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25 de fevereiro, marcha de mulheres em Puebla |
Entre a Cidade do México e Veracruz fica uma das cidades mais lindas que já conheci, Puebla. Parece pequena, mas tem dois milhões de habitantes. Foi fundada por um bispo espanhol em 1530 e ele dizia ter sonhado com anjos descendo do céu e mostrando o lugar onde deveria ser fundada a cidade, por isso seu nome é Puebla de los Angeles (Puebla dos anjos).
E por essa lenda parte da arte da cidade gira ao redor dos anjos, é um lugar onde se encontra todos os tipos de anjos, figuras talhadas na madeira, pedra e feitas no barro. É uma cidade cheia de história (link), com as melhores faculdades do país, uma natureza incrível, famosa por sua comida e por ser um lugar tranquilo.
Fui algumas vezes porque minha bisavó, Margarita, tinha nasceu lá e minha abuelita dizia que eu puxei parte do meu gênio forte dela, porque dizem que os poblanos são gente brava, que já se defendeu muito seu território.
No mapa feito pelas autoridades Puebla não aparece na rota do tráfico, ou seja, não é um lugar ocupado por traficantes, que não precisam da passar por lá para chegar a outra parte, mas está perto do porto de Veracruz, um dos mais perigosos do mundo por estar dominado por diferentes facções do tráfico, mesmo assim não está no ''caminho'' do tráfico, o que daria a Puebla uma rara tranqüilidade e garantiria seu status de cidade segura.
Aprendi com meu pai que o México não tem apenas um lado, em absolutamente nada. É uma cultura complexa, cheia de curvas e com uma herança tensa, os mexicanos foram dominados e escravizados pelos espanhóis e não se esqueceram disso, tudo o que é dito tem mil lados debaixo da sombra. Minha abuelita dizia que os mexicanos são como a Cidade do México, construída no cimento em cima de um rio, você olha a cidade e parece que está vendo tudo, mas o rio corre por baixo e você não o vê, os mexicanos não dizem nada diretamente, eles sempre ''dão a entender''.
E nos últimos tempos as coisas ficaram mais estranhas, são diferentes facções do tráfico em pontos importantes espalhados pelo país e controlam tudo, até a imprensa. Isso dificulta saber o número real de assassinatos de mulheres, os jornalistas estão na parede, se publicam sobre os crimes morrem, por isso o silêncio total na imprensa em relação a quem morre ou some.
Porém os traficantes não podem controlar a imprensa internacional nem o esforço das ONGS mexicanas, que se preocupam em passar os números e manter o mundo informado. É uma tarefa ingrata, porque não importa o que aconteça, o governo sempre nega a informação e os persegue de maneira cruel. Todos os fiscais de Direitos humanos, direitos das mulheres, sofrem retaliação e são vigiados constantemente.
Mas graças a eles as bolhas começam a explodir, não se pode mais manter a informação escondida e negar o que está acontecendo no México.
E Puebla é uma cidade pequena, sem grandes registros de violência, mas no dia 25 de fevereiro deste ano as mulheres foram às ruas pedir justiça, o que chamou a atenção de muita gente.
Puebla teve em um ano, apenas um ano, cinquenta mulheres mortas pelos seus namorados ou maridos e 10% delas estavam grávidas.
Organizações de defesa da mulher já pediram ao governo que ligue o alerta vermelho, que indica que Puebla é um lugar com um alto número de feminicídio, mas o governo se negou, disse que os assassinatos estão dentro ''da faixa'', não são conseqüência do tráfico, essas mulheres estão morrendo nas mãos dos seus namorados.
Parece chocante, mas essa é a leitura do governo mexicano e da maioria das pessoas, não é a mesma coisa uma mulher morrer na mão do tráfico do que nas mãos do namorado, quando morre nas mãos do marido vira ''morte de amor'', morreu porque amou.
E então as autoridades ignoram o caso e fecham o expediente.
E talvez toda a simpatia que existe entre o Brasil e o México se deve a uma estrutura social parecida e ao domínio da religião católica. Mulheres mexicanas são como as brasileiras, se apaixonam e depois reclamam quando os homens são agressivos, mas ora, os homens são assim e a mulher reclama? Tanto as mexicanas como as brasileiras são chatas, pegam no pé e depois que levam uns tapas se fazem de vítimas. O sistema não pode fazer nada, se as mulheres se comportassem e não irritassem os machos, talvez não morreriam tanto nem dariam trabalho a polícia!
E tanto lá como aqui a Igreja Católica fecha os olhos para o que está acontecendo, mantém a tradição de condenar o divórcio, de pedir paciência as mulheres e proibir o aborto.
O argumento da maioria dos mexicanos é igual aos brasileiros, eles dizem que é importante proibir o aborto porque caso ele fosse liberado, as mulheres usariam como método anticonceptivo. Isso só mostra a profunda ignorância das pessoas em relação ao corpo da mulher, acham que é mais simples levar anestesia e ter o útero raspado do que usar uma camisinha. Além de putas pensam que somos idiotas.
Os números dos abortos no México são parecidos aos do Brasil, os abortos clandestinos, as mortes nas mãos dos açougueiros, a condena social nas mulheres que assumem já ter feito um, a divisão econômica que protege as ricas que podem pagar clínicas e as pobres que se submetem a torturas medievais para abortar.
A visão no México é a mesma daqui, homem não tem culpa, quem engravida é a mulher vadia, porque se fosse mulher direita nem teria tido relações. Homens mexicanos são uns santos e alguns são tão bons que até pagam o aborto.
