sábado, 22 de dezembro de 2018

Melhores livros lidos em 2018

Eis minha lista de 10 melhores livros lidos (e não necessariamente escritos) em 2018, com toda a injustiça que uma lista como essa pode gerar. Reparo que não consigo disfarçar minha tietagem aos autores latino-americanos contemporâneos. A ordem em que eles aparecem representa a ordem em que foram lidos e só. Podem ler sem medo cada um deles. Eu garanto! (aos mais chegados, tenho quase todos para empréstimo :))

Festa no covil, de Juan Pablo Villalobos (México) – um romance muito breve, de linguagem leve, narrado sob o ponto de vista de um garoto curioso, que é filho de um poderoso narcotraficante, e que vive este mundo sombrio de uma maneira muito sua, tentando entender o misterioso mundo em que vive o pai, com toda imaginação que só uma mente infantil pode ter. 

Deixa comigo, de Mário Levrero (Uruguai) - Um livro sobre um escritor em apuros financeiros (que familiar...) que recebe a missão de viajar pelo interior do Uruguai em busca de um tal de Juan Pérez, que enviara dias antes, sem endereço de remetente, o manuscrito de um romance genial a uma editora. Delicioso!

Como me tornei freira e La mendiga, de César Aira (Argentina) – César Aira não tem compromisso algum com o verossímil, com a realidade. Você pode esperar tudo deste que é um dos autores mais inventivos da literatura argentina contemporânea (cuja vastíssima obra está, pouco a pouco, chegando no Brasil). 

Poemas, de Wislawa Szymborska (Polônia) – Poesia pra ser boa não precisa ser hermética. Passando por temas pesados como a guerra, a vencedora do Nobel consegue nos atingir fundo, com temas pesados como a guerra e o exílio, mas de forma leve, que consegue sensibilizar até mesmo os leitores menos familiarizados com a linguagem poética.

Garotas Mortas, de Selva Almada (Argentina) – Um livro necessário sobre o feminicídio na Argentina. Um belo exemplo de jornalismo literário que busca investigar a morte de 3 mulheres argentinas durante os anos 80.

Múltipla Escolha, de Alejandro Zambra (Chile) - Um romance todo construído em forma de uma prova de múltipla escolha (baseada na Prova de aptidão Verbal, aplicada no Chile entre 1966 e 2002) e que consegue, nas entrelinhas, fazer uma crítica ácida ao horror da ditadura chilena. Estranho, sim. Incrível, também sim. 

Pássaros na boca, de Samantha Schweblin (Argentina) – São dezoito contos (absurdamente bem construídos) que começam com situações corriqueiras e que acabam ganhando ares de fantástico, na melhor tradição de Júlio Cortázar. Por mais absurdas que pareçam as situações narradas (uma menina que come pássaros, por exemplo) a gente lamentavelmente se reconhece em cada um deles. 

O pai da menina morta, de Tiago Ferro (Brasil) – Um pai que perde uma filha de 8 anos em decorrência das complicações de uma gripe. Este é o mote (tristemente real) deste livro em que Tiago Ferro torna seu luto público. Não se trata de uma narrativa tradicional, linear, mas uma coleção de fragmentos, que vão desde mensagens no Whattsapp até mergulhos na cabeça do médico que tentou salvar a menina em seus últimos momentos, o que torna tudo mais potente, mais real. Fazia muito tempo que eu não chorava lendo um livro.

O peso do pássaro morto, de Aline Bei (Brasil) – Parece poesia, tanto pelo lirismo, tanto pela disposição das
palavras
no papel
assim
bastante
experimental, 
como 
se 
as 


palavras


vo


       as


              s     e                    m


mas a autora diz que é romance. Suas escolhas narrativas tornam tudo bastante sutil, apesar do peso da história da protagonista, desde os 8 anos até sua morte, um romance de formação de uma mulher, mãe, sonhadora, humana.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Mito

Já faz trinta anos, mas lembro como se fosse ontem. Meu primo havia dito que Papai Noel não existe e eu fui contar isso para minha mãe, certo de que ela daria risada dele. “É verdade” ela respondeu, “não existe mesmo”. Estávamos perto do Natal, além de lidar com a inexistência do velhinho eu ainda tinha a sensação de ter sido tapeado.

Decidido a não perpetuar as frustrações familiares, parti logo para a verdade com meu filho. De forma lúdica, em meio aos brinquedos e tentando tomar todo o cuidado, cheguei ao ponto fatídico: “Filho, o Papai Noel não existe. Ele é só um mito. ”

Para minha surpresa o garoto abriu um sorriso e perguntou: “Então ele vai salvar o Brasil?”. Era só o que me faltava! Já era a segunda vez que essa revelação me desconcertava.

Ele havia ouvido, na casa de um amiguinho, que o mito ia salvar o Brasil e por isso a confusão. Dessas amizades de qualidade duvidosa a gente trata depois. Era hora de desconstruir o mito do mito.

Tentei ser o mais didático e ilustrativo possível para fazer com que uma criança de seis anos entendesse que um mito não existe no mundo real. É uma história inventada e, justamente por não existir, o personagem faz coisas grandiosas e fora da realidade.

Pensei que sendo racional e explicando porque o mito não pode ser transferido do imaginário para o real aquela criança de olhos esperançosos ia se convencer. Depois de muitos exemplos e fatos achei que tivesse dado certo. Ele fez cara de pensativo e começou: “Então... agora o jeito é torcer para dar certo e o Papai Noel cumprir a promessa de trazer um presente.”

Desisto. Por enquanto não vai dar para convencer o garotinho. Falta experiência prática e talvez daqui a um ano a realidade se sobreponha ao sonho. Não dá para negar que é tentadora a ilusão de personificar um mito que realize um desejo.

É tão tentador que meu primo, tão racional no auge de seus seis anos, esfregando na minha cara a dura realidade da inexistência do Papai Noel, esse ano tem se mostrado bastante seduzido por alguns outros mitos.

Encarei a crença dele como minha chance de revanche. Era minha vez de revelar a verdade. Expliquei porque um mito não existe no mundo real e suas promessas de façanhas são restritas ao mundo da ficção. Finalizei dizendo ser necessária a inocência de uma criança de seis anos para acreditar nesses mitos.

Nesse ano o Natal em família será tenso. 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O último mês

Dezembro é o último mês do ano. E a sensação que paira no ar é bem estranha, é o último mês do ano, mas será o último mês democrático que vivemos?

No dia primeiro de janeiro, de 2019, o presidente eleito vai tomar posse, um candidato polêmico que desenha um futuro sinistro.

E qual serão os rumos que este país vai tomar? Não sei, mas parecem assustadores.

Ah, mas talvez estou errada! Pode ser, mas no último mês do ano tudo parece fora do lugar, não temos ideia do que nos aguarda, por isso este dezembro está sendo tão longo e lento, como se o relógio segurasse cada segundo.

Não somos os únicos que estamos passando por mudanças, muitos países também vivem seus enigmas políticos e quem paga a conta é a população.

