, precavida, ajuizada. Maria não era boba de perder a chance de se envolver naquela bosta toda. 

É certo que também haviam as moscas. De tempos em tempos elas vinham e aquilo não era bom. Pensando bem, era até um pouco opressor. Mas Maria se acostumava com isso também, afastava as moscas como dava e com o tempo até passou a se acostumar com aquelas companhias. Do cantinho em que estava, Maria podia ver as moscas sondando a bosta e às vezes até se melando um pouco em seus trechos mais pegajosos, as patinhas todas salpicadas de merda mole. Aquilo era até divertido. Como estar na bosta era bom, pensava Maria, aquilo lhe rendia mesmo prazeres indescritíveis, como inebriar-se naquele odor pitoresco ou apreciar o regojizo das moscas. Maria era alguém de muita sorte por viver naquela merda. Aquela merda era o melhor lugar do mundo! 

E era tão confortável a bosta toda em que Maria estava metida, que ela nem botava a cabeça pra fora, nem se lembrava (ou se forçava a não lembrar) que além da merda em que estava, havia um jardim enorme, onde um dia aquela bosta fora deixada. Era só Maria levantar um pouquinho a cabeça que já daria para ver o imenso do jardim ao redor. E lá fora era tão grande e tão assustador que era difícil ter a coragem de se desgrudar daquele bom pedaço de bosta e aceitar, enfim, aquela aventura toda, a aventura que seria se desgrudar da merda e seguir. 

Até que um dia aconteceu. E só aconteceu porque Maria não pôde fazer nada, absolutamente nada, para impedir que acontecesse. Aconteceu de alguma força estranha, dessas que movem o mundo, completamente alheia à vontade e ao controle de Maria, a ter lançado longe, a ter cuspido pra fora da bosta quente, em direção ao assustador jardim. Maria, ainda toda respingada de merda, mas já sem aquele peso e calor que antes a envolvia, ficou desnorteada. Não sabia o que fazer diante de tanta insegurança, desprovida que estava da bosta que tão confortavelmente a acolhia, a afagava, a protegia. Maria não saberia viver sem aquilo e a primeira coisa que pensou foi em voltar de onde veio e procurar a bosta de novo. Mas ela já não podia voltar. A bosta já não existia tal qual Maria havia conhecido, já era um arremedo daquela bosta que antes a envolvia. Era uma bosta escangalhada pela mesma força que lançara Maria longe. Não tinha jeito. Maria teria que encarar as aventuras e perigos que o jardim lhe apresentava. 

E como Maria não tinha saído da bosta com suas próprias forças, com cuidado, mas sim de uma hora para outra, lançada por forças estranhas, não foi sem ferimentos que ela chegou ao jardim. Ferida e toda lambuzada de bosta, o que a fazia lembrar a cada momento da merda de onde tinha vindo, da merda que já não existia. Sentiu raiva. Sentiu medo. Sentiu culpa por não ter conseguido evitar de ser lançada longe daquela bostinha tão boa. 

Demorou, mas um dia Maria conseguiu aceitar que agora teria que lidar com o jardim. A vida na bosta tinha mesmo ficado para trás. 

Foi então que ela começou a caminhar pela grama e percebeu que conforme andava, a bosta ia aos poucos se desgrudando de seu corpo e a deixando livre para sentir a brisa cada vez menos assustadora que lhe atingia diretamente a face. 

É preciso dizer que haviam montes de bosta espalhados aqui e ali e Maria, vez ou outra, até se deixava pisar em um ou outro, com mais ou menos intensidade. Mas o melhor é que em nenhuma outra oportunidade Maria caiu na tentação de atolar-se fundo na merda novamente (ou no caso de ter se atolado, saiu tão rápido ou escondeu isso tão bem que ninguém ficou sabendo). Havia muito mais do que merda por ali, afinal, coisas e cheiros e texturas e sabores que Maria nem sabia que existia. 

Atolou-se naquilo tudo. 