Mas existe um ponto que os mexicanos sabem, assim com os brasileiros. A lei é frouxa para punir quem mata sua esposa e namorada, eles estão protegidos pelo sistema e até o delegado entende que eles perderam a cabeça porque a mulher os enlouqueceu. Eles têm tempo de fugir ou de alegarem alguma besteira, para muitos o tráfico tem sido uma ótima desculpa, é só dizer que a mulher foi vítima dos traficantes e o rapaz sai impune. Se ficar complicado ele ''cai pra dentro'', se une a alguma facção e some no meio do México, mas o número de maridos e namorados presos é insignificante, tanto assim que não intimida ninguém.
E o jornal espanhol ElPais fez um perfil de cinco vítimas recentes desse ''amor louco''. É triste pensar que uma mulher é morta pelo seu namorado, mas é mais triste saber que ela foi morta defendendo o seu bebê, morreu porque quis ter a criança.
Mas essa parte da história não bate! Não somos nós, mulheres, que sempre queremos abortar e tiramos dos homens a oportunidade de serem pais? Não somos nós as vadias, putas, que engravidam para sacanear o homem e depois quando ele não cai na nossa conversa, corremos para abortar?
Por quê ninguém fala disso, dos homens que matam porque não querem ser pais? Será que é só no México que mulheres são mortas pelos namorados porque estão grávidas?
Mulheres têm o direito ao aborto negado, ninguém se importa que morram em açougues clandestinos, mas os homens continuam mantendo seu direito a matar, caso não queiram ser pais. É chato obrigar um homem a ser pai!
E os cinco casos recentes são de quebrar o coração, uma delas, Samaí Márquez, 25 anos, estudava psicologia e defendia os animais, fez uma tatuagem em homenagem aos animais que tanto amava, escreveu ''sou tua voz''. Ficou grávida e quis ter o filho, o namorado não quis, a chamou para conversar e deu um tiro na sua cabeça.
Outra moça Mireya Pérez, estava grávida pela segunda vez, o namorado não aceitou, queria que ela fizesse aborto, já tinham uma filha de dois anos e não queria outro bebê. Como ela se recusou a fazer o aborto, ele foi a sua casa jantar com ela e a criança, depois do jantar matou as duas com uma navalha.
Paulina Camargo estava grávida de dois meses e queria ter o filho, o namorado não quis, a estrangulou e sumiu com o corpo. Já deu várias localizações a polícia, mesmo assim não a encontram. E o rapaz não se comoveu com a sogra implorando para que ele dissesse onde está o corpo, a mãe quer apenas o direito de enterrar a filha, mesmo assim ele continua dando lugares errados.
Iraís Ortega, de 23 anos, estudante, ficou grávida e o namorado pediu que abortasse, como ela se negou ele injetou uma substância tóxica nela, colocou seu corpo no carro e depois a jogou no meio da estrada.
Karla Lopez também estava grávida e o namorado se recusava a aceitar a situação, a atraiu a um lugar, onde três capangas esperavam por ela, foi morta e seu corpo foi jogado em outra cidade.
Tem alguém na cadeia? Não. A confissão do namorado que diz ter estrangulado a namorada não deu em nada, não tem corpo, não tem crime e ele conseguiu um amparo para responder em liberdade.
Parece que as mulheres não tem muita escolha, ou morrem em um aborto clandestino ou nas mãos dos namorados.
E o processo entra na justiça como ''crime de amor'', matou porque amava, matou porque era amor demais.
E as mulheres continuam sendo as putas, vadias, que querem abortar o tempo inteiro, se pudessem abortariam duas vezes por dia, de tão agradável e fácil que é.
Estamos cercadas por um condena social e religiosa, aborto é pecado, o Padre disse na missa o outro dia que mulheres que abortam tem que pedir perdão todos os dias e implorar para que Deus as perdoe. Mas e os assassinos, será que Deus perdoa?
Ah, perdoa sim, eles mataram por amor! Não foi pelo tráfico!
E ainda tem gente que diz que não precisamos do feminismo!
A corrente mais conservadora diz que aborto é crime, remover um feto é assassinato e condenam a mulher que faz isso, mas um homem pode matar uma mulher de vinte anos, um ser humano desenvolvido, e não é crime, é excesso de amor.
E uma antropóloga disse uma vez ''o que mata as mulheres no México é o amor romântico''.
É, concordo em partes. Acho sim que erramos, enchemos a bola dos homens, amamos quem não devemos amar, mas nada disso dá direito a um homem de matar uma mulher e em caso de mulher grávida a pena deveria ser prisão perpétua!
A perseguição as mulheres me assusta, porque somos aquelas criaturas guiadas pelo demônio, segundo dizem. Os homens são bons, inocentes e matam por amor, nós somos más e vivemos pelo ódio.
Parece normal no mundo um homem matar uma mulher, mas é anormal uma mulher fazer um aborto, como se as duas coisas pudessem ser comparadas.
Das mulheres que morreram defendendo seus filhos na barriga ninguém diz nada. E um dos namorados, o que deu um tiro na cabeça da moça ainda foi generoso, disse que ela poderia escolher entre morrer ali ou ser levada a uma clínica de aborto, como ela se negou a abortar, levou um tiro.
Mas tudo bem! É o mundo dos homens inocentes e das mulheres vadias.
Diante de tanta impunidade, a tendência é as coisas piorarem em Puebla, a cidade dos anjos. Parece que é mesmo, está cheia de anjos, de homens inocentes, puros e bons de coração.