Janeiro não parece atraente, pelo contrário, sabemos que vai trazer notícias mais quentes do que o verão. Mas seguimos aqui, esperando dezembro acabar. Esse dezembro quente, sufocante, lento e devagar. Talvez seja o último dezembro democrático. Talvez.


Iara De Dupont

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Como aumentar suas estrelas no Uber (5 dicas infalíveis ao passageiro)

Passei muito tempo de minha vida ubérica vivendo a confortável ilusão de que era apenas eu quem tinha o poder de avaliar o motorista. Até que descobri, fuçando despreocupadamente no aplicativo, que eu também, na função de passageiro, era avaliado com estrelinhas. E, para minha grande estupefação, sujeito cordato que sempre pensei que fosse, reparei que minha média estrelar não era a máxima possível, a constelação de 5 estrelas não estava completa, não superando a marca vexatória de 4.7. Fiquei por muito tempo cabisbaixo, preocupado pensando no que cargas d'água eu tinha feito para algum (algusn?!) uberistas não terem me dado a nota máxima. Numa tentativa de auto-engano, prática não qual tenho Phd, julguei que minha baixa popularidade com alguns motoristas (com os piores, é claro) está no fato de eu viajar muitas vezes acompanhado de uma menina de 5 anos, minha filha, pequena pessoa que tem o polêmico costume de massagear as costas dos motoristas com os pés, prática esta jamais solicitada pelo suposto beneficiário (e nem sempre contida com o rigor necessário pelo seu nem sempre atento pai). Assim, passei a formular algumas práticas simples, que com o tempo revelaram-se decisivas para o aumento de minha avaliação junto aos cada vez mais exigentes motoristas.

1. Previna-se

Ao andar com uma criança com incontinência nos pés, prefira calçá-la com sapatos mais confortáveis (confortáveis às costas, no caso) como sapatilhas de algodão ou pantufas. Jamais galochas. Se preciso for, deixe-a apenas com meias ou mesmo descalça durante a viagem. Considere ainda pedir o uber na conta de outra pessoa nestes casos, de preferência na de alguma que não dê a mesma importância que você para avaliações (não se esqueça de pagar a pessoa em momento oportuno).

2. Use a tática do adversário

Tenha sempre um saco de balas em mãos e ofereça ao motorista logo após entrar no veículo. Em caso de recusa, deixe algumas estocadas no compartimento ao lado do câmbio, para o caso dele querer mais tarde. Copos de água mineral, preferencialmente gelada, costumam agradar também.

3. O protagonismo não é seu: deixe o motorista brilhar!

Antes do motorista iniciar a corrida, pergunte se ele possui algum caminho de preferência (lembre-se sempre, o motorista sempre tem razão. É ele quem vai dar ou não suas tão sonhadas 5 estrelas. Jamais questione a opção escolhida por seu motorista). Caso não tenha, sugira que utilize algum aplicativo de navegação no trânsito (o Waze, por exemplo). Ofereça o seu, como garantia. 

4. Tome a iniciativa

A busca por uma nota maior também pode servir para atender a outras demandas suas, como a de conter a inevitável indiscrição dos motoristas. Como estratégia para os uberistas não perguntarem nada sobre minha vida pessoal (coisa que verdadeiramente detesto e faz com que eu me torne bastante antipático), eu tomo a iniciativa e pergunto eu sobre a deles. E o faço de forma frenética, contundente. É quase uma entrevista do William Bonner com o Fernando Haddad, simplesmente não deixo espaço pra eles falarem de outra coisa. E isso faz com que a gente ganhe intimidade (alguns se emocionam quando falam de si) e eu inevitavelmente termino com um abraço desejando boa sorte naquilo que eles estavam me contando (uma viagem, um novo emprego, uma reconciliação com o filho gay, essas coisas). São cinco estrelas garantidas.

5. Dê o exemplo

Termine a corrida sempre com a frase mágica antes de sair do carro: "Tenha um dia dia (tarde ou noite), Fulano. Estou dando 5 estrelinhas aqui pra você"). Daí não tem erro. É sucesso na certa!




terça-feira, 20 de novembro de 2018

Nós temos que mudar isso daí

Ao chegar na reunião de condomínio eu me sentia como o seu Madruga entrando na casa da dona Florinda. Apesar de morar no mesmo local, sofria preconceito de classe. Vai entender!

Eu só precisava de autorização para uma pequena reforma, por isso não poderia evitar a reunião. Havia também o problema dos ratos no subsolo. Começou com um pequeno camundongo aqui, outro ali, e agora já tinha morador deixando o carro na rua para não ter que enfrentar os ratos do estacionamento subsolo.

Fui recepcionado por uma discussão acalorada. Discussão é modo de dizer, na verdade as acusações eram feitas à esmo, sem nenhuma coerência. “A culpa é do 502, que deixa lixo espalhado!”, “Esses bichos só podem ter vindo do 308, aqueles imundos!”, “Antigamente é que era bom, não tinha esse tipo de coisa!”, “Rato bom é rato morto”.

“Gente”, tentei intervir, “eu preciso fazer uma reforminha no banheiro, coisa rápida, o pedreiro falou que em dois dias…” 

“Então ele é o responsável pelos ratos!”, alguém gritou no fundo da sala. “Certeza que estão vindo do esgoto dele!”, e eu nem tive tempo de argumentar o óbvio, o esgoto do meu apartamento era parte do total do prédio. O que será que aquele pessoal tinha bebido, minha nossa?

Pensei que gostaria de ser um pequeno camundongo, para fugir depressa daquela insanidade, ziguezagueando pelos condôminos raivosos. Quando achei que as acusações de ser o responsável pelos ratos eram o fundo do poço, alguém sugeriu que demolissem meu banheiro.

Como assim? Eu só queria uma pequena reforma e algum lunático vem falar em demolir o banheiro? Só podia ser piada. Segurei o riso para explicar que meu apartamento ficava bem no meio do prédio, aquela ideia insana era simplesmente impossível.

Finalmente o síndico colocou ordem na reunião. Aquele senhor que exercia a função de síndico há quase trinta anos e não tinha no currículo mais do que redigir atas das reuniões impôs silêncio e quando todos estavam atentos, extravasou sua raiva em um grito: “VAMOS DERRUBAR O PRÉDIO!”

Meu horror não teve tempo de se expressar, a massa de condôminos explodiu em gritos de apoio, com todos concordando que a medida amarga era necessária para acabar definitivamente com os ratos.

Juro que tentei intervir. Propus uma dezena de formas mais inteligentes de eliminar os roedores. Fui taxado de ditador por contrariar a vontade da maioria e de corrupto por supostamente ser o responsável pelos ratos. Neste ponto o que menos me interessava era a curiosa relação da falsa responsabilidade com a corrupção.

É isso. Minha história termina aqui. O que se seguiu a tudo isso já não pertence a mim. Ainda lembro de observar a implosão bem de perto. Eu havia buscado refúgio no apartamento de um amigo, no prédio ao lado. Da janela vi o enorme prédio ruindo em segundos, sob aplausos dos moradores, que vibravam orgulhosos da escolha que fizeram.