O jardim era imenso e a vontade de explorá-lo inteiro só crescia. Já não sentia nem mais o cheiro de sua antiga vida na merda.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

A prodigiosa sorte de Fortunato Dias de Ventura

Desde muito pequeno, Fortunato Dias de Ventura descobriu que tinha uma relação bastante estreita com a sorte. Foi logo em seu primeiro verão, na pequena cidade de Quimera, quando sua mãe lhe deixara desfrutar de seu primeiro picolé, que tal intimidade com as coisas do destino se revelou pela primeira vez. O menino refestelava-se com aquele bloco róseo de gelo, corante e açúcar (sobretudo açúcar, muito açúcar) quando sua mãe, a atordoada Sra. Lenora Dias, pôde ler no palito de madeira que o rebento tinha direito a outro sorvete igual aquele, numa daquelas promoções que existem desde sempre, que todo mundo conhece, mas que de fato, de verdade mesmo, ninguém nunca ganhou nada. A mãe, que aos trinta e tantos anos já se considerava pessoa bastante azarada, sobretudo quando se lembrava de suas escolhas matrimoniais (o que não vem ao caso neste relato) nunca tinha ganho nada nesta vida, além de maridos infames e contas para pagar. Enquanto pegava o menino lambuzado pelo braço e caminhava de volta à sorveteria para retirar o grande prêmio, lembrou-se da vez, muito parecida com aquela, em que era menina, cercada de outras tantas meninas, suas amigas, e dera um pulo de alegria ao perceber que tinha uma mensagem escrita no palito de sorvete. As meninas logo se acercaram e começaram a rir às gargalhadas, ao lerem que aquilo não dava direito a nada, a não ser a alguma sensação de consciência tranquila, já que o que estava escrito no pequeno palito lambuzado não era nada mais benfazejo do que um "Este palito foi feito com madeira de reflorestamento. Preserve a natureza: não o jogue em vias públicas". A pobre Lenora, depois de meses sem ter coragem de botar a cara na rua, nunca mais dera bola para promoções e palitos. Até o dia em que nasceu o pequeno Fortunato Dias de Ventura.
 
O mais curioso, e o que talvez aqui ninguém acredite, é que o sorvete que Fortunato Dias de Ventura ganhou naquela manhã, também havia sido moldado em torno de um palito premiado, para grande azar do sorveteiro, que viu seu faturamento sensivelmente atingido por aquele acontecimento apoteótico. O fato é que a partir daquele dia todos os sorvetes que o menino ganhava vinham afortunadamente com o palito premiado (e olha que Fortunato gostava muito de sorvetes!). O dono da sorveteria, muito desconfiado, sensivelmente temeroso de sua falência iminente, teve como ideia abrir uma ou outra embalagem de sorvete, de modo aleatório, para ver se aquilo era mesmo sorte ou erro do fabricante, algum lote que viera desgraçadamente mais sortudo que os outros, quem sabe. Logo se viu, no entanto, que esta hipótese poderia ser facilmente descartada. O sorveteiro, a  esposa do sorveteiro e os netos do sorveteiro entupiram-se por dias e mais dias de sorvetes e de decepções, e nada mais liam ao final de cada uma daquelas guloseimas geladas, do que a decepcionante inscrição "tente outra vez" nos palitos de madeira. A tristeza estava estampada em seus rostos melados, sobretudo quando entre um fracasso e outro, viam entrar pela sorveteria aquela figura cada vez mais rechonchuda e rosada que apontava do colo da mãe para qualquer um dos picolés da geladeira que, invariavelmente, vinham premiados.
 
O sorveteiro, resignado, resolveu tirar proveito daquilo e apostou numa estratégia de marketing, palavra até então desconhecida entre os habitantes de Quimera. Botou na fachada da sorveteria, em letras vermelhas e garrafais, uma faixa com a seguinte inscrição "Sorvete premiado. O prêmio já saiu aqui 47 vezes!". No começo até que deu certo. Os moradores de Quimera, sensivelmente atraídos por aquele dado expressivo e profundamente incomodados pelo forte calor que fazia naquele triste e tenebroso verão, fizeram filas na porta da sorveteria para adquirirem também o seu tão sonhado palito premiado. Só que todos os outros habitantes da cidade eram pessoas de sorte apenas mediana e, portanto, jamais conseguiam o direito a outro sorvete. Alguns saiam cabisbaixos, lamentando a pouca sorte, outros saiam furiosos, muito irritados, xingando o sorveteiro e toda sua família de embusteiros de uma figa, que não deviam brincar assim com a esperança das crianças. E foi assim que começou a guerra fria, a verdadeira, assim chamada pelo gelo com que os moradores de Quimera passaram a tratar toda a família do vendedor de gelados. Uma injustiça, é preciso que se diga, um comportamento realmente deplorável dessa gente, já que como se sabe, o sorveteiro não tinha poderes sobrenaturais que o permitisse conhecer de antemão onde estavam os palitos premiados. O único aspecto sobrenatural dessa história toda era realmente a prodigiosa sorte de Fortunato Dias de Ventura.