Mal a poeira baixou e pude ver uma horda de camundongos emergindo dos escombros e se espalhando pelo quarteirão.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

O tempo

O tempo é a coisa mais estranha. Parece lento quando somos pequenos, sufoca quando somos adultos. Se desenha de maneira independente, e começa a dar impressão de que manda em nossa vida, decide nossos caminhos.

Fazemos as coisas por que é o momento certo ou por que o tempo vem para cima? Nos casamos porque estamos apaixonados ou é o tempo que aperta a nossa mão?

Somos guiados pelo tempo, ou pela falsa sensação que noz traz, controlando nosso calendário, medindo nossos anos.

E o tempo só passa e demoramos para perceber que nossas decisões, parte delas, não foi sincera, foi o medo do tempo que nos levou a fazer algumas coisas.

E se tivéssemos todo o tempo do mundo? Pensaríamos com mais calma? Poderíamos aprender a viver de outra maneira?

Não sei. Agora somos escravos de um relógio, que corre sem nos dizer para onde vai. E vamos atrás, sem saber para onde vamos.


Iara De Dupont 

domingo, 28 de outubro de 2018

poste 13

Entre o inominável que defende atrocidades, fascismo e toda sorte de violência  versus um professor candidato pelo PT que independente da quantidade de títulos e méritos acadêmicos, experiência política que mantenha o respeito à diversidade, a pluralidade de ideias e ideiais, a liberdade de imprensa, defesa à vida, dos direitos humanos e direitos de todos, não tem aonde ter dúvida.

Embora exista estatísticas que revelem números que comparam o Brasil com países em guerra, nesta eleição estamos entre promover ainda mais o genocídio ou seguir lutando contra, mas com espaço e relativa liberdade, pois totalmente livres nenhum de nós somos.

Estamos entre fortalecer a guerra ou cessar a guerra aos pobres, negros, LGBTs, indígenas e ativistas dos direitos humanos. Poderia aqui encerrar a justificativa no assassinato de Marielle Franco e tantos outros que ocorreu recentemente e isso bastaria. Mas o que também está na mente tem a ver com a responsabilidade com quem precisa da existência de um bom futuro, preferencialmente sendo bom lugar.

Entre desgostos de vivências e destroços de sonhos ideológicos e/ou utópicos, a defesa da vida pulsa sem titubear. Quem ainda não viveu o bastante tem maiores chances de sonhar com mundo melhor e novas formas de relações e organização da sociedade. A esperança é a última no fim do suspiro e acreditar nas próximas gerações nos dá forças para seguir a caminhada.

E inacreditável também foi ler de algumas pessoas que supostamente se consideram de esquerda ou progressistas nomearem  o candidato a presidência pelo PT Haddad como poste de Lula. 

E ainda pessoas cristãs defendendo o que em tese deveriam ser os primeiros a serem contrários. Parece que o mundo virou de cabeça pra baixo ou entramos numa fase catatônica com ausência completa do bom senso.

Essas eleições servem de reflexão para anos, inclusive para notar e observar de que o problema não está somente na extrema direita com manipulação de dados que dialogam com senso comum, preconceitos e concepções de mundo das pessoas, ou ressurgimento de candidatos ultraconservadores e reacionários que advém dos escombros coloniais e feudais desta estrutura de estado.

Mesmo sem conseguir compreender porque da adesão das pessoas ao discurso do fascismo e completa falta de paciência no diálogo/debate, inclusive do candidato que se recusou a comparecer (mera semelhança com mundo do trabalho não é coincidência, dizem que quem muito dialoga pouco faz, pessoal dos direitos humanos marca uma reunião para agendar outra), resta-me a certeza de que logo mais será confirma -  13 Haddad - pelo direito de existir e divergir sem intolerância. 

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Por que ele não?

Ele não, porque sou pai de uma menina
e não quero que ela cresça achando que pode menos do que qualquer homem.
E também porque tenho
uma mãe
uma irmã
e tantas outras mulheres fundamentais para mim
e não quero que elas
ganhem menos
mandem menos
possam menos
sejam menos
porque pessoas como ele 
acham isso simplesmente natural.

Ele não porque amo homens e mulheres negros
- e pardos e indígenas - 
E não quero que eles pensem
sequer por um segundo
que valem menos do que um branco
pela quantidade de melanina que têm na pele.
E nem que sofram
- pelo mesmo motivo absurdo -
qualquer tipo de violência
Física ou emocional
Tão idolatrada por ele.

Ele não porque amo homens e mulheres
que são gays, lésbicas, trans, bis, tris, tetras
ou o que mais eles querem ser
- porque isso é só da conta deles -
e não quero
que eles sintam
sequer por um segundo
vergonha de ser quem eles são.

Ele não
, porque não sou e nunca fui rico
e não quero que nenhum direito trabalhista 
duramente conquistado
nos seja tomado
por uma pessoa como ele
que defende uma classe social
 - que definitivamente não é a minha -
tão acostumada a já ter tanto
e a ceder tão pouco.

Ele não, porque apesar de não concordar com os erros do PT
quero poder continuar a não concordar com os erros do PT
e dizer isso tranquilo no meio da rua
vestido de vermelho, 
de verde, 
de amarelo 
ou de bolinhas
quero ter o direito de fazer oposição
ao PT, 
ao PSDB, 
ao MDB, 
ao Pros, 
ao Contras, 
à Pedra, ao Papel e à Tesoura 
o que só é possível na democracia
coisa meio fora de moda e que ele abomina,
mas que foi conquistada 
- eu aprendi na aula de história, coisa também meio fora de moda - 
com muito sangue, dor e torturas
causada por pessoas que ele idolatra.

Ele não
              porque ele 
                                 é absurdo.

________

(Felipe Lários)




sábado, 20 de outubro de 2018

Vagabundos insolentes

Insolentes. Vagabundos insolentes. Eram as primeiras coisas que vinham na cabeça de Jairo, logo que acordava. Principalmente nos últimos meses.

Já fazia mais de um ano que o rapaz não colocava os pés para fora de casa. Talvez mais que dois. A mesada dos pais e trabalhos a distância que arrumava pela internet eram suficientes para pagar as poucas contas, e o delivery – como o mundo sobreviveria sem delivery – garantia o acesso ao que precisava.

Assim era o mundo, pensava Jairo. As pessoas boas presas em casa e os bandidos soltos. Insolentes. O tempo livre, que não era pouco, o rapaz aproveitava para não ficar de braços cruzados contra ´tudo isso que está aí´. Passava horas postando comentários em notícias na internet e debatendo em grupos daqueles que, assim como ele, garantiam serem excluídos da sociedade pelos vagabundos insolentes.

Naquele dia o ódio estava particularmente aflorado. O entregador de água chegou quando Jairo estava no banho e simplesmente deixou o galão de vinte litros na porta. A que ponto a sociedade havia chegado! Ele teria que carregar um enorme galão de água para dentro de casa, sozinho!

A tarefa o deixou exausto, teve que improvisar vários apoios e alavancas e ainda deixar o galão no chão, tombando a água em uma jarra até aliviar o peso. Tudo por causa de um vagabundo insolente que não cumpria o próprio trabalho.

Felizmente sentia que os problemas da sociedade estavam próximos do fim. Poderia, finalmente, se libertar da opressão que sofria por parte daqueles insolentes. A gente de bem estava prestes a ocupar seu lugar na sociedade e os insolentes morriam de medo disso.

Até que enfim seu árduo trabalho de comentários em notícias na internet estava surtindo efeitos. A população parecia ter acordado. A tradição, a família e a propriedade privada não seriam mais ameaçadas e tudo voltaria a ser como antigamente, quando... quando... quando não tinha tudo isso que está aí!

Uma coisa era certa, Jairo nunca mais teria que passar pela humilhação de ficar a tarde toda trabalhando duro para arrastar o galão de água até a cozinha. Vagabundos insolentes!

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Geração tutorial

Conversando com uma vizinha sobre uma receita de bolo, ela me disse, no alto dos seus doze anos ''tia, manda o tutorial''.
Sim, e isso seria o que exatamente?
O vídeo de alguém fazendo o bolo!

É, chegamos neles, a geração-tutorial. Jogam todos seus questionamentos existenciais no Youtube e devoram os tutoriais.

Mas existem questionamentos existenciais em uma receita de bolo? Muitos. O primeiro e mais forte de todos é a dúvida de estar fazendo a coisa certa, receitas não tem fotos nem imagens do passo a passo, apenas do resultado. Você joga a mistura no liquidificador e quando vai ver fica pensando se é assim mesmo, se não faltou farinha, se a cor não está diferente. Depois que fica pronto você compara com a foto da receita e vê que não se parece nada, então é invadida por questionamentos filosóficos, talvez você não tenha talento para a cozinha, não tem boa mão, errou na receita simples.

Preparar um bolo traz à tona muitas dúvidas e inseguranças. E tudo isso te consome em um processo de uma ou duas horas, até que depois de ver o bolo você se frustra e resolve não cozinhar mais.

Mas agora tudo isso acabou, existem tutoriais. Antes de criticar essa nova geração fui dar uma olhada. É fato que parece outro mundo, são centenas de vídeos com a mesma receita e em todos aparece cada fase do processo e seus possíveis erros. Você assiste ao mesmo tempo que prepara o bolo, em uma companhia virtual que te afasta de questionamentos existenciais.

Já que o mundo está nesse ponto e vai continuar, será que é uma coisa boa tantos tutoriais? Será que não nos afasta de pensar, raciocinar, desenvolver nossos talentos em cima das nossas dúvidas? Será que tudo assim tão mastigado pode ser uma coisa boa?

O bolo do tutorial que eu fiz ficou melhor do que os outros que fazia apenas com uma receita e um pouco de instinto, mas a pergunta permanece, vamos conseguir encontrar tutoriais para todas nossas dúvidas existenciais ou vamos virar uns robôs que repetem o que uma máquina manda fazer?


Iara De Dupont

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Sem Título

Hoje o dia começou nublado, chuvoso, não acho que vá melhorar tão logo.
Tentei entender, estou tentando aceitar, mas estou apenas ficando com medo.
Gostaria de tirar alguns anos de folga, talvez quatro.
Tem dias que a gente aqui, mais realista, torce para que a neblina seja o sol que tenha apagando.

sábado, 22 de setembro de 2018

No terceiro semestre de 2018

No terceiro semestre de 2018
ele terminará de escrever o projeto
ele se matriculará no curso
ele comprará a passagem

No terceiro semestre de 2018
ele se alimentará melhor
praticará exercícios regularmente
e até irá ao dentista

No terceiro semestre de 2018
ele parará de comprar livros
e dará conta de ler
os 414 volumes não lidos em sua estante

No terceiro semestre de 2018
ele pintará o apartamento alugado há 5 meses
uma parede laranja atrás do sofá
e até comprará uma cortina black out para seu quarto

No terceiro semestre de 2018
ele parará de assumir projetos 
que sabe que não dará conta
e apenas seguirá firme e harmonicamente
trabalhando em seus 617 atuais

No terceiro semestre de 2018
ele assumirá seus atos
parará de escrever na terceira pessoa
como se não falasse sempre de si próprio

E andará de bicicleta
Subirá em pau de sebo
Tomará banhos de mar
No terceiro semestre de 2018


sexta-feira, 21 de setembro de 2018

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Lembrança enferrujada

Era hora de Dalton fazer uma viagem. Tinha que revisitar o passado nebuloso que a família insistia em manter, se recusando a vender o sítio ainda que proibindo qualquer visita à propriedade.

Há cinco anos chegou a pensar que a viagem seria possível. Após a morte do pai, que sempre censurava qualquer menção ao sítio, acreditou que o caminho estaria livre. Só então que a mãe, sempre tão reservada, assumiu o papel de censora.

Hoje, inválida, a mãe não poderia dar nenhuma informação quanto ao passado nebuloso, por outro lado também não poderia impedir a viagem de Dalton.

Ele sabia que já havia morado no sítio, mas era tão pequeno que não podia contar com as lembranças dessa época. Com um pouco de esforço poderia recuperar algum flash de memória, enviesada e nada confiável. Lembrava de brincar em um triciclo com alguma criança, mas não ficaria surpreso se seu próprio inconsciente estivesse personificando algum boneco.

De concreto sabia que o sítio trazia péssimas lembranças aos pais e que por alguma razão, em nenhuma hipótese eles consideravam vender a propriedade. Agora parecia o momento ideal. Uma visita para se livrar do passado e vender o sítio. A parte arrendada mal cobria os custos e o dinheiro da venda ajudaria no cuidado com a mãe.

Depois de uma viagem longa e cansativa, chegar no sítio não era muito acolhedor. Os sinais de abandono começavam no portão de entrada e o mato alto quase encobria o caminho até a casa. Só o trecho arrendado tinha sinais de cuidado, com uma vasta plantação de soja.

Não foi difícil passar pelo portão. A madeira apodrecida cedeu com um empurrão. Na casa a situação era mais complicada. Os vidros, intactos, já não eram transparentes com toda aquela poeira. As janelas e portas eram bem trancadas e não tinha nada para tentar arromba-las. Em um mezanino anexo ao telhado viu o triciclo de suas lembranças. Talvez fosse ali que havia criado seus amigos imaginários.

Decidiu ir até o vizinho. Sem dúvida teria alguma ferramenta para emprestar. Passou ao lado do poço, próximo à casa. Já fazia um bom tempo que estava com sede. Viu o poço lacrado por uma grossa tampa de concreto, cimentada ao redor da borda. Ficou imaginando qual o sentido de lacrar um poço daquele jeito.