Chegou a hora, como haveria de chegar, que o menino cansou de tomar tanto sorvete e passou a recusar até mesmo os sabores mais extravagantes e açucarados, aqueles que sempre o atraiam. Seus pais resolveram então guardar como um troféu o último dos palitos premiados para se lembrarem no futuro daquela fase áurea do garoto. A sorveteria, no entanto, não resistiu ao verdadeiro boicote exercido por seus antigos clientes e fechou suas portas. O sorveteiro e sua família fizeram as malas e se mudaram para a Sibéria, de onde eram seus parentes mais próximos, e nunca mais voltaram para Quimera, de modo que nunca souberam que seu antigo estabelecimento havia se transformado numa espelunqueira lanchonete, dessas que mais parecem um botequim, com banquinhos no balcão e vitrine de coxinhas, torresmos e ovos azulados na entrada. O que distinguia o recente estabelecimento dos demais de sua espécie era a presença, um tanto sorrateira e disfarçada, nos fundilhos mesmo do recinto, já próximo aos banheiros, de uma bancada para o jogo do bicho, a nova tendência no submundo do entretenimento da cidade.

A viúva Noêmia nunca fora mulher de grandes vícios (e tampouco de grandes virtudes) mas apaixonou-se perdidamente pelo bicheiro, o atarracado Sr. Osório, desde a primeira vez que, saindo distraída do banheiro do bar, dera de cara com aquele sujeito que acabava de atender um cliente (um senhor que arriscou uma bolada no burro). Dona Noêmia, que era muito inteligente, decidiu apostar naquela relação e passou a frequentar o bar regularmente, nunca se esquecendo de fazer sua fezinha, nunca sem ver Osório. Isso seria apenas mais uma história, como tantas outras histórias, de alguém apaixonado que se vê cometendo insanidades nunca antes imaginadas, apenas pelo simples deleite de passar um tempo a mais ao lado da pessoa amada, não fosse a viúva Noêmia avó de um menino tão sortudo, o ditoso Fortunato Dias de Ventura, protagonista desta história.

Ciente das alvissareiras conquistas que o neto já realizara no mercado das guloseimas geladas, a viúva Noêmia resolveu contar com o garoto para suas ótimas intenções no mercado matrimonial. Todo sábado levava ao neto a cartela colorida do jogo de bicho e pedia ao menino rechonchudo que apontasse com os dedos para a imagem do animal que mais lhe apetecesse no momento, que fizesse uma escolha aleatória como outrora já fizera com os picolés. Não há quem não conheça a máxima que diz que um raio não cai mais de uma vez no mesmo lugar, mas como todos aqui já sabemos, essas coisas só funcionam para pessoas de fortúnio medíocre, como a grande maioria de nós. Para pessoas magistrais como Fortunato Dias de Ventura, o raio cai exatamente no local em que ele quiser e no momento em que ele quiser. Assim, como é fácil de se supor, a viúva Noêmia passou a ganhar no bicho absolutamente todos os sábados. E só não jogava todos os dias porque tinha pudores, tinha receio de que a boca pequena melasse o clandestino negócio de Osório, como já tinham feito antes com os açucarados sorvetes.

De tanto ganhar no bicho, a viúva Noêmia comprou uma modesta fazenda e chamou Osório para morar com ela. O atarracado Osório gostava muito de sua vida clandestina, sempre conhecendo gente nova, conversando com os apostadores de saída de banheiro, aquela gente aliviada que nunca fazia sua vida cair na rotina. Entretanto, a possibilidade de se unir a uma pessoa tão bem aventurada, tão primorosamente afortunada, fez com que Osório pesasse bem e decidisse pela vida no campo, longe dos bichos, ou melhor, longe do jogo do bicho e perto dos bichos de carne, osso e úberes e também perto da sorte da viúva Noêmia. Mas como a sorte de Noêmia não era de Noêmia, mas sim de seu neto, e como o seu neto não era algo que se pudesse carregar por aí, o interesseiro Osório acabou se desinteressando por Noêmia, que nunca mais ganhou nada fácil nessa vida, e viu o seu negócio agrário se desmoronando tão fácil quanto veio. Numa tarde de sábado, quando tudo parecia que não podia piorar, Osório caiu do burro. Era um burrinho pedrês, último bicho que sobrara na fazenda, já velho, sem dentes e que não aguentou o peso do atarracado Osório e o lançou longe. Osório morreu na hora e a viúva Noêmia ficou viúva de novo.