O caminho até a casa vizinha foi longo. Chegou ofegante e encontrou o caseiro junto à cerca. Explicou que precisava de ferramentas e pediu um copo de água. O caseiro estranhou que o rapaz tenha se apresentado como proprietário do sitio ao lado e achou melhor apresentar Dalton à patroa.

Chegando ao alpendre o caseiro chamou e uma mulher já bastante idosa saiu da casa. O desinteresse foi interrompido com um olhar de espanto, assim que olhou para Dalton.

“Danilo?!”

“Não... é Dalton... eu sou filho do dono do sítio ao lado.”

A velha não conseguiu disfarçar a surpresa. Parecia ter visto um fantasma. Ainda assim ofereceu água ao jovem e pediu licença, alegando estar ocupada. O caseiro trouxe uma caixa de ferramentas e Dalton voltou para a casa, desta vez sem sede, mas com o peso extra das ferramentas.

Arrombar a porta não foi tarefa fácil. Além da falta de habilidade do rapaz, a fechadura estava emperrada depois de tantos anos parada. A ideia inicial de danificar o mínimo possível a porta foi deixada de lado. Ele só queria abrir logo a casa e por fim à ansiedade.

Depois de muito suor a porta cedeu. Ali estava seu passado, abandonado, empoeirado e esquecido. Na penumbra dos cômodos onde a energia elétrica havia sido cortada e a luz do sol mal atravessava os vidros sujos das janelas, Dalton começou a abrir tudo o que era possível em busca da claridade.

Dava para notar que boa parte da mobília havia sido levada e o restante combinava com os móveis da casa dos pais. Tudo dentro das expectativas, até a única porta interna que estava trancada. Mais um esforço com as ferramentas, dessa vez com um pouco mais de prática, e o rapaz entrou no único quarto que parecia intacto. Nenhum móvel havia sido retirado.

Cobertos pela poeira estavam a cama arrumada, o guarda-roupas cheio de peças infantis, a prateleira com brinquedos antigos e uma cômoda, onde dentro de uma das gavetas Dalton encontrou um envelope.

Abrindo o papel pardo Dalton encontrou um atestado de óbito, datado quando ele tinha quatro anos. Na filiação estavam os nomes de seus pais. O documento havia sido emitido para Danilo, nascido dois anos antes que ele. A causa da morte, afogamento.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Pela minha salvação

Há uns meses entrei em uma igreja, pensei que estava acontecendo uma missa, mas era um grupo de oração.
No final uma senhora se aproximou e me pediu meu telefone, eles cadastram pessoas interessadas no grupo de oração, mandam  material religioso e uma bênção diária. Bom, não estou em situação de negar uma bênção diária, então me cadastrei.

Recebi durante semanas orações, explicações sobre santos e avisos de missas e comemorações.

E nesta semana tudo mudou. Depois de centenas de mensagens sobre santos e seus milagres, chegou ao meu celular um texto longo, explicando a importância de apoiar um candidato a presidência que acabava de sofrer um atentado. Oh, meu Deus, não escrevo seu nome para não alimentar essa energia sinistra, já que ele não me parece um candidato, mas uma energia de esferas inferiores.

Pedi gentilmente a senhora da igreja que tirasse meu número da lista, já que não apoio o candidato e não entendo porque essas mensagens deveriam circular em grupos de oração. Ela respondeu, mandou um texto enorme explicando que esse ''candidato'' que sofreu o atentado, é um cristão que derramou seu sangue pela minha salvação e por isso merece o apoio de todos os católicos, já que ele é o candidato da igreja e assim como Jesus, ele vem sendo crucificado pela mídia e pelos comunistas.

Bom, chegamos em um ponto, os comunistas, essa figura tão temida pela igreja católica.

Nada disso me impressionou, o medo aos comunistas, o candidato que derrama o sangue pela salvação de todos os cristãos, a histeria coletiva, as mensagens de apoio ao candidato, a posição da igreja. Nada, nada, nada, nada, nada alterou minha pressão sanguínea, que apenas balançou quando percebi um detalhe, um pouco escondido, mas estava lá: não estamos em 2018? Século 21? Não estamos cercados de brinquedos futuristas? Não estamos conectados ao futuro? Onde então entra esse discurso de medo dos comunistas e um candidato que derrama seu sangue?

Será que o Brasil está em um universo paralelo? A nossa noção de tempo é diferente do resto do mundo? Estamos vivos? E se o Brasil é um país-limbo, e todos estamos mortos, esperando o perdão divino?

Agora fiquei abalada. Me cadastrei no grupo de oração para receber uma bênção diária, mas parece que abri um portal que leva as trevas.



Iara De Dupont.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

entre os números e caricatura do fascismo

Na história da humanidade quem vem primeiro a escrita ou números? Diante da sobrevivência e organização será que foram os números? Aprendemos a contar e depois a escrever ou escrever e depois contar?

Será que antes da escrita e dos números está a convivência? Quisera ter o tempo e condições objetivas para estudar todas as dúvidas que surgem.

Na organização de sociedade e estado parece que escrita e números são essenciais e aliados permanentes. Mas tenho a ligeira impressão de que os números importam mais.

Na construção de políticas públicas quem determina a existência delas são os números, mais específica do orçamento público, se cabe ou se é possível conter no orçamento, ainda que os números revelem que milhares e/ou milhões de pessoas dependem destas ações e políticas.

O congelamento de gastos públicos por 20 anos demonstram que algumas áreas do estado são consideradas estáticas e por isso não devem ser alteradas no que diz respeito a investimento perante o interesse e respeito à bolsa de valores de mega empresários. Ainda mais de bancos e financeiras.

Os números indicam quando são mais importantes para os interesses hegemônicos. O eterno presidente interino Temer governa com 4% a 8% de aprovação, puro golpe sabemos disso. E posso estar sendo generosa ao cita de 4% a 8% porque posso estar desatualizada, às vezes é 2%  e não sabemos.

Mais é incrível notar a influencia dos números neste exato contexto de pós golpe e/ou concretização do plano político de extrema direita.

Atual presidente interino governa com 4% a 8% de aprovação um país com extensão territorial de um continente. Quando comparamos os 4% a 8% do interino com os candidatos a presidência o cenário se torna desolador.

Guilherme Boulos o candidato mais jovem com 1% de intenção de voto pelo PSOL não participou do debate da emissora com enorme contingente (milhares e milhões) de telespectadores por ter apenas 1%.

Lula candidato experiente com 35% de intenção de voto pelo PT não pode participar das eleições ou pronunciar porque está preso pela justiça da republica curitibana que alega acusação sem apresentação de provas.

Guilherme Boulos com 1% de votos e Lula com 35% ou quase metade da intenção de votos dentre os votantes estão restritos na participação do debate pela simples vontade hegemônica de interesses econômicos.

Essa comparação apenas demonstra a momento de vivência com referencias ainda no golpe de 2015. De que forma um presidente interino com carreira política centenária com 4% a 8% de aprovação tem mais legitimidade do que candidato mais jovem e sem experiência com 1% bem como candidato com experiência e carreira política com 35% de intenção de votos. Democrático? Não. Democracia? Talvez. Golpe. Deixo para pensar.

Os demais candidatos acima de 1% na intenção de votos parecem mais aptos a serem  ouvidos por quem tem interesse no orçamento público.

Neste bonde tem Ciro e Marina, ambos com representação razoável de intenção de votos, mas que se comparada com Lula os dois juntos não representam os 35% de intenção de votos.
                           
Até o momento assisti apenas um debate pelo único canal que disponibilizou por internet porque não tenho televisão.

Já observando os candidatos neste debate nota-se de que explorar os números pode ser estratégia que demarca quais são as prioridades de governo, demonstra algum compromisso e ajuda na compreensão sobre o golpe. Também possibilita o debate sobre a dívida pública, desemprego e retrocesso no social e consequentemente no pouquíssimo bem estar que tínhamos.

Neste debate fiquei desconsertada com discurso do candidato com representação religiosa e que não lembro da intenção de voto e outro com 20% de intenção de votos que odeia as minorias que são maiorias votantes: mulheres, negros/negras e LGBT.

Hoje com a informação de que o candidato da extrema direita favorável ao empresariado e todo poder econômico, aliado ao fascismo e toda má sorte com discriminatórios compareceu a emissora mais popular do país e deixou-me estarrecida ao saber.

O candidato de 20% que não tenho apreço algum em citar o nome é uma caricatura furreca do atual presidente dos states.  Esta caricatura tem aversão aos direitos humanos, liberdade de expressão e entendimento mais que equivocado de que todos problemas resolvem-se com armas e armamento, mais prisões e mortes e não importa de qual lado.

A caricatura do fascismo com 20% de intenção de votos além do discurso tendencioso ao ódio, intolerância, racismo, misoginia, homofobia, senso comum, tem ausência quase que total na menção de números, orçamento público, política pública e social e principalmente em dizer quais são as prioridades de governo.

Discursos com números são interessantes para demonstrar realizações e intenções:
1º para quem fez algo, o Lula com 35% de votos pelo PT com certeza e sem dúvidas usaria para demonstrar o que fez durante o governo;
2º para quem pretende fazer algo demonstrando compromisso,  Guilherme Boulos com 1% pelo PSOL;
3º para quem promete mas não faz, ex prefeito de SP por menos de dois anos e colega do candidato a presidência 20 anos como governador de SP são exemplos contundentes.


Mas onde está o lugar do candidato com caricatura do fascismo e 20% de intenção de votos? Está na rede social, considerando que organização deste espaço se dá pela quantidade de vezes em que o tema, assunto e pessoa estão sendo citado, ele deve estar em primeiro lugar. Os números não têm filtros, infelizmente.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Dossiê Marco - Operação saideira

DO DIÁRIO DE MARCO, 15 DE JULHO DE 2013
Todas as escolhas que já fiz na vida combinam perfeitamente bem com cerveja. E com maconha também, é verdade, mas vou me ater à cerveja. Se eu fosse boêmio ou minimamente conseguisse tomar álcool sem ter a sensação de que estou tomando um remédio, e veja bem, não qualquer remédio, mas um remédio amargo, desses que a gente só toma quando é estritamente necessário, eu ia achar isso muito bom, realmente muito vantajoso. Mas não. Absolutamente não é assim. Eu preciso confessar, e minha crescente covardia só me permite fazê-lo aqui, que é absolutamente penoso para mim engolir um copo de cerveja e, se o faço – e sim, o faço – é apenas porque quero ser sociável, quero ter amigos, ser aceito num desses grupos de valdevinos que escolhi pra mim.

DA AGENDA DO CELULAR DE MARCO, SEMANA DE 14 A 20 DE JULHO DE 2013
  • dom_14:
14:00 – Encontro com o grupo de teatro (levar as coisas do Chico)
17:00 – Niver do Tuco no Bar da Ieda
  • qua_17:
21:00 – Futebol na TV (comprar comida)
  • qui_18:
19:00 – Oficina de escrita criativa (fazer o exercício do Caetano)
21:00 – Leitura de poemas no Bar do Tim
  • sáb_20:
11:00 – Oficina de escrita criativa
14:00 – Sarau
21:00 – Niver da Cecilia no Bar da Glória

DO DIÁRIO DE MARCO, 18 DE JULHO DE 2013
Acho que começo a perceber alguns padrões nos hábitos de meus amigos. Digo de meus amigos, mas talvez isso possa se estender a qualquer tomador de cerveja. Quando alguém te convida para assistir a uma partida de futebol, porque sim, esta pessoa é sua amiga e sabe que você gosta de futebol, na verdade esta pessoa está te convidando para tomar cerveja e para fumar maconha – mas vou me ater à cerveja, acho que já disse isso antes. Quando você chegar ao local combinado, todos estarão paramentados, é verdade, com a camisa de seus times de coração e você ficará empolgado com isso. Valeu a pena ter deixado o conforto de seu sofá para ver o jogo com pessoas tão animadas, com verdadeiros torcedores. Mas quando estiver chegando a hora do jogo e você ficar ansioso com a proximidade da peleja – afinal, você ingenuamente pensa que está ali para ver a uma partida de futebol – os torcedores já estarão tão animados consigo mesmos e com todos os preparativos que envolvem a partida, que provavelmente se esquecerão de ligar a tevê. Você, que gosta de futebol e que está ali para ver futebol e que até já tinha se programado todo para ver a partida no conforto de seu lar, provavelmente se sentirá constrangido em atrapalhar toda aquela alegria, em ser o único preocupado com uma coisa tão menos importante como uma partida de futebol. Provavelmente encherá seu copo e se unirá a turba de torcedores elevados, que não precisam de uma partida para torcer. Negará até a morte que você não está imensamente feliz com toda aquela patuscada, mas ficará atento a cada mínimo sinal de fogos que venha do vizinho – e como você ficaria feliz em ser amigo do vizinho nessas horas. É verdade que tudo pode ocorrer de uma forma um pouco menos drástica. Sempre pode haver um tio que se lembrará de ligar a tevê. Mas você pode ter certeza de que ela será uma tevê de tubo, de catorze polegadas, cheia de chuviscos – minorados talvez pelo chumaço de bom bril xuxado em cada haste de uma antena piramidal – e que provavelmente ficará lá esquecida em algum canto, longe o suficiente para que seu constrangimento e seu incorrigível senso de sociabilidade permita que você se aproxime.