Enquanto isso, Fortunato Dias de Ventura crescia. Sua avó Noêmia foi morar com ele e com seus pais. A velhinha já não saia de casa, temerosa de se apaixonar de novo e de contrair uma nova viúves. Estava, digamos, um pouco confusa das ideias e passava o dia repetindo sequências de números e bichos e anotando obscuros hieróglifos em seu bloquinho cor de abóbora. Fortunato Dias de Ventura, agora um rapaz de pelos emergentes, olhava tudo aquilo muito assustado, mas buscava não contrariá-la. Deixava a velha senhora em paz - avestruz, águia, burro, borboleta - e saia todo dia para cuidar de sua própria sorte, sempre ao lado do pai, o agitado Sr. Eduardo de Ventura, porque a mãe, muito religiosa, não gostava de se envolver naqueles assuntos escusos, que já haviam levado à falência uma família de pessoas tão honestas, como era a do sorveteiro, além de ter deixado louca sua sogra, antes pessoa de ideias tão razoáveis, salvo pelo fato não desprezível de ter educado seu ignaro marido.

Se antes o menino Fortunato Dias de Ventura apenas se refestelava com inocentes picolés de palitos premiados ou gostava de apontar seu dedo roliço e rosado para uma cartela colorida cheia de animais - como teria gostado de fazer qualquer criança de dedos menos roliços e de sorte menos promissora - agora a coisa estava um pouco mais séria, um tanto mais profissional. O Sr. Eduardo de Ventura havia se tornado uma espécie de empresário, manipulando a sorte do filho em casas de apostas, em corridas de cavalos e até mesmo, por que não, no bingo da paróquia de nossa senhora de Monte Serrat, frequentado desde sempre pela Sra. Lenora (que se enchia de vergonha toda vez que via o marido, aquele desqualificado, chegando com o menino naquelas sagradas tertúlias dominicais). A estratégia do pai era bastante clara e sagaz. Por mais sorte que Fortunato tivesse, por mais certo que fosse que ele poderia ganhar o que quisesse e quantas vezes quisesse, isso não poderia acontecer sempre. A estupenda sorte chamaria muita atenção e poderia pôr a perder aquele negócio tão auspicioso. Então o segredo era manipular os palpites do rapaz e perder de vez em quando, às vezes até mesmo um dia inteiro, tudo para não causar suspeitas. Nesses dias inglórios, se Fortunato escolhia uma cartela, o pai logo tratava de substituí-la. Se o rapaz apostava num puro sangue lusitano, o pai declarava apoio a um quarto de milha qualquer. O segredo era sempre fazer apostas miúdas nestes casos de derrota certa e deixar os palpites polpudos para quando Fortunato tivesse a liberdade de escolha. Nessas horas eles quebravam a banca, como dizem nesses meios, e imediatamente voltavam pra casa, para grande desgosto de Fortunato, que não gostava de se ver tão castrado em suas venturas com o destino.
Nos primeiros meses do negócio a economia doméstica foi sensivelmente progredindo. A casa ganhou uma reforma de arquitetura primorosa, com três andares e um mirante com vista para as montanhas mais distantes. Até mesmo a viúva Noêmia saiu beneficiada dessa história toda. Construíram para ela um altar em um quartinho nos fundos da casa, onde ela adorava imagens em tamanho real dos vinte e cinco animais do jogo de bicho, inclusive o elefante que sozinho já ocupava quase a metade do ambiente. A velha senhora, cada vez mais enrugada e com olhar progressivamente mais sombrio, caminhava em círculos pelo recinto, carregando um castiçal de velas coloridas com nauseante odor de flores mortas. Repetia palavras impronunciáveis e quase não se alimentava mais. O prato de comida que a Sra. Lenora deixava todo dia na porta de seu quartinho, quase sempre voltava intocado. A mãe de Fortunato, aliás, a despeito do vertiginoso progresso econômico pelo qual passava sua família, não conseguia concordar com a origem sibilina daquela fortuna toda e se mantinha ainda mais afastada daquele ser abjeto que era seu marido, conforme ela fazia questão de lembrar. Aproveitando-se das grandes proporções que havia atingido sua residência e das grandes distâncias de corpos que isso proporcionava, certa vez mandou colocar os pertences de seu abominável cônjuge para fora do quarto e mandou a criatura se instalar em um dos novos dormitórios do terceiro andar, bem longe dela, que desde sempre havia se recusado a sair do térreo. Nem acreditava que depois de tantos anos conseguiria passar uma noite sem ter que ouvir aqueles barulhos - e os consequentes odores - que vinham dos mais recônditos buracos do marido.

Fortunato Dias de Ventura, por sua vez, a despeito de sua sorte tão prodigiosa, andava pela casa taciturno e cabisbaixo, tropeçando em trevos de quatro folhas que somente ele conseguia enxergar no jardim. Não tinha amigos e não ia para escola, já que o pai não queria que suas energias fossem desperdiçadas em expressões de álgebra e no estudo de línguas pouco úteis para os negócios do destino. O Sr. Eduardo de Ventura passava o dia longe do casarão, envolto em atividades nunca bem esclarecidas, sabido que sempre foi para todos que ele não trabalhava desde antes do nascimento do menino. A economia doméstica sempre fora capitaneada pela mãe, que mesmo agora com o advento dos prodigiosos desígnios do filho, continuava a produzir mandalas e filtros dos sonhos que vendia nas feiras de artesanato da cidade. O casarão passou tempos assim, da mais modorrenta rotina, com cada um de seus ocupantes suficientemente distantes uns dos outros, a ponto de mal se cumprimentarem quando, por ventura ou descuido, calhavam de se trombar em algum corredor. Com a vizinhança, tampouco, exerciam qualquer tipo de relacionamento desde os tempos já saudosos dos palitos de sorvete. A casa era uma ilha na cidade de Quimera e passaria despercebida pelos vizinhos, não fosse o quadradinho sempre iluminado do quarto da mãe no térreo, os estranhos ruídos que vinham do quartinho da viúva Noêmia nos fundos e as saídas furtivas do menino com o pai, sempre que este aparecia, vindo sabe-se lá de onde, mal a noite começava a se pronunciar, para buscar o menino e levá-lo cidade afora a fim de explorar sua estrondosa sorte.

Certa vez, no entanto, o Sr. Eduardo de Ventura não apareceu para buscá-lo. A lua aparecia no céu de Quimera e Fortunato já se mortificava ante a perspectiva de mais uma noite perdida em casas de apostas e mesas de pôquer. Chegou até mesmo a dormir no banco de cimento diante do portão do casarão, onde sempre esperava seu pai. Mas naquela noite ele não apareceu. E tampouco apareceu na noite seguinte e sequer mandou algum recado para explicar suas ausências nas noites e noites seguintes. Fortunato, sempre obediente, não deixou de esperá-lo, noite após noite, diante do casarão. Sua mãe, compadecida e sempre em silêncio, aparecia de tempos em tempos com um prato de comida, um cobertor para as noites frias e depois de algumas semanas, quando percebera que o filho passara a dormir a madrugada toda ao relento, trouxera-lhe um de seus filtros dos sonhos, para lhe proteger a noite.

Passados três ou quatro meses de espera ininterrupta, certa noite o menino foi novamente surpreendido pela figura da mãe, que de camisola branca e com uma vela na mão, apareceu diante dele, que já dormitava no banco de pedra, ao relento, e pronunciou solene "Já não se ouve mais nada. Ela também se foi". Fortunato olhou para mãe confuso, sem saber se estava acordado ou ainda dormindo, mas logo deu-se conta de que tudo estava num absoluto silêncio, um silêncio inaudito, como há anos não se fazia. Já não se escutava mais os incompreensíveis murmúrios da viúva Noêmia. No quartinho dos fundos, apenas as chamas de velas pela metade e o olhar penetrante de vinte e cinco animais que agora poderiam dormir tranquilos.