DA GRAVAÇÃO CLANDESTINA FEITA PELA DRA. MILENA VERÍSSIMO, EM OCASIÃO DE CONSULTA PSICOLÓGICA PRESTADA A MARCO EM 14 DE AGOSTO DE 2013
Eu juro que já tentei de tudo, doutora, mas a verdade é que não consigo me envolver com outro tipo de gente, com gente mais Fanta Uva, se é que a senhora me entende. Me chame de preconceituoso, doutora, mas ou você bebe Fanta Uva ou você é legal. Eu sou uma completa aberração. Alguma coisa certamente deu errado em algum ponto de minha formação. Eu bebo Fanta Uva E sou legal. Ao menos é assim que eu me vejo. Jamais, doutora. Ninguém jamais pode saber que eu faço isso e espero que a senhora mantenha essa informação no mais absoluto sigilo. Estou certo que o fará. Se não posso confiar numa doutora, em quem poderei confiar, não é mesmo? Faço tudo escondido, na calada da noite, bem longe dos meus amigos. E que delícia que é botar aquele treco roxo na boca, a sensação inebriante daquelas bolinhas descendo goela a baixo. A senhora toma Fanta Uva, doutora? Bom, não importa, mas estou certo de que não toma. Logo se nota de que a senhora é uma pessoa agradável. Esses dias li uma reportagem alertando para o risco de se ter câncer ao se consumir Fanta Uva. O cara que disse isso só pode ser do tipo que toma Fanta Uva, gente chata pra caralho. Eu nunca consegui me envolver com esse tipo de gente. Veja bem, na escola eu até tentei e era confortável. A gente se reunia e podia tomar nossa Fanta Uva a vontade, sem ter que esconder isso de ninguém, mas e depois, doutora? Depois era cada um pra sua casa antes das oito. Não haviam as gargalhadas espalhafatosas, as promessas de amizade eterna, as conversas desinteressadas entrando pela madrugada. Nada, doutora, nada disso combina com Fanta Uva. Tudo isso combina com aquela bebida amarga que eu me esforço tanto para tomar. Não se pode ter tudo, não é mesmo, doutora? Ou será que pode, doutora? Algum desses livros aí atrás da senhora diz que pode, doutora? Eu preciso de ajuda, poxa!

LISTA DE COMPRAS ENCONTRADA NA POCHETE DE MARCO EM 12 DE SETEMBRO DE 2013
  • 3 pães
  • 100 gramas de mortadela
  • pipoca para microondas (bacon, se não tiver, provolone)
  • 1 pote de Nutella
  • macarrão
  • Toddynho (a embalagem com 3 da promoção)
  • 2 litros de Fanta Uva
  • 1 caixa de bom bom (daquela que vem com o Sensação)
  • papel higiênico (pacote com 8)

DO DIÁRIO DE MARCO, 23 DE SETEMBRO DE 2013
Voltemos aos padrões de comportamento. Acho que estou ficando perito nisso, um antropólogo dos botequins. Mas nem é preciso tanto para perceber que um copo de cerveja sempre precisa estar cheio, copos vazios ou meio vazios (neste mundo não há copos meio cheios) são considerados verdadeiros disparates, um desrespeito ao grupo. É dever de todos ficar atento para que nenhum copo na roda esteja vazio. Ao menor sinal de escassez deve-se imediatamente pegar a garrafa mais próxima e proceder pelo preenchimento de todos os copos do grupo. Encher apenas o próprio copo e devolver a garrafa à mesa é a pior infâmia que se pode cometer. Negar que alguém complete seu copo vazio, a segunda pior. Amizades antigas terminam por coisas assim. Por isso, e admito que sou bastante ingênuo por só perceber isso agora, uma estratégia óbvia para não ter que beber doses insuportáveis de cerveja é manter o máximo de tempo possível o copo cheio. Nada de bancar o boêmio e descer tudo de uma vez. Não. Isso só fará com que alguma alma pretensiosamente caridosa encha meu copo imediatamente e eu tenha mais uma sessão de tortura pela frente (veja bem, ninguém faz isso com qualquer outra coisa. Ninguém vê seu pão na chapa pela metade e pede ao chapeiro pra já ir descendo outro pra você. Absolutamente, não. Isso só funciona com cerveja e com outras dessas coisas amargas). Então, devo bebericar aos poucos e até mesmo fingir uns goles. Ser o cara que serve a cerveja nos copos também me rende muitos pontos e ajuda a disfarçar minha artimanha.

DO DIÁRIO DE MARCO, 24 DE SETEMBRO DE 2013
Começo a me arrepender do que escrevi ontem (será que é isso que chamam de ressaca moral?). Ser o único sóbrio num antro de ébrios (e dissimular isso, santo Deus) não seria, no mínimo, desonesto?

DO DIÁRIO DE MARCO, 01 DE OUTUBRO DE 2013
Preciso parar com essa história de tomar suco em público. Ontem quase aconteceu o pior. A Simone almoçava na padaria e quase me pegou com a boca no canudo. Ia ser uma lástima.  Cobri a cena bem em tempo com o Jornal do Metrô.

DO DIÁRIO DE MARCO, 05 DE OUTUBRO DE 2013
Acho que ontem passei dos limites. Jogar cerveja fora escondido é um pouco demais. Até mesmo pra mim.

DA GRAVAÇÃO CLANDESTINA FEITA PELA DRA. MILENA VERÍSSIMO, EM OCASIÃO DE CONSULTA PSICOLÓGICA PRESTADA A MARCO EM 07 DE OUTUBRO DE 2013
Chega uma hora nessa vida, doutora, que temos que tomar uma decisão, temos que mostrar, afinal, quem somos, pra que viemos, o que queremos nesse mundo. A senhora pediu e aqui estou eu, finalmente resoluto, por mais difícil e improvável que esta decisão seja, mas decido agora o que já não posso mais tardar: vou começar a beber! Pois posso repetir, caso a senhora não tenha entendido, caso o nervoso tenha embargado minha voz: vou começar a beber! Não, não desse modo vergonhoso como bebo hoje, quero ser um bebedor de verdade, como meus amigos, sim, quero ser como eles! Não, não acho que me diminuo com isso. Longe disso. Se escolhi segui-los, preciso do pacote todo. Não há como ser boêmio sem a boemia. Me entrego. Rirei com eles das piadas ébrias e dançarei nu se preciso for, só não quero mais manter-me sóbrio. Será que consigo, doutora? Estou delirando?

DO DIÁRIO DE MARCO, 12 DE OUTUBRO DE 2013
O orgulho transborda em mim. Ontem consegui tomar dois copos cheios. Sigamos. Um dia de cada vez.

DO DIÁRIO DE MARCO, 19 DE OUTUBRO DE 2013
Dois copos de novo. Sem avanços. Sem retrocessos. Um pequeno progresso, na verdade: emiti dois comentários minimamente razoáveis e convincentes sobre a superioridade das cervejas artesanais em relação às industrializadas. Obtive olhares respeitosos. Pesquisei na internet.