Muito se especulou sobre o sumiço repentino da viúva Noêmia. A reinauguração do silêncio não poderia passar incólume na pequena Quimera, já que os murmurosos lamentos da velha senhora podiam ser escutados até mesmo das cidades vizinhas, assim como se podia sentir de longe o cheiro nauseabundo de suas velas coloridas. Alguns afirmavam, e juravam certeza, de que tinham avistado a viúva Noêmia se esvanecendo como fumaça, pela chaminé nos fundos do casarão, até se perder entre as nuvens mais distantes do céu noturno. Outros juravam que tinham visto Noêmia em uma praia do Marrocos, comprando tapetes e outras quinquilharias junto a um bem apessoado senhor, que muito parecia ser o pai de Fortunato Dias de Ventura. Nada disso, porém, conseguiu alterar a rotina de Fortunato, que noite após noite, sempre no mesmo horário, se punha diligente diante do portão de ferro para esperar atento o seu tão demoroso pai.

O tempo fizera do casarão um prédio decrépito e cinzento. A despeito da imensidão da casa e do pó que se acumulava nos móveis, a ponto de não ser mais possível vê-los, a mãe se recusara a ceder às pressões da especulação imobiliária. Em todos aqueles anos, após o sumiço do marido e da viúva Noêmia, sempre a atormentavam com milionárias propostas de compra do antigo imóvel, para construir em seu lugar um gigantesco shopping center, o arauto da modernidade que teimava  em contaminar a pequena Quimera. Os anos haviam passado e a sorte de Fortunato Dias de Ventura há tempos que não dava mostra de sua portentosa presença.  Há anos que ele não entrava em casa, temeroso de que o pai podia aparecer em algum momento de descuido, para se valer uma vez mais de sua prodigiosa sorte. A Sra. Lenora, mesmo com o alivio que sentia pela ausência do marido, passou a dormir ela também todas as noites ao relento, ao lado de Fortunato, o acompanhando naquela espera, revezando com o filho os momentos de sono e vigília. Certa vez, enquanto Fortunato dormia com a cabeça em seu colo, reparou que pela primeira vez na vida se sentia cansada. Olhou para as mãos, com a atenção que nunca costumava olhar, e notou que tinham lhe aparecido manchas marrons e veias calibrosas, que a vida sempre tão agitada e envolta no mais rigoroso trabalho, a tinha impedido de perceber. Ela envelhecera. Olhou também para as mãos do filho, para seus dedos magros de unhas encravadas e lembrou-se do menino de dedos roliços que apontavam certeiros para sorvetes de palitos premiados. Ele também envelhecera. Estavam velhos e sós, em uma cidade que não mais lhes pertencia. Eram somente os dois naquele imenso casarão abandonado, cercado por filtros dos sonhos e lembranças. Foi quando Lenora recordou-se da única boa ideia que seu desprezível marido um dia já teve na vida, que foi a de guardar como lembrança o último dos palitos premiados, na época em que o pequeno Fortunato Dias de Ventura passou a se desinteressar por sorvetes.

Na manhã seguinte, ainda antes do sol aparecer por inteiro no céu de Quimera, Fortunato Dias de Ventura despertou com o toque suave de sua mãe em seus cabelos ralos e grisalhos. Nem bem Fortunato a olhou e já compreendeu tudo. A Sra. Lenora lhe disse de forma terminante, sem margem para contestações "Vamos, venha comigo. Ele já não voltará mais". Fortunato a olhou sério, tão fundo como jamais a tinha olhado, e nem por um segundo pôs em dúvida as palavras da mãe. Reparou que ela trazia o velho palito premiado nas mãos. A sorte é que essa era uma daquelas promoções que existem desde sempre, que todo mundo conhece e que nunca, absolutamente nunca acabam. E foi por isso, que mesmo quarenta e tantos anos depois, que Fortunato Dias de Ventura pôde entrar novamente em uma sorveteria, ao lado de sua mãe, para trocar um palito premiado por um sorvete. O já alquebrado Sr. Fortunato  hesitou um pouco diante da geladeira de picolés, com sabores ainda mais açucarados que os de sua infância, e resolveu não titubear muito, dando apenas vazão a sua antiga intuição. Escolheu o seu favorito, o de groselha, e saiu com sua velha mãe em direção à praça, onde sentaram no mais absoluto silêncio para tomar sorvete e mais nada, destreinados que estavam da prática do diálogo. Foi então, passadas algumas bocadas, dadas com cautela já que os dentes de Fortunato já não suportavam mais aquelas baixas temperaturas, que ele pôde ver incrédulo, que nenhuma letra havia impressa naquele palito totalmente desprovido de sorte, adornado apenas pelo logotipo da centenária fábrica de sorvetes de Quimera. A mãe não se assombrou. Pelo contrário, sem dizer uma só palavra, mas com o olhar que tudo evidencia, parecia já saber desde sempre que nada daquilo importava. Foi então que Fortunato Dias de Ventura olhou fundo nos olhos da mãe e se lembrou de tudo, de sua presença muda, porém tenaz, absolutamente eterna, até mesmo nos atos menos venturosos de sua vida. Foi quando teve a certeza, como jamais tivera antes, de que tinha realmente uma sorte prodigiosa.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