DA GRAVAÇÃO CLANDESTINA FEITA PELA DRA. MILENA VERÍSSIMO, EM OCASIÃO DE CONSULTA PSICOLÓGICA PRESTADA A MARCO EM 23 DE OUTUBRO DE 2013
Tenho me esforçado muito, doutora. Acho que não tenho motivos para envergonhá-la. Esses nossos encontros têm sido realmente decisivos. Confesso que no começo achava tudo isso uma grande perda de tempo, quase uma charlatanice. Desculpe, doutora, se não confiei na senhora, mas acho que aqui posso falar a verdade, não posso? Bom, deixa pra lá. Mas o fato é que depois que passei a encarar a cerveja não mais como uma simples bebida, como algo que servisse apenas para me matar a sede, mas como a chave de um portal que me transportasse para um outro estado de espírito, como uma poção mágica que me desse acesso ao lado mais obscuro das pessoas que quero perto de mim, ah, doutora, quando passei a ter essa perspectiva das coisas, tudo ficou bem mais fácil. Afinal, poções mágicas não precisam ser docinhas, não é mesmo, doutora? Pelo contrário, se quero passar para uma outra dimensão, para um outro estágio de existência, tenho que ser submetido a um rito de passagem e ritos de passagem precisam ser bastante dolorosos, não é mesmo, doutora? Diga que sim, doutora! Por favor! Diga alguma coisa doutora, veja bem, qualquer coisa, doutora! Eu não estou indo bem? Estou, não estou?

DO DIÁRIO DE MARCO, 02 DE NOVEMBRO DE 2013
Amanhã… ah, amanhã! Aniversário do Wagner no Isca Bar. Acho que chegou a hora de queimar umas etapas.

DO DIÁRIO DE MARCO, 03 DE NOVEMBRO DE 2013
É hoje!

DESCRIÇÃO DA CÂMERA DE SEGURANÇA DO ESTABELECIMENTO “ISCA BAR” NA NOITE DE 03 DE NOVEMBRO DE 2013, FEITA PELA PERITA DRA. CAROLINA DO VAL
O investigado chega ao estabelecimento de nome “Isca Bar” por volta das 20h45. Está sozinho. Traja camisa polo branca, calça jeans e pochete. Encontra duas pessoas numa das mesas da calçadas e as cumprimenta. Aparenta estar sóbrio e com perfeito controle de suas ações. O investigado se senta junto às duas pessoas. Ato contínuo, o garçom aparece com um copo americano e enche seu copo de cerveja. O investigado sorri com discrição ao garçom e quando este sai, propõe um brinde. Todos riem e bebem juntos. O investigado esvazia seu copo em duas grandes investidas. Um pouco antes das 21h mais duas pessoas se unem ao grupo. O garçom é solicitado novamente. Chegam mais garrafas à mesa. O copo do investigado é enchido mais uma vez. Risadas. Após três investidas, o copo do investigado fica vazio. A pessoa que chegou por último, uma mulher, imediatamente enche o copo do investigado. Ele diz algo e todos riem. Ele ri muito. Dá uma primeira investida no copo e começa a tamborilar os dedos na mesa. Parece inquieto. Um segundo gole. Alguém diz algo e o investigado bate com a palma da mão na mesa e ri alto. Desta vez, ninguém o acompanha no gesto. Por volta das 22h, mais alguém chega à mesa. O investigado completa o terceiro copo. Olha para os lados. Parece muito inquieto. Segue tamborilando os dedos e passa a também a bater a perna direita no chão. Com um gesto, chama o garçom e solicita mais garrafas. Emite um comentário. Aparentemente só ele ri. O garçom chega com as cervejas. O investigado pega uma das garrafas e começa a encher todos os copos da mesa, aparentemente proferindo comentários chistosos a cada um. Alguns lhe sorriem de volta. Alguns parecem se incomodar. Enche seu próprio copo, deixando cair boa parte do conteúdo no chão. O investigado passa a dançar de forma descompassada com o copo na mão. O investigado ri de modo espalhafatoso. Duas das pessoas mais próximas se afastam do investigado com olhares aparentemente assustados. O investigado tira a pochete e a atira na mesa. Segue dançando sozinho com o copo nas mãos. São 22h30 quando ele termina o quarto copo. Todos estão de pé. O quinto copo é enchido. Um gole. O investigado fica em silêncio. O investigado vomita. O investigado desmaia. São 23h12 quando chega a ambulância.

DO ATESTADO DE ÓBITO DE MARCO EMITIDO PELA MÉDICA LEGISTA DRA. THAIS ROCHA, EM 04 DE NOVEMBRO DE 2013
Coma alcoólico diagnosticado às 0h12. O falecido era solteiro e não deixa herdeiros.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

A recomendação de segurança

Agenor havia sido promovido. Agora seria responsável pela segurança. Começou arrumando uma dívida, mas era por uma boa causa. Precisava comprar um terno caro. Era imprescindível que responsáveis pela segurança vestissem um terno caro.

E lá se foi Agenor para sua tarefa. Em meio aos risos e conversas descontraídas dos clientes do bar, que se espalhavam pelas mesas da calçada, Agenor ficava atento. Prevenir era sempre melhor que remediar, portanto ele interrompia os brindes, as conversas de happy hour e se necessário até mesmo os beijos apaixonados dos casais imprudentes.

Havia passado os últimos três dias em frente ao espelho, decorando o texto e treinando as melhores expressões faciais para passar segurança, afinal era para isso que fora contratado.

"Boa noite. (...) Boa noite? Muito bem. Permitam que eu me apresente. Eu sou o Agenor, sou responsável pela segurança de vocês. Estou aqui para assegurar que nada de mal vai acontecer. Eu conto com a colaboração de vocês. Permitam que eu dê uma recomendação de segurança: caso algum pedinte se aproxime, não entrem em pânico, não deem dinheiro para não estimular a prática, não ofereçam comida, não puxem conversa. Sigam essas instruções e nada de mal acontecerá. Tenham uma boa noite." E se afastava para cumprir sua função.

Tudo seria muito mais fácil, não fossem os imprudentes. A maioria seguia as recomendações, diante do perigo iminente apenas recuava e clamava pela ajuda de Agenor, que corria expulsar os maus elementos que colocavam a paz e a ordem em risco. Tudo na mais perfeita harmonia, não fossem os imprudentes.

Não passava uma noite sem ter que agir com mais vigor, graças àqueles que, contrariando as regras explícitas de segurança, davam moedas – moedas! – aos vagabundos que se aproximavam.

Era a hora de agir sorrateiramente, expulsar os transeuntes que ofereciam um perigo inegável à gente de bem que se espalhava pelas mesas da calçada, lamentando não poder agir com todo o rigor que gostaria.

O maior problema era o direitos humanos. As pessoas que agiam de forma imprudente e ainda criticavam Agenor quando ele realizava seu trabalho da forma mais competente possível. Precisava de todo jogo de cintura para, depois de se certificar de que o perigo havia sido afastado, se aproximar da mesa dos imprudentes com o olhar sério, semelhante ao que lançava aos próprios filhos diante de uma travessura.

“Boa noite. Lembram do que eu disse? Eu conto com a colaboração de vocês! É uma recomendação de segurança. Por favor, não estimulem esse tipo de atitude.”

E voltava a se afastar, dessa vez mantendo uma atenção especial à mesa dos transgressores da ordem. Só não conseguia compreender qual a dificuldade daquelas pessoas de ter uma atitude de gente de bem e ajudar a escorraçar os maus elementos. Vai entender...