O vão entre o trem e a plataforma

Eram só ele e ela no último dos trens noturnos com destino à Luz. Subiram no Butantã. Ele e ela no mesmo vagão. Ambos só desceriam no final. Ele perguntaria as horas, ela responderia. Ela perguntaria o nome, ele responderia. Para emendar, ele perguntaria o dela. Falariam da lentidão do veículo, do frio do ar condicionado, da sorte que tinham por terem conseguido pegar o último trem. Antes de chegar na Paulista, já saberiam onde um e outro moravam e o que gostavam de fazer nas tardes de domingo. Quando estivessem na República e o auto-falante anunciasse que a próxima era a última estação e que por gentileza desembarcassem todos, já teriam trocado os telefones e combinado algo para o fim de semana seguinte. Na Luz, se despediriam com um beijo no rosto e com a promessa de mais conversas como aquela. Próximo domingo, ela diria. Próximo domingo, ele diria. Formariam um belo casal, desses que a gente não imagina separado. Teriam filhos. Dois. Um casal de gêmeos lindos. Teriam feito tudo e talvez até um pouco mais, mas antes mesmo de Pinheiros, ela tombou a cabeça sobre o vidro e se perdeu distraída lendo as placas de publicidade. Teriam feito tudo e talvez até um pouco mais, mas assim que sentou no banco e ajeitou as pernas, ele levou mecanicamente a mão ao bolso e pegou seu telefone. Foi jogando cartas no aparelho durante todo o trajeto para não sentir o tempo passar. Ao chegar na Luz, cada um saiu por uma porta. Ela virou para a direita. Ele virou para a esquerda. Nunca se lembrarão de nada disso.

domingo, 21 de janeiro de 2018

À DERIVA

Queria falar das cores alegres, as mais vivas que lhe vinham à mente, mas de nada adiantava.
O cinza e as cores mais escuras predominavam.
Queria falar da alegria dos raios solares, do canto dos pássaros ao longe, do som das ondas batendo no casco. Mas de nada adiantava.
O vento frio que vinha do Sul ainda o fazia tilintar os dentes.
Queria falar de tanta coisa, mas as coisas é que falavam dele.
Meses já haviam passado, mas era como se tivesse sido ontem.  E não tinha com quem compartilhar tamanha frustração. O rádio havia muito não funcionava. Nem pombo-correio poderia se dar ao luxo de usar. Não. Eles não chegavam ali.

Sensação horrível de se estar à deriva, sem sinal de terra firme, de não ter onde se agarrar.
Pensava que, àquela altura, já deveria ter chegado. Já deveria estar com ela, mas não.
E agora, nem certeza de que era esperado tinha mais. Tudo sumiu como fumaça.

Resolveu então escrever.

Aquela caligrafia horrível.
Por causa da digitação que era super rápida, segurar numa caneta já não era mais o seu forte. Mesmo assim, ousou tentar.

O quê dizer? Com quem falar?

Ninguém iria ler. Provavelmente, ninguém veria aquele escrito.

Mesmo assim, ousou escrever.

“Errei o caminho. Tentei acertar. Não consegui. Não sei se vou chegar. Mas se chegar, tudo estará diferente. Já não estarão mais esperando. Não posso culpa-los. Uma pena. Tudo poderia ter sido diferente se chegasse no tempo certo. Mas não foi assim que aconteceu. Espero que estejam bem. Em mim, dói a saudade. Que pretendo matar quando chegar. Mesmo estando diferente, e encontrando não mais as pessoas que deixei, mas as pessoas nas quais vocês se tornaram. A vida é assim. Somos como as estrelas. Muitas vezes, o brilho que vemos, é o passado. O presente pode ser bem diferente. Mas ainda assim, não podemos esquecer de olhar para o horizonte. Onde as estrelas brilham. Lá, bem longe, enquanto umas morrem, outras nascem. Nascem para ocupar o lugar daquelas que se foram. Mas que jamais serão esquecidas